Iconografia da paisagem brasileira | Orlando Graeff

Classificar faz parte dos naturais anseios humanos. Em seu afã de entender a organização dos distintos mundos que compõem o mundo, o homem classifica animais, plantas, rochas. Classifica geoformas, solos e ambientes.

Com as paisagens não é diferente. Em seu esforço de definir – ou descobrir – como as paisagens podem ser distinguidas por algum perfil ou algum conjunto de características, em geral artificialmente estabelecido, ele busca critérios que possam trazer alguma coerência sistêmica. Na dinâmica que rege as correntes científicas, há propostas em evolução permanente para se poder definir o que é uma paisagem e o que é a outra! E, lógico, com o desenvolvimento científico-tecnológico, tais sistemas vão se tornando cada vez mais sofisticados. Existem formas antes impensáveis de se definir a taxonomia de uma determinada paisagem. Até mesmo a partir dos sons, bióticos e abióticos, que delas emanam. Sim, as paisagens têm uma assinatura sonora que as individualiza! Para nosso deleite, os novos métodos científicos não têm sido excludentes. Hoje, para um levantamento paisagístico se usa um drone altamente sofisticado, mas que pode ser considerado como uma câmera fotográfica convencional, só que voadora. Leia Mais

As irmandades de São Miguel e Almas do Purgatório: culto e iconografia no setecentos mineiro – CAMPOS (Tempo)

CAMPOS, Adalgisa Arantes. As irmandades de São Miguel e Almas do Purgatório: culto e iconografia no setecentos mineiro. Belo Horizonte: C/Arte, 2013. Resenha de: MARTINS, William de Souza. Almas santas e aflitas nas Minas setecentistas. Tempo v.21 no.37 Niterói jan./jun. 2015.

Quando a primeira versão deste trabalho veio à luz em 1994, constituída pela Tese de Doutorado apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob a orientação de Laura de Mello e Souza, tornou-se fonte de consulta indispensável aos especialistas do catolicismo no período colonial, particularmente aos interessados nas manifestações litúrgicas ligadas ao momento da morte. Desde então, a autora, professora titular do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, publicou uma grande variedade de trabalhos dedicados, entre outros temas, ao culto aos santos e aos rituais da Paixão de Cristo, passando pela análise das representações iconográficas realizadas nas capelas e matrizes mineiras. A publicação da principal obra de Adalgisa Arantes Campos vem preencher uma lacuna importante no campo de estudos em que se situa e, além disso, coloca ao alcance de um círculo maior de leitores reflexões acerca dos rituais católicos do século XVIII que continuam válidas.

A autora estabelece um diálogo importante com a historiografia francesa, a quem cabe o pioneirismo no desbravamento deste campo temático, particularmente Michel Vovelle (19782010), Jacques Le Goff (1993), Philippe Ariès (2014) e Jacques Chiffoleau (2011). Os três primeiros autores são considerados bastante representativos da chamada “história das mentalidades”, que priorizou o estudo das representações coletivas que adquiriam permanência na “longa duração”, conforme definição clássica de Fernand Braudel. A historiografia portuguesa é também visitada, com destaque no capítulo que dedica à análise da iconografia e da devoção às Almas em Portugal. Trata-se de um diálogo crítico, que rejeita a aplicação mecânica ao território das Minas coloniais de modelos de interpretação elaborados para as realidades do Velho Mundo.

Conforme argumenta Adalgisa Arantes Campos, existiram diversas especificidades do culto às Almas e das manifestações litúrgicas associadas à morte nas Minas entre 1712 e 1810, o recorte escolhido pela autora. Para compreendê-las, é indispensável ter em mente certas características da ocupação daquele território, marcada no primeiro quartel do século XVIII pela grande opulência material propiciada pelo ouro, ao qual se seguiu um lento e, depois de 1750, vertiginoso declínio. A proibição de fixação de ordens regulares na capitania teve o efeito de diminuir a quantidade de sacerdotes disponíveis para a celebração de missas, ofícios e outros rituais fúnebres associados às Almas do Purgatório. Paralelamente, devido à inexistência de mosteiros e de conventos, o culto às Almas ocupou os altares de capelas e de matrizes paroquiais, sobressaindo estas últimas, onde foram instaladas quase todas as irmandades que veneravam o Arcanjo São Miguel e as Almas do Purgatório.

No que diz respeito à leitura dos aspectos sociais e culturais mais amplos que nortearam a colonização daquele território, a autora se valeu de uma rica tradição de estudos do “barroco mineiro”, em que avultam as edições patrocinadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.1 Ao lado desse conjunto de estudos, a autora dialogou também com as obras que analisaram a atuação das irmandades na capitania das Minas (Salles, 1963Boschi, 1986Aguiar, 1997, p.80-106). Talvez um dos maiores méritos da obra resida na combinação das abordagens próprias da história da arte, aplicadas à análise das manifestações e dos modelos iconográficos, e da história social do território e das associações que veneravam as Almas do Purgatório e o Arcanjo São Miguel.

Da perspectiva das fontes escolhidas para a análise, a autora realiza um verdadeiro tour de force: fontes escritas de natureza normativa e litúrgica; farta documentação iconográfica; documentação de diferentes irmandades sob a invocação de São Miguel e Almas do Purgatório; tratados de meditação e oração, sermões e literatura. A escolha de material tão diversificado poderia conduzir à dispersão ou à análise superficial do material empírico. Pelo contrário, procedendo a partir da comparação, a análise sistemática dos detalhes produz uma visão orgânica do culto às Almas do Purgatório e dos rituais funerários na região das Minas. Estruturando a obra em cinco capítulos, pareceu acertada a decisão de não incluir o capítulo inicial da tese, dedicado à análise dos “novíssimos do homem” (a morte, o juízo, o inferno e o paraíso).2 Diminuindo-se o material de apoio, o livro ficou mais leve e mais focado no recorte escolhido.

A autora abre o primeiro capítulo com a discussão acerca do sistema teológico do Purgatório, que remete à grande obra de Jacques Le Goff. Na Idade Média, a constituição de um espaço intermediário ocupado pelos que morriam com pecados veniais, que mantinha simultaneamente união com o mundo dos vivos e dos santos, sublinhava as solidariedades e as trocas espirituais nos três níveis em que se dividia a Igreja de Cristo. Conforme a própria autora assinalou em outro trecho:

O Purgatório tornou-se um tempo e lugar intermediários, constituindo no centro, na esperança, de muitas devoções. Os mortais ocupavam boa parte da sua vida terrena auxiliando as almas a resgatarem os próprios pecados e ascenderem na rota espiritual, rumo à imortalidade (p.68).

O capítulo inicial também apresenta a relação entre o culto às Almas e as descrições do Purgatório contidas na obra que exerceu profunda influência sobre as representações do além na sociedade ocidental: A divina comédia, de Dante Aliguieri. Na obra do poeta italiano, a purificação dos pecados por meio do fogo constituiu uma importante atividade realizada no espaço do Purgatório. Após a purgação obtida nesse espaço intermediário, as almas estavam prontas para receber as glórias do Paraíso. Aos homens que faleciam em pecado mortal, estavam reservadas as penas infinitas do Inferno, sem possibilidade de remissão. A autora assinala a complexidade do papel assumido pelo fogo no Purgatório: “ao mesmo tempo pune, rejuvenesce e imortaliza” (p.47, grifos no original). Ao consultar as imagens contidas nos livros das irmandades de São Miguel e Almas e outros testemunhos iconográficos das Minas, a autora percebe a continuidade, na “longa duração”, do sistema de representações expresso por Dante:

As imagens expressam claramente a leitura do fogo enquanto elemento de purificação e santificação. Não há contorções, feições desfiguradas ou qualquer indício da natureza unívoca do fogo. As [Almas] eleitas atingidas pelo fogo conservam a serenidade, em sinal de meditação sobre o pecado e a esperança em Deus. Podemos ler o Purgatório de Dante, contemplando o acervo artístico proveniente das Minas do Ouro, como se este constituísse as pranchas ilustrativas daquela obra, tal é a afinidade entre as duas produções artísticas (p.47).

O capítulo dois trata da “iconografia e devoção às Almas em Portugal”. Trata-se de um importante material de apoio necessário à discussão dos capítulos centrais do livro. A partir do exame da historiografia portuguesa e da análise de diversas representações iconográficas existentes em diferentes localidades de Portugal, a autora constatou a variedade formal do culto às Almas efetuado no Reino. Chama inicialmente a atenção para as “alminhas”, isto é, pequenos oratórios que se edificavam ao ar livre e que continham painéis alusivos às Almas do Purgatório. Os cruzeiros, cuja localização apresentava muita diversidade, mantinham igualmente uma relação direta com o referido culto. No que tange às confrarias das Almas, é possível verificar a existência de patronos diversificados, como São Francisco, São Gregório, São José etc.

No século XVIII, momento da organização do culto às Almas no território das Minas, observou-se uma redução da variedade constatada no Reino de Portugal: inexistência das “alminhas”, o número de intermediários celestes associados à devoção às Almas ficou praticamente limitado ao Arcanjo São Miguel etc. No capítulo em questão, a autora trata ainda de deslocamentos ocorridos nas representações das Almas em Portugal, entre fins da Idade Média e princípios da Moderna. Enquanto no primeiro período a Virgem figurava em lugar de destaque no papel de intercessora das Almas do Purgatório, após o Concílio de Trento (1545-1563), Maria foi em parte substituída por outros intermediários celestes. Como hipótese para explicar essa mudança, a autora comenta que, para as sensibilidades clericais da modernidade, constituía uma ousadia figurar Nossa Senhora apertando os seios para aliviar com o seu leite a secura das almas padecentes (p.62 e 72).

O capítulo três constitui o eixo do livro e contém talvez as principais contribuições da autora para o estudo da “economia da salvação” subjacente às representações do Purgatório (Araújo, 1997, p.387-436). Seguindo tendências prenunciadas já na Idade Média, após o Concílio de Trento, o sacramento da eucaristia se tornou o principal sufrágio aplicado à salvação das Almas (Le Goff, 1993, p.362). Neste contexto, as autoridades eclesiásticas se preocuparam em garantir a solenidade do uso litúrgico do corpo de Cristo, fiscalizando o estado dos templos e altares e até a aparência dos sacerdotes que celebravam o santo sacrifício, como também combatendo a utilização de hóstias em sortilégios e práticas mágicas.

Nas irmandades de São Miguel, além dos sufrágios constituídos por missas celebrados pelos irmãos falecidos – o que constituía também uma prática realizada por outras irmandades -, havia a instituição de capelanias de missas dedicadas ao conjunto das Almas do Purgatório. Na Irmandade de São Miguel da Matriz do Pilar de Vila Rica, tal capelania foi extinta em 1810, fato que foi destacado pela autora no desenvolvimento de um dos principais argumentos do terceiro capítulo: o declínio do culto às Almas ao longo do século XVIII.

Tal declínio foi impactado pelo agravamento da situação econômica da capitania. Nesse ponto, percebe-se o diálogo implícito com a tese de Laura de Mello e Souza (1990) a respeito da pobreza no território das Minas setecentistas. A opulência de que se revestia o culto às Almas no primeiro quartel do século XVIII, caracterizado pela celebração de ofícios cantados com a participação de numerosos sacerdotes, músicos e decoração dos templos, foi substituída pela celebração silenciosa de missas em sufrágio das Almas. O culto às Almas vai assim perdendo espaço para a preocupação obsessiva com a salvação individual dos membros das irmandades de São Miguel. Para tanto, mesmo com as dificuldades econômicas assinaladas, as referidas irmandades aumentaram ao longo do século XVIII o número de sufrágios constituídos por missas, celebradas após o falecimento dos respectivos membros. Tal escolha revela a força da “contabilização do além” associada ao imaginário do Purgatório (Chiffoleau, 2011, p.127; Le Goff, 1993, p.269-271): o maior número de sufrágios tinha o efeito de apressar a passagem da alma pelo lugar intermediário, conduzindo-a ao Paraíso. Pelo fato de que, com algumas poucas exceções, os sacerdotes podiam apenas celebrar uma missa diariamente, a demanda maciça por sufrágios somente podia ser atendida fazendo-se celebrar as missas fora da capitania, de preferência na cidade do Rio de Janeiro ou no Reino de Portugal. Além dos vínculos afetivos existentes nesses territórios, a esmola para a celebração da missa era mais reduzida nos mesmos, devido à existência de maior número de sacerdotes. Por fim, a autora analisa o importante lugar ocupado nas rendas sacerdotais pelas missas de sufrágio e por outros atos litúrgicos associados ao momento da morte, o que permite compreender melhor a concentração de sacerdotes nas áreas mais urbanizadas da América Portuguesa, já apontada em estudo clássico (Neves, 1997, p.213-218).

O quarto capítulo foi destinado à análise de outros rituais, além da celebração de missas, que tinham relação com o culto às Almas do Purgatório: os ofícios, as procissões e as práticas de sepultamento. No que tange aos ofícios, a autora desenvolve em detalhes a tese do declínio de manifestações mais solenes ligadas ao culto das Almas, em decorrência não somente de dificuldades de ordem material, como também do “processo de aclimatação do universo religioso português” ao território das Minas (p.157). As procissões seguiram, em linhas gerais, o mesmo caminho. O estudo das práticas de sepultamento foi realizado de maneira meticulosa, a partir da base de dados dos livros de óbito da matriz do Pilar de Vila Rica. Na análise dos referidos registros, a autora reconstrói as hierarquias tecidas pelos irmãos de São Miguel e Almas e pelos fiéis em geral por ocasião do sepultamento. Por parte da população livre, havia preferência clara pela inumação no interior do templo, enquanto no adro deste sepultavam-se basicamente os escravos. Mesmo no interior do espaço sagrado da matriz havia diferenças entre o sepultamento na capela-mor, reservada a confrades de diferentes irmandades que tinham exercido cargos de direção em suas respectivas associações, e o sepultamento nas campas localizadas na nave templo paroquial.

No último capítulo, a autora se dedica à análise da iconografia do Arcanjo São Miguel. Apoiando-se em estudos dedicados à análise dos modelos iconográficos e da história da arte (Belting, 2010Male, 1984, entre outras referências), a autora constata as mudanças das representações de São Miguel e das Almas ocorridas no território das Minas, ante os padrões europeus. A autora faz também um mapeamento de cerca de 60 irmandades e devoções dedicadas à veneração do Arcanjo e das Almas do Purgatório que, em sua quase totalidade, impediam o ingresso de descendentes de africanos em suas fileiras. Talvez constitua uma lacuna da obra a ausência de maiores informações referentes aos irmãos das Almas, o que permitiria reconstituir o perfil prosopográfico dos mesmos. Em que pese isto, a obra de Adalgisa Arantes Campos constitui uma contribuição basilar ao estudo das representações acerca da morte e das práticas mortuárias no período colonial, um campo de estudos em que foi pioneira, ao lado das contribuições de João José Reis (1991) e de Cláudia Rodrigues (2005).

Referências

AGUIAR, Marcos Magalhães de. Capelães e vida associativa na capitania das Minas. Varia Historia, Belo Horizonte, n. 17, p.80-106, 1997. [ Links ]

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ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte. São Paulo: Unesp, 2014. [ Links ]

BELTING, Hans. Semelhança e presença: a história da imagem antes da era da arte. Rio de Janeiro: Ars Urbe, 2010. [ Links ]

BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizador a em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986. [ Links ]

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DEL NEGRO, Carlos. Nova contribuição ao estudo da pintura mineira (norte de Minas). Rio de Janeiro: Iphan, 1978. [ Links ]

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NEVES, Guilherme Pereira das. E receberá mercê: a Mesa da Consciência e Ordens e o clero secular no Brasil, 1808-1828. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. [ Links ]

OLIVEIRA, Myriam A. Ribeiro. O Aleijadinho e o santuário de Congonhas. Brasília: Iphan; Monumenta, 2006. [ Links ]

PASSOS, Zoroastro Viana. Em torno da história do Sabará: a Ordem Terceira do Carmo e sua igreja. Rio de Janeiro: Publicações do Sphan, 1940. [ Links ]

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1Com relação ao primeiro grupo, ver: Oliveira (2006)Del Negro (1978)Trindade (1951)Lopes (1942)Passos (1940).

2A autora justificou a exclusão devido à publicação prévia do capítulo em Rezende e Villalta (2007).

William de Souza Martins – Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro (RJ) – Brasil. E-mail: wsmartins2@gmail.com.

Kakupacal e Kukulcán: iconografia e contexto espacial de dois reis-guerreiros maias em Chichén Itzá – NAVARRO (RAP)

NAVARRO, Alexandre Guida. Kakupacal e Kukulcán: iconografia e contexto espacial de dois reis-guerreiros maias em Chichén Itzá. São Luís: Café & Lápis; EDUFMA, 2012, 96 p. Resenha de: FERNANDES, Luiz Estevam de Oliveira; KALIL, Luis Guilherme Assis. Revista de Arqueologia Pública, Campinas, n.7, julho 2013.

O México tem mais de 32 mil sítios arqueológicos catalogados. Dentre eles, Chichén Itzá é um dos três mais visitados. Patrimônio Cultural da Humanidade, foi eleita em 2007 uma das novas Sete Maravilhas do Mundo. A antiga cidade maia, por situar-se a meros 200 km de Cancún, principal destino turístico do país, recebe milhares de turistas por ano, que, por sua vez, atraem algumas centenas de “guias locais”, vendedores de artesanato “maia” e toda sorte de pessoas tentando ganhar a vida à custa dos visitantes, quase sempre boquiabertos diante da magnificência do local.

O interesse dos turistas, inclusive brasileiros (cerca de 130 mil visitaram o país em média anual, desde 2010), entretanto, não encontra equivalente entre os nossos pesquisadores.

Chichén Itzá permanece ainda pouco estudada em nosso país. Por isso, a obra de Alexandre Guida Navarro já seria de suma importância. Uma publicação acadêmica escrita em português por um especialista que passou anos estudando in loco a grande cidade maia já representaria um avanço pelo simples motivo de chamar a atenção para o tema e o período.

Prefaciado pelo arqueólogo e historiador Pedro Paulo Funari, Kakupacal e Kukulcán é um desdobramento das reflexões apresentadas no doutorado de Navarro, defendido na Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). No livro, o especialista apresenta sua hipótese de trabalho logo nas primeiras páginas. A partir da constatação de que os dois personagens-guerreiros do título estão representados apenas na iconografia do conjunto arquitetônico conhecido como “Grande Nivelação”, e não em toda a cidade de Chichén Itzá, o autor busca demonstrar como as representações de Kakupacal e Kukulcán fazem referência, na realidade, não apenas a deuses do panteão maia, mas a dois indivíduos reais, os Capitães Serpente e Disco Solar, dois guerreiros que teriam governado a cidade durante algum momento do Clássico Terminal (800-1000 d.C.): “nossa hipótese é que a construção da Grande Nivelação está estritamente relacionada com as realizações políticas destes guerreirosgovernantes como um espaço de legitimação de poder através da construção de arquitetura monumental” (p. 14).

Nesse sentido, Navarro expõe o conceito central de seu trabalho, o de humanização do espaço: “partimos do pressuposto de que os espaços arquitetônicos representam uma visão simbólica da composição social dos grupos humanos em relação com sua própria identidade, do meio que o rodeia e seu esforço para humanizá-la” (p. 14). Partindo de tal premissa, demonstra como a região da Grande Nivelação tem uma arquitetura com símbolos e representações em formas de imagens bastante distintas da do restante do sítio arqueológico.

Em um estudo essencialmente de distribuição espacial e de análise iconográfica, o autor argumenta que a construção deste complexo arquitetônico foi feita dentro de um complexo programa de estratégia política que envolvia propaganda proselitista dos governantes, direcionada aos habitantes da cidade e àqueles que a visitavam (p. 31).

Nos capítulos do livro, à maneira de um cuidadoso relatório de campo, o estudioso expõe-nos seus objetivos, a bibliografia existente sobre o tema, a metodologia que embasou seu trabalho, os dados obtidos e sua interpretação. Por meio do texto, ficamos sabendo de pelo menos três mensagens simbólicas expressas através da cultura material estudada: um esquema cognitivo de códigos e regras culturais, para demonstrar a ideia de transição de poder; que estas regras envolviam certo grau de controle pelos indivíduos ou grupos que aludiam a um controle do comportamento (por parte dos governantes da cidade); e que o espaço é uma forma de comunicação de diferentes naturezas e serve para a manifestação de aspectos específicos, como o culto a Kukulcán.

Tais associações, entre arquitetura e poder, são pensadas a partir de Michel Foucault e Gilles Deleuze. Sendo assim, Navarro conclui que as mudanças políticas ocorridas em Chichén Itzá estão relacionadas com os complexos arquitetônicos construídos no período bem como com o calendário maia: “Pensamos que Kakupacal foi um importante governante de Chichén Itzá quando a cidade alcançou seu poder construindo o setor sul do centro urbano. O seu governo coincide com um fim de ciclo maia ou Katún Ahau (período de 20 anos), que é quando o grupo no poder é substituído por outro […] Esta evidência calendárica demonstra que houve uma mudança de governo na cidade, que culmina com o controle da cidade por parte de um novo grupo social, que parece ser o Capitão Serpente”. Além disso, o arqueólogo insinua que estas mudanças representam transformações ainda mais profundas dentro de Chichén Itzá. Abrindo caminho para novas pesquisas, afirma que as imagens dos capitães captaria o momento de transformação social entre uma sociedade de cacicado (o setor sul do sítio) em direção à formação de um Estado (a Grande Nivelação) e da própria sociedade maia (p. 76).

Além da demonstração de sua tese principal, o livro também fornece um panorama sobre a civilização maia e qual o papel de Chichén Itzá no emaranhado de cidades-estados da época (cf. Capítulo 1). Dessa forma, ficamos sabendo que, entre os anos 800 e 900 d.C., a cidade controlava a rota de sal em toda a área maia, além das rotas marinhas e impostos, bem como servia de centro de peregrinação, “cujos vários edifícios foram usados para o culto de divindades como Kukulcán, a serpente emplumada, e Chaac, o deus da chuva” (p. 16).

Também encontramos no livro uma ampla revisão bibliográfica sobre os maias (cf.

Capitulo 2) além de várias fotografias, mapas, desenhos e um glossário de termos arquitetônicos que se tornam fundamentais para a compreensão da obra por parte dos leitores não especializados que procuram uma primeira leitura sobre os maias.

Como ressalva a esta importante publicação, apontamos o fato do autor não explicar mais detidamente quais foram os critérios adotados por ele para selecionar as representações das ruínas de Chichén Itzá que seriam utilizadas em sua pesquisa. Navarro afirma que, devido à deterioração de algumas edificações, optou por utilizar desenhos feitos por estudiosos que visitaram a cidade no século XIX: “Utilizamos, portanto, aquelas que acreditamos serem mais fieis à pintura mural original” (p. 38). Porém, não ficam claros para o leitor que elementos levaram o autor a fazer afirmações como a de que alguns desenhos “são muito importantes pois estão livres de todo o excesso artístico e fantasioso que prevalecia nessa época” (p. 18).

Processo semelhante ocorre em outro momento da obra. Ao descrever seu trabalho de campo, Navarro afirma que ignorou representações que poderiam ser consideradas como alusões ao Capitão Disco Solar por não estarem com os símbolos recorrentes (capa de jaguar, toucados elaborados, associação com Chaac) (p. 38). Contudo, páginas depois, analisa nova imagem do Capitão sem um de seus símbolos, mas cuja ligação com a divindade não é questionada: “O Capitão Disco Solar está desprovido de seu disco e parece estar representado, metaforicamente, pelos raios de sol” (p. 47). Seria interessante que houvesse, especialmente para o leitor leigo, uma explicação mais detalhada dos papeis exercidos por estes símbolos dentro das imagens e os possíveis significados de suas ausências ou substituições.

Há, também, pouca análise da relação entre relatos coloniais sobre os maias (citados, em vários momentos, como base de sua interpretação de etno-história) e a cultura material estudada. O autor chega a citar passagens de autores como Diego de Landa e outros, mas numa sequência que reforça seu caráter ilustrativo.

Para além disso, o livro torna-se uma bem vinda literatura sobre uma cidade tão visitada e, ao mesmo tempo, tão pouco conhecida.

Luiz Estevam de Oliveira Fernandes – Professor Adjunto do departamento de História do Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), pesquisador do Núcleo de Estudos de História da Historiografia e Modernidade, e líder do Grupo de Estudos “História das Américas: fontes e historiografia”, ambos do CNPq.

Luis Guilherme Assis Kalil – Doutorando do programa de História Cultural do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do Grupo de Estudos “História das Américas: fontes e historiografia”, do CNPq.

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Moche. Cosmología y Sociedad: Una Interpretación Iconográfica – GOLTE (C-RAC)

GOLTE, Jürgen. Moche. Cosmología y Sociedad: Una Interpretación Iconográfica. Lima-Cusco: Instituto de Estudios Peruanos-Centro Bartolomé de Las Casas, 2009. 472p. Resenha de: LOZA, Carmen Beatriz. Chungara – Revista de Antropología Chilena, Arica, v.43, n.especial, 607-608,  2011.

El interés del libro del antropólogo alemán Jürgen Golte y su importancia son evidentes, tanto por el tema como por la manera de abordar la iconografía y cultura moche. Después de un trabajo sostenido y de largo aliento, el autor se impone como uno de los mejores conocedores de la iconografía moche, pues escudriñó pinturas, esculturas y cerámicas para aproximarse a la cosmovisión de los artesanos que elaboraron para su sociedad hermosas y significativas piezas. Y, como un historiador, desplegó todo su conocimiento al servicio de las narraciones plasmadas en imágenes, la mayoría de las cuales provienen de colecciones, privadas y estatales, tanto alemanas, egipcias, chilenas como también estadounidenses y peruanas. Pero resulta que si bien son miles de piezas arqueológicas las que tuvo entre manos para estudiar, son aproximadamente 50.000 imágenes identificadas y analizadas con el apoyo de cientos de referencias bibliográficas consultadas para la elaboración de la obra. Sin lugar a dudas, todo ello fue posible gracias al importante apoyo brindado por la Frei Universtät Berlin, donde ofrece cátedra y el respaldo de una de las mayores financiadoras de la investigación en Alemania, la Deutsche Forschungsgemeinschaft. No debe dejar de mencionarse la ayuda prestada por los curadores de los museos, quienes pusieron en sus manos los ceramios, lo cual no es banal de mencionar, pues como él mismo lo señala “la mayoría de los que hablan e investigan sobre el arte moche no han visto los originales, muchas veces de difícil acceso en colecciones o en depósitos de museos públicos diseminados por el mundo, o no les prestan la atención debida” (Golte 2009:38). La conjunción de ambas limitaciones es superada por el autor para ofrecernos una obra muy documentada, en vista de los últimos y grandes descubrimientos realizados en la costa del Perú.

El libro se abre con una extensa, profunda y pertinente introducción sobre los procesos formativos iniciales que dieron nacimiento a la sociedad moche. Allí, se sostiene que los cambios radicales y revolucionarios deben haberse generalizado con bastante lentitud y que las nuevas formas quizás fueron desarrolladas a partir del fondo simbólico socializado y difundido con anterioridad. El proceso de identificación está destinado a marcar las fronteras y las particularidades del grupo expresado en un lenguaje comprensible a todos. Desde la introducción, el autor tiene la intención de marcar la distancia con el objeto de estudio y dejar claro el alejamiento cultural que lo separa (por extensión a nosotros) de los artesanos y artistas mochicas, quienes eran hábiles comunicadores de ideas cosmológicas y de comprensión de su mundo, de ahí que tanto los “productores como los receptores estaban familiarizados a esas reglas porque pertenecían a una tradición cultural común” (Golte 2009:18). Insiste en aproximarnos a las imágenes alejándose de la comprensión ingenua proveniente de nuestras propias categorías. Se busca con ello mostrar, reiterativamente, la tensión que conoce el investigador al evitar que su imaginario invada su análisis de las imágenes. En ese sentido, el libro entrama, desde el principio hasta el final, una doble inquietud: dotarnos de una metodología para la comprensión de la iconografía y la cultura moche desechando las ideas etnocéntricas que han imperado en gran parte de la literatura producida con anterioridad a su libro. Su propuesta, entonces, es planteada como un modelo para entender la cosmovisión y las culturas de los Andes Centrales.

La principal tesis apunta a demostrar que “La cerámica mochica es un medio que construye sentido con objetos tridimensionales” (Golte 2009:20). De este planteamiento resulta una doble enseñanza: si no reconocemos la parte bidimensional del ícono y la dimensión tridimensional de una efigie o escultura adolecemos de una falla inicial al relacionar la temática y las expresiones iconográficas. Sólo así reconocemos que los personajes representados son identificados por los atributos que poseen. Este procedimiento, paradójicamente, no fue problematizado por los arqueólogos e historiadores del arte debido a su familiaridad con el arte europeo ampliamente difundido en los estudios iconográficos. En este punto, parece pertinente subrayar su postura de tomar en cuenta y en serio la condición de los ceramios moche como objetos tridimensionales. Tan en serio lo asume, que la totalidad del libro abunda en infinidad de ejemplos para convencernos de su utilidad. Pero resulta que, si bien este aspecto es central, no es menos importante su demostración acerca del manejo que tenían los artesanos mochicas del tiempo y del espacio para establecer un lazo entre vivos y muertos bien representados en los ceramios. En esta brecha, Golte ahonda en consideraciones teóricas acerca de la historia, la cual es capital para situar las imágenes mochicas, pues estas tienen un lugar en la larga historia de desarrollo de convenciones y representaciones. De ahí que enfáticamente afirme que los moches “no son creadores ex-nihilo”, razón por la cual es imprescindible no aislar las piezas del contexto y universo de la cultura moche (Golte 2009:25).

Entre los hallazgos destaca la ubicación del lugar desde el cual se debe iniciar la lectura de las imágenes dibujadas en los ceramios (principalmente botellas). Esta identificación tiene trascendencia en la medida que sólo a partir de ello es posible restituir el panel representado en la botella de acuerdo a un orden lógico. Gracias a ese procedimiento, al parecer sencillo, son recuperadas las imágenes en su totalidad para poder comprender su narrativa. Restitución íntegra que ayuda a identificar y entender la secuencia de escenas para poder ir entendiendo, paulatinamente, sus mensajes. En esa línea, Golte presta una especial atención a los lugares que ocupan cada una de las imágenes, sin descuidar por ejemplo los lugares menos expectantes como la base o las asas. No deja de mencionar los lugares vacíos cuyo papel es necesario para la transmisión de sentido, lo que significa que se los debe tener presentes porque son parte del panel y juegan un rol significativo. Y este aspecto deja establecida la idea de que los pintores moche no cubrían las superficies con pinturas sin un propósito bien definido. Se detectó que en algunos ceramios se quiso connotar un encuentro de contrarios complementarios en un juego entre imágenes de arriba frente a imágenes de abajo. Para explicar esta oposición de contrario, el autor se sumerge en los principios andinos de los cuales extrae la explicación de que se trataría de una especie de tinku, es decir, el interface que se produce en el encuentro de opuestos. Golte establece la relación estrecha entre forma del ceramio y narrativa desplegada en imágenes. Son aspectos que podrían parecer evidentes, pero son difíciles de manejar. Ahí es donde Golte abre un gran debate con los estudiosos de la cultura moche, Donna McClelland y Christopher Donnan, porque en sus trabajos las representaciones de los paneles que presentan son incompletas, tal como el autor lo demuestra. En realidad, la totalidad del libro apunta a mostrar las grandes fallas metodológicas en los estudios a lo largo del tiempo. En particular, cuando revisita los temas y las piezas moche utilizadas por otros investigadores estadounidenses con quienes tiene varios desacuerdos fundados en lecturas opuestas de las representaciones realizadas por los artesanos moches.

En suma, se trata de una obra muy útil por su propuesta metodológica para abordar un estudio iconográfico en los Andes. La fuerza radica en la articulación de cada una de las partes como un todo donde la sucesión de imágenes dibujadas y las reflexiones forman una unidad y no simplemente elementos yuxtapuestos. Hubiera sido interesante, dada la enorme cantidad de imágenes utilizadas, un complemento cuantitativo con el análisis de algunas variables, lo cual sin lugar a dudas también habría ofrecido muchas luces sobre esa base de datos que ha reunido más de 50.000 imágenes. En todo caso, el acercamiento individualizado, detallado y reflexivo propuesto en esta importante obra deja abiertas numerosas vetas a explorar. Al mismo tiempo, habría sido importante la edición con excelentes fotografías que si bien han sido reproducidas en innumerables libros de arte prehispánico, cobrarían otro sentido a la luz de la densa e inteligente propuesta de Golte para entender los mensajes de los artesanos mochicas.

Beatriz Loza – Directora de Investigación del Instituto Boliviano de Medicina Tradicional Kallawaya. La Paz, Bolivia. E-mail: lozaquipu@yahoo.es

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O jogo de Deus, do homem e do bicho – GOMES (RHR)

GOMES, Frederico (Org.). O jogo de Deus, do homem e do bicho. Rio de Janeiro: Ed. UERJ/Léo Christiano Editorial, 2011. Resenha de: BENATTE, Antonio Paulo. 300 Revista de História Regionalv.16, n.1, p.298-303, 2011.

Acaba de vir a lume um pequeno e precioso livro intitulado O jogo de Deus, do homem e do bicho. Além de textos de Léo Christiano, Alexei Bueno, Italo Moriconi, Cássio Loredano, Leonardo Filipo e Frederico Gomes, a obra traz uma amostragem da poesia e da iconografia do jogo do bicho na cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX e inícios do XX. A cuidadosa impressão em papel couchê, com design e projeto gráfico de Mary Paz Guillén, valoriza as estampas coloridas de um artista anônimo, garimpadas no acervo dos colecionadores Carlos Augusto Ribeiro de Camargo e Julio Diniz Andrade Pinheiro.

As imagens representam animais humanizados e colocados em situações antagônicas – como nas fábulas de Esopo, Fedro e La Fontaine – e remetem a variadas situações do cotidiano carioca e brasileiro: a falta de ética na política, as relações desiguais de poder, as conjunturas econômicas que penalizam os mais pobres, os dramas das relações amorosas, etc. Os poemas, curtos e ao gosto popular, são invariavelmente acompanhados por um palpite para uma “fezinha” (“veja o n. 8”, “veja o n. 14”) e também aludem com humor a situações do dia-a-dia. Ambos, poemas e imagens, vinham de brinde nos maços de cigarros Veado, produzidos e comercializados pela Companhia Manufactora de Fumos, situada numa cidade que não existe mais (muito embora alguns personagens e situações persistam até os dias de hoje). Eis, por exemplo, “O elefante e o camelo”:

O câmbio, senhor Camelo, Não passa duma alcatéia De lobos que nos rodeia.

É o nosso pesadelo! Para o baixar, ou mantê-lo, Dos espertos à feição, Roda, gira, corcoveia Mente, engana, trapaceia, Uma enorme multidão Desde o banqueiro ao zangão! Adivinha, ó Zé Pacato Onde diabo está o gato! (Veja o n. 8) Ou este outro, “O cachorro e o gato”: Só política ou dinheiro Podem entre gato e cão Formar a concentração E ser o casamenteiro.

Passeiam de braço dado Os figadais inimigos Parecem velhos amigos, Ou um casal bem casado.

Com eles ninguém se estrompe Quem não conhecer que os compre. (Veja o n. 14)

O livro é muito bem vindo. Primeiro porque, como dizia o poeta Murilo Mendes, o homem é o único animal que joga no bicho (o bicho, portanto, fala do que é humano e social); segundo, porque é apresentado como o primeiro de uma coleção, a Memória iconográfica do jogo do bicho no Rio de Janeiro. Quando nos damos conta de que muitos dos grandes ilustradores cariocas e brasileiros – como Angelo Agostini, J. Carlos e outros – empunharam penas e pincéis para Antonio Paulo Benatte representarem o universo lúdico, onírico e mágico do dito jogo, podemos esperar outras publicações de importância não apenas estética como histórica. Tratam-se, em suma, de fontes importantes para a compreensão de um dos fenômenos socioculturais mais complexos do Brasil moderno e contemporâneo. Terceiro porque, simplesmente, não se pode compreender o Brasil dos últimos 120 anos, sua cultura e instituições, sem compreender o denso imaginário associado ao jogo do bicho. E não vai aqui nenhum exagero, que este resenhista não joga, nem é cambista ou bicheiro.

Apesar de combatido e de ter perdido quase que completamente sua aura “romântica”, o bicho faz parte da realidade brasileira desde a década de 1890, acompanhando de perto todos os percalços de nossa atribulada história republicana.

Esse jogo – a maior contribuição do homo brasiliensis ao patrimônio lúdico e contravencional da humanidade – é um fato social total, enraizado profundamente em nossa cultura; ele faz rizoma com uma ampla camada de real e de imaginário, de concreto e de simbólico, de prosaico e de poético, de patético e de onírico; inextirpável, é uma verdadeira instituição tupiniquim, articulada a muitas outras instituições, como o carnaval, o futebol, a música popular, a política, a religião, a economia, a polícia, a malandragem, a bandidagem e por aí vai.

Cedo os observadores chamaram a atenção para a complexidade de um fenômeno que, no começo do século passado, já se espalhara por todo o país. Em 1935, o folclorista Oswaldo Cabral aludia a uma prática já solidamente estruturada: O jogo é feito por toda a parte, quando as autoridades policiais não se encontram nas fases agudas das perseguições…

Há cambistas, agentes, book-makers, “bicheiros”, como se diz na linguagem popular, pelas ruas, praças, nos cafés, em casas lotéricas, em cigarrarias e engraxatarias, nos mercados, nos negócios, nas “vendas” e “verduras”, em toda a parte, afi nal […]1

O jogo de Deus, do homem e do bicho Alguns observadores associaram o jogo à alma do brasileiro, um de seus traços de caráter e signos de identidade.

Em Brasil, país do futuro (1941), o escritor austríaco Stefan Zweig admirou-se do “quão profundamente [a] paixão pelo azar corresponde ao caráter sonhador deste povo”. Ele se refere de modo geral às loterias e particularmente ao bicho: Esse jogo, talvez precisamente por ser proibido, invadiu todos os círculos sociais: toda criança no Rio, mal havia aprendido na escola a contar, já sabia que número correspondia a cada bicho e sabia dizer toda a série de bichos melhor do que o alfabeto.2 O sociólogo francês Roger Caillois, no fi nal dos anos 1950, reelaborou uma ideia tornada então verdade científica: Jogar é renunciar ao trabalho, à persistência, à poupança e aguardar a jogada feliz, que, num ápice, proporciona aquilo que uma extenuante vida de labor e privação não concede, se não se tiver sorte ou não se recorrer à especulação, que, por sua vez, depende da sorte.

Caillois considera que “O jogo brasileiro tem a vantagem de mostrar claramente as relações entre a alea e a superstição”; e, referindo-se à sociedade brasileira, conclui: A paciência e o esforço, que proporcionam um lucro pequeno, mas seguro, são substituídos pela miragem de uma fortuna instantânea, a possibilidade súbita do ócio, da riqueza e do luxo. Para a multidão que trabalha penosamente sem acrescentar algo de visível a um bem-estar muito relativo, a oportunidade do grande prêmio aparece como a única forma de um dia poder sair de uma condição humilhante e miserável.

O jogo escarnece do trabalho e representa uma solicitação rival que, pelo menos nalguns casos, assume importância bastante para determinar em parte o estilo de vida de uma sociedade.3

Poder-se-ia multiplicar os exemplos da problematização do jogo no pensamento social brasileiro, de Gilberto Freyre a Roberto DaMatta, de Afonso Arinos de Melo Franco a Vianna Moog, sem que se esgotem as possibilidades de análise. A historiografia, como de praxe, chegou atrasada (não era um tema academicamente digno, nem à direita nem à esquerda, no tempo em que essas palavras ainda significavam alguma coerência ideológica); felizmente, alguns historiadores mais livres de preconceitos vêm se detendo sobre a trajetória do bicho, cientes de que é impossível compreender as práticas e representações em torno do jogo sem apreender- lhe a dinâmica cultural específica: não se trata, é óbvio, de apenas mais um caso de polícia, repressão e resistência.

Por isso, a publicação de textos e imagens como os resgatados nessa obra é importante, pois evidencia a presença do jogo na cultura por um viés muito diferente dos discursos jurídico-policiais, da imprensa “burguesa” ou dos moralistas que trataram da questão da jogatina desde o final do século XIX.

Os discursos mais cientificistas não deixaram de associar a invenção do Barão de Drummond a “elementos psicológicos” das raças “primitivas” que compuseram, junto com o branco europeu, o substrato étnico e cultural da população brasileira. A crença na sorte, atitude mental essencial na prática dos “jogos de azar” ou de alea (e o bicho é essencialmente uma loteria ou um “jogo de azar”), foi vista como incompatível com uma mentalidade esclarecida e com uma atitude racional perante a vida e o mundo, a começar pelo mundo do trabalho.

Para as elites modernizadoras e os sacerdotes da nova religião do progresso, a crença na sorte – a ideia mesma de “salvação pelo acaso” – foi interpretada como uma forma de persistência residual de um modo de pensar tradicional, espécie de “mentalidade pré-lógica” que obstava o progresso do país e a sua inclusão no concerto das nações modernas, industrializadas e civilizadas. Nas práticas lúdicas populares, esses “pedagogos da prosperidade” (como diria Sérgio Buarque de Holanda) liam um sintoma do atraso psicológico e cultural que separava o povo brasileiro do homo oeconomicus capitalista, representado como modelo virtuoso do trabalhador ideal, produtivo e econômico. Nesse sentido, o fim da religião do progresso, a crise dos grandes modelos explicativos e a falência dos valores, ideários e imaginários da modernidade têm propiciado uma melhor compreensão do que anteriormente só se nos aparecia como um obstáculo à mudança ou um signo do arcaísmo das massas ignaras.

Muitas explicações têm sido dadas sobre o complexo do bicho; não é o lugar aqui para ensaiar uma própria. Mas, sem querer endossar nenhuma metafísica, é possível afirmar que a crença na sorte é uma dessas atitudes profundas, uma constante antropológica de longuíssima duração na história, e para as quais chamaram a atenção os historiadores das mentalidades; atitudes inseridas em quadros mentais resistentes aos movimentos da sociedade, e que se transformam mais lentamente que as conjunturas econômicas e os acontecimentos políticos.

Seja como for, o livro O jogo de Deus, do homem e do bicho é uma contribuição de relevo para os leitores curiosos de nossas coisas, boas ou ruins, e principalmente para os eruditos estudiosos de nossa zoologia cultural. Em tempo: a obra é também uma comemoração dos 60 anos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), o que por si só justificaria sua publicação.

Antonio Paulo Benatte – Pós-Doutor em História pela UNICAMP; pesquisador-colaborador da mesma instituição. Professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-mail: apbenatte@uepg.br.

História e Iconografia | SÆCULUM – Revista de História | 2008

Prezado (a) Leitor(a),

Está em suas mãos o número 19, de Sæculum, a revista do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UFPB. Nesse número, apresentamos o dossiê História e Iconografia que, numa das definições mais clássicas, significa “arte de representar por meio da imagem”. E. H. Gombrich se reporta à “representação pictórica” para nomear o seu mais famoso livro no duplo sentido de “arte e ilusão”. Irwing Panofsky foi um inovador no método iconológico que ultrapassa a simples imagem narrada dando um novo “significado às artes visuais”.

Seis artigos compõem o dossiê História e Iconografia, que estão assim estruturados: abrindo o volume, o de Thereza Baumann (Museu Nacional/UFRJ), discute as primeiras imagens européias sobre o Novo Mundo e seus habitantes; em seguida, o de Isis Pimentel de Castro (UFMG), analisa telas de Pedro Américo e Vitor Meireles; na seqüência, o de Maraliz de Castro Vieira Christo (UFJF), versa sobre a tela A Batalha de Campo Grande (1871), de Pedro Américo; logo após, o de Robson Xavier da Costa (UFPB) tem como foco a pintura Naïf, de artistas paraibanos contemporâneos; segue-se o artigo de Emerson Dionísio G. de Oliveira, que aponta para a representação iconográfica do mito bandeirante, na obra de Benedito Calixto; e, por fim, o de María Dolores Fuentes Bajo e María Dolores Pérez Murillo, apresenta a memória filmada da América Latina através de uma significativa filmografia. Leia Mais