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Language, Ideology, and the Human: New Interventions – BAHUN; RADUNOVIC (B-RED)
BAHUN, Sanja; RADUNOVIC, Dusan (Eds.). Language, Ideology, and the Human: New Interventions [Linguagem, Ideologia e o Humano: Novas Intervenções]. Farnham, Surrey: Ashgate, 2012. 250 p. Tradução de Maria Helena C. Pistori. Resenha de: THOMSON, Clive. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.12 n.3 São Paulo Set./Dec. 2017.
Esta coleção de artigos apresenta algumas qualidades marcantes. Apesar disso, considerei difícil fazer esta resenha e tentarei explicar por quê. Em sua introdução (intitulada “Introducing, Intervening, and Introspecting” [Introduzindo, Intervindo e Interiorizando], Sanja Bahun e Dusan Radunivic, organizadores da coletânea, afirmam que o desafio que apresentaram aos colaboradores convidados foi explorar e percorrer os “orifícios” e “interstícios entre a linguagem, a ideologia e seus produtores e renegociadores humanos” (p.1)1. Os organizadores descrevem a diversidade de enfoques utilizada pelos colaboradores e assinalam com franqueza que “[…] as discussões de Language, Ideology, and the Human são notadamente heterogêneas” (p.8)2. Essa descrição dos doze capítulos corresponde exatamente à minha impressão depois da primeira leitura. Eu tinha notado que a natureza heterogênea da coletânea se manifesta tanto no nível das teorias que fundamentam os estudos quanto nos objetos de estudo escolhidos pelos colaboradores. Por exemplo, a Parte I (Revisiting [Revisitando]), cujo foco é principalmente teórico e filosófico, contém seis estudos, que envolvem, em graus variados e de modos muito interessantes, Kierkegaard, Platão, Nietzsche, Saussure, Wittgenstein, Searle, Chomsky, Kant, Zelinskii, Derrida e Carl Schmitt. Na Parte II (In the World, Prospecting [No mundo, prospecções]), há cinco capítulos estimulantes nos quais os autores desenvolvem análises mais concretas e específicas de uma variedade de fenômenos localizados em diferentes lugares geográficos/culturais: o ensino da Língua Portuguesa no Timor Leste, a lei consuetudinária na África do Sul, o turno discursivo e o corpo, o cosmopolitismo nas modernas sociedades europeias, e o tema do perdão num filme sul-coreano e o pensamento de Arendt. O posfácio de Ernesto Laclau mostra uma defesa convincente e provocante da necessidade de se criar um novo modo de pensar a respeito da ideologia, da linguagem e do homem.
Na segunda parte da introdução, Bahun e Radunovi explicam com detalhes suficientes as semelhanças entre as abordagens e metodologias dos autores da obra: “Todos esses enfoques implicam […] que há uma conexão íntima entre ideologia e linguagem e, especificamente, entre uma ideologia dentro da qual um indivíduo vive e sua visão da linguagem” (p.3)3. A coletânea se apoia num “impulso velado” que a orienta – um desejo de questionar a “viabilidade das fronteiras disciplinares” e esclarecer os “problemas com o modelo de estudos baseado na divisão de disciplinas” (p.9)4. A reunião de artigos também é descrita da seguinte forma pelos organizadores: “O desejo de tratar o pluralismo sem promover conciliações não conciliáveis nem assimilações numa coletividade benevolente favorável emerge poderosamente das páginas deste volume com muita força” (p.10)5. A questão de saber “como e por que fazemos esses estudos” é outro tema geral que percorre implicitamente todos os artigos, de novo de acordo com os organizadores. Além dessas similaridades amplas alegadas como caracterizadoras (de forma velada ou implicitamente) de todos os artigos, os organizadores identificam alguns subtemas que caracterizam alguns dos artigos, como: “A questão de saber se a verdade permanece o valor central em enunciados significativos é tratada numa série de capítulos neste volume […]” (p.11)6; “[…] duas contribuições [de Jean-Claude Monod e de Rey Chow] tratam especificamente da questão da subjetividade e da importância de sua contribuição relativa e/ou instável na esfera social” (p.11)7.
A dificuldade para mim, como resenhista, ocorre quando busco entender as afirmações opostas feitas pelos organizadores, que declaram, por um lado, que falta coerência às “discussões” na coletânea, enquanto, por outro lado, que os artigos revelam vários pontos comuns. Os organizadores, talvez inconscientemente, criaram uma situação na qual os leitores serão tentados, como eu fui, a perguntar qual a import6ancia relativa que deveria ser dado a cada opção. Depois de ler o volume cuidadosamente várias vezes, minha conclusão é que eu o vejo composto de doze artigos que têm muito pouco em comum. Não é que os organizadores estejam errados ao mencionar alguns fios condutores que percorrem alguns dos artigos. Pelo contrário, minha impressão é que esses fios são tão gerais que poderiam se referir a quase qualquer coletânea de artigos que se proponha interdisciplinar. Em outras palavras, não apenas a defesa dos organizadores da coerência da coletânea acaba por ser algo um pouco inquietante, mas ela me leva a notar algumas outras inconsistências e incoerências às quais retornarei no final de minha resenha.
Vários artigos da coletânea me parecem especialmente substanciais e originais. O artigo de Leonardo F. Lisi (The Politics of Madness: Kierkegaard’s Anthropology Revisited [A política da loucura: a antropologia de Kierkegaard revisitada]) apresenta lucidamente a definição de “o humano” (uma síntese do infinito e do finito e de liberdade e necessidade) e mostra como Deus funciona, em última análise, como uma alteridade radical. Essa alteridade tanto evita fechamento ideológico como torna necessário buscar o fechamento. O que é produtivo no pensamento de Kierkegaard (isto é, suas “implicações para política”, p.248) é que a contradição entre pensamento e experiência (isto é, o conflito básico para os seres humanos) pode resultar numa “falha de compreensão do sentido” (p.34)9. O artigo termina com uma sugestão cautelosamente otimista de que a incerteza, a ambiguidade e a falha podem “significar o fim da política ou sua reinvenção numa nova forma” (p.36)10. O admirável artigo de Craig Brandists (Rhetoric, Agitation and Propaganda: Reflections on the Discourse of Democracy (with some Lessons from Early Soviet Russia) [Retórica, agitação e propaganda: reflexões sobre o discurso da democracia (com algumas lições do período inicial soviético da Rússia])) tem como foco o modo como a propaganda funcionou durante a crise da democracia na União Soviética dos últimos anos da década de 1920, quando o discurso do Partido tornou-se um discurso monológico (isto é, ideológico) por excelência. O artigo bem elaborado de Aurora Donzelli (The Fetish of Verbal Inflection: Lusophonic Fantasies and Ideologies of Linguistic and Racial Purity in Postcolonial East Timor [O fetiche da inflexão verbal: fantasias lusofônicas e ideologias da pureza linguística e racial no Timor Leste pós-colonial]) demonstra concretamente como a transmissão de um sistema abstrato de regras gramaticais pode ser simultaneamente um instrumento de assimilação e o marcador da distinção racial e social (p.151). O contexto é o Timor Leste, quando a língua portuguesa estava sendo ensinada em sala de aula. Galin Tihanov (Cosmopolitanism: Legitimation, Opposition and Domains of Articulation [Cosmopolitismo: legitimação, oposição e domínios de articulação]), enquanto explora a diferença entre legalidade e legitimidade, cita Schmitt: “Através de uma confiança cega na legalidade, Schmitt defende que a sociedade ‘se torna incapaz de reconhecer o tirano que chega ao poder por meios legais'” […] (p.194)11. Tihanov sugere que “a legimidade deve ser compreendida como algo deferido, como algo com o qual se pode estar de acordo prospectivamente” (p.196)12. O artigo de Tihanov é instigante e potencialmente muito útil para nos ajudar a compreender como alguns discursos autoritários atuais funcionam.
Os quatro artigos que acabamos de mencionar, além de oferecer contribuições importantes em tópicos específicos, são exatamente aqueles que ecoam, de modos surpreendentes, certos debates políticos de 2017 e, portanto, apresentam “implicações para a política” – para usar a expressão de Lisi que citei no parágrafo anterior. De fato, sou tentado a afirmar que o valor principal desta coletânea é permitir nosso engajamento crítico com importantes questões da arena política contemporânea. Estou pensando especificamente nos intensos debates políticos relativos à recente decisão do Reino Unido de deixar a União Europeia e os debates sobre democracia, liberdade de expressão e imprensa que estão ocorrendo, especialmente nos Estados Unidos, mas também na França e em outros países europeus. Nesses contextos, é particularmente deprimente observar os discursos populistas e antidemocráticos vindos de indivíduos e partidos políticos da direita. Vários artigos nesta coletânea têm o potencial de auxiliar a desconstruir afirmações como as seguintes, atualmente à disposição na Casa branca: “A imprensa é o inimigo do povo”; “Notícias falsas não dizem a verdade”; “A mídia desonesta constrói uma história falsa atrás da outra”; “Nós não vamos deixar que notícias falsas nos digam o que fazer, como viver ou no que acreditar. Somos livres e independentes e faremos nossas próprias escolhas”. Esses enunciados são, com certeza, o tipo de discurso ideológico que Brandist, Donzelli, Gorman, Parsons e Laclau mencionam em seus artigos. Segundo Laclau coloca, é por meio de tais discursos que “a classe hegemônica é capaz de transformar seus propósitos particulares naqueles da sociedade como um todo” (p.245)13. A fim de compreendê-los e ir contra eles, eles precisam primeiramente ser compreendidos dentro do contexto institucional no qual foram produzidos. Não é útil vê-los somente como o produto de uma mente psicótica ou caótica.
No último capítulo de Language, Ideology, and the Human: New Interventions (Afterword: Language, Discourse, and Rhetoric [Posfácio: linguagem, discurso e retórica]), Ernest Laclau mostra por que é importante ter uma clara compreensão de como “a imbricação entre a linguagem e a realidade humana é bem mais íntima do que a noção de linguagem como uma categoria regional sugere” (p.237)14. Laclau conclui seu argumento sugerindo duas direções possíveis que poderíamos tomar em nossos esforços para desconstruir tipos de retórica como aquele que tem sido produzido pela administração Trump. Primeiramente, é necessário compreender como os sentidos se constroem: “Se a objetividade estivesse fundamentada em bases perspícuas ela não seria ambígua: o signo seria um simples representante de algo que o precede […] (Um significante particular) significa uma totalidade que torna possível o sentido, mas uma totalidade que é um objeto impossível. Então, a significação é possível apenas ao significar sua própria impossibilidade” (p.245)15. Quando Trump afirma que: “Os vazamentos são reais mas as histórias da mídia são falsas”, ele cria um tipo de lapso que introduz o real como um terceiro termo (perturbador), subvertendo então a “lógica” binária (verdadeiro/falso) que qualifica suas outras afirmações (por exemplo, “As notícias falsas não dizem a verdade”). Uma compreensão do modo como os sentidos funcionam precisa, portanto, ser acrescida com uma chamada para a psicanálise. Isso é o que Laclau está propondo quando escreve: “Bem, nós estamos no epicentro de uma transformação intelectual cujos dois pontos iniciais básicos são a noção de langue de Saussure e a descoberta do inconsciente de Freud” (p.242)16.
Acho que eu seria omisso se não fizesse alguns comentários críticos a respeito dos modos como esta coletânea foi organizada. A maioria dos capítulos parece ter sido preparada e editada de acordo com as convenções acadêmicas contemporâneas (isto é, estão escritos num estilo razoavelmente padrão e uniforme e são acompanhados de notas de rodapé adequadas, com referências bibliográficas completas e detalhadas), enquanto outros se caracterizam por um estilo oral que sugere terem sido originalmente textos de conferências e não artigos. Alguns capítulos (especialmente aqueles de Brandist e Tihanov) são admiráveis por seu estilo “pedagógico” (considero-os pedagógicos pelo cuidado que tomam ao apresentar uma argumentação coerente e também porque os termos críticos básicos utilizados nos argumentos são explicados e contextualizados). Esses artigos são mais facilmente acessíveis a uma audiência de alunos no último ano da graduação e na pós-graduação, ou para leitores que talvez não tenham uma base sólida nos debates da teoria crítica atual.
Fica claro que os organizadores fizeram um esforço para escolher um título para a coletânea que cumprisse dois objetivos: criar uma impressão de unidade para o volume e indicar, tão precisamente quanto possível, seus temas principais. Um exame cuidadoso do conteúdo, porém, revela que apenas quatro artigos (Leonardi F. Lisi, Elizabeth Parsons, Aurora Donzelli, Ernest Laclau) têm como foco tratar, de um modo explícito e substancial, dos três tópicos mencionados no título – linguagem, ideologia e o ser humano. Dois artigos (David Gorman, Craig Brandist) tratam de assuntos relacionados a linguagem e ideologia. Dois artigos (Monina Wittfoth, Galin Tihanov) trabalham principalmente com a linguagem. Dois artigos (Jason Glynos, Rey Chow) focam questões de linguagem e do ser humano. Dois artigos (Jean-Claude Monod, Drucilla Cornell) tratam do humano mas não se envolvem com questões de ideologia ou linguagem – pelo menos, não explicitamente. Em outras palavras, há certa desconexão entre o título do volume e o foco de alguns dos artigos. Um título melhor poderia ser, talvez, Language, Rhetoric, and Subjectivity [Linguagem, retórica e subjetividade].
Desvia a atenção do leitor ver um grande número de erros tipográficos, especialmente na introdução. Mostro aqui apenas uma seleção de erros típicos17 (minha correção está em itálico): “In early 2000, merely thirty days [No início dos anos 2000, simplesmente trinta dias] (p.1); “not only the objectivist view of language” [não apenas a visão objetivista da linguagem] (p.2); “and the pre-Socratics” [e os pré-socráticos] (p.3); “such an open definition” [uma definição tão aberta] (p.3); “informed by the belief” [informado pela crença] (p.4); “revisits precisely (delete “to”) this point” [revisita (apague “a”) precisamente este ponto] (p. 5); “naturally coexist with us” [naturalmente coexiste conosco] (p.7); “frame through which” [moldura através da qual] (p.54); “bureaucracy were imposed” [burocracia foram imposta] (p.89); “Schmitt draws a distinction” [Schmitt traça uma distinção] (p.106); “the decision to choose as the” [a decisão de escolher como o] (p.138). Há também muitas frases inadequadas18 no volume, como as seguintes: “And it still endures in the declarations, in the political literature of fraternité, in the manifestos of French republicanism, and the similar” (p.105); “It might be that I have the impression, just now, at the time when the markets dictate even the decisions who should be political governors (in Italy or Greece, for instance), that Schmitt’s fear that the liberal “depolitization” in favour of the economic forces would culminate in a “liberalism” which can do without “democracy” has received a new and terrible actuality […]” (p.111).
Vale a pena a leitura de todos os artigos da coletânea. Muitos deles desenvolvem uma boa argumentação, são substanciais e originais. E, como tentei apontar, as ideias expressas por alguns colaboradores poderiam auxiliar a realizar o importante trabalho de envolvimento e desconstrução de discursos essencializadores/ideológicos que têm sido produzidos atualmente na esfera pública. No entanto, a meu ver, a coletânea, como um todo, não corresponde completamente às declarações dos organizadores a respeito de sua coerência geral ou de sua capacidade de ir além das teorias atuais em relação à “íntima conexão” entre linguagem e ideologia.
19Tradução de Maria Helena Cruz Pistori – mhcpist@uol.com.br
1Texto no original: “the interstices between language, ideology, and their human producer and re-negotiator”
2Texto no original: “”[…] the discussions comprising Language, Ideology, and the Human are markedly heterogeneous”.
3Texto no original: “”All of these approaches imply […] that there exists an intimate link between ideology and language, and, specifically, between an ideology within which an individual operates and his or her view of language”.
4Texto no original: “the viability of disciplinary boundaries”; “problems with the model of scholarship based on disciplinary division”.
5Texto no original: “This urge to address pluralism without promoting either irreconcilability or assimilation to a benign collectivity emerges powerfully from the pages of this volume”.
6Texto no original: “The question whether truth remains the central value in meaningful utterances informs a range of chapters in this volume […]”.
7Texto no original: “[…] both contributions [Jean-Claude Monod and Rey Chow] specifically address the question of subjectivity and the importance of its relational, and/or unstable contribution in the social sphere”.
8Texto no original: “implications for politics”.
9Texto no original: “failure to grasp meaning”.
10Texto no original: “spell the end of politics or its re-imagination in a new form”.
11Texto no original: “Through blind reliance on legality, Schmitt’s argument goes, society ‘disables itself from recognizing the tyrant who comes to power by legal means'” […].
12Texto no original: “legitimacy has to be understood as something deferred, as something that can be agreed to prospectively”.
13Texto no original: “the hegemonic class is able to transform its own particular aims into those of society as a whole”.
14Texto no original: “the imbrication between language and human reality is rather more intimate than the notion of language as a regional category suggests”.
15Texto no original: “If objectivity had an ultimate, perspicuous ground, it would be unambiguous: the sign would be a mere representative of something preceding it. […] (A particular signifier) signifies a totality which makes possible signification, but a totality which is an impossible object. So signification is possible only by signifying its own impossibility”.
16Texto no original: “Well, we are at the epicenter of an intellectual transformation whose two basic starting points are Saussure’s notion of langue and Freud’s discovery of the unconscious”.
17N. do T.: As correções sugeridas pelo resenhista referem-se primordialmente a questões gramaticais e de sintaxe. A tradução das frases infelizmente não leva à compreensão dos problemas que o autor da resenha indicou.
18N. do T.: Decidiu-se não traduzir as frases, tendo em vista a especificidade do uso da língua inglesa percebida pelo articulista, ao declarar serem as frases awkward (inadequadas, estranhas, “desajeitadas”).
Clive Thomson – Professor of University of Guelph, Guelph, Ontario, Canadá; cthomson@uwo.ca.
Corpo em evidência: a ciência e a redefinição do humano – ORTEGA; ZORZANELLI (TES)
ORTEGA, Francisco; ZORZANELLI, Rafaela. Corpo em evidência: a ciência e a redefinição do humano. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2010. 192 p. Resenha de: AMARAL, Jonathan Henriques do. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 10 n. 3, p. 561-565, nov.2012/fev.2012.
Talvez não seja necessário possuir um conhecimento teórico amplo para perceber a importância que tem sido atribuída ao corpo na contemporaneidade. Em programas televisivos, revistas semanais ou pesquisas científicas, é possível constatar o papel central desempenhado pelo corpo em explicações sobre quem somos, quem podemos ser (sim, a ‘natureza’ corporal não é mais um limite) e como devemos administrar nossas vidas.
É justamente sobre essa importância do corpo que Francisco Ortega e Rafaela Zorzanelli dissertam nesse livro. As complexas relações entre ciência, corpo e saúde consistem no fio condutor que perpassa e une os quatro capítulos da obra. Escrito em linguagem acessível, mas sem prescindir da profundidade das informações apresentadas, o livro consiste em referência fundamental para quem se interessa pela abordagem das ciências humanas para a compreensão do corpo.
No primeiro capítulo, os autores apresentam um histórico das tecnologias de visualização do interior do corpo – desde o século XV até os dias de hoje. O desenvolvimento dessas tecnologias está relacionado à crença de que a visão seria um sentido dotado de objetividade, de modo que, por meio delas, seria supostamente possível ver o interior do corpo exatamente como ele é. Os autores chamam esse ideal de objetividade de ‘mito da transparência’. Contudo, para os autores, o corpo visualizado em seu interior é tudo menos transparente, pois sua complexidade foi acirrada pelos métodos que o tornaram mais visível. Se, por um lado, as tecnologias de visualização possibilitaram obter inúmeras informações acerca do funcionamento corporal, por outro, o corpo continua sendo um mistério, pois muitas destas informações são de difícil entendimento, e há muitas doenças e estados corporais que a ciência médica não consegue compreender.
Graças à crença na objetividade da visão, essas tecnologias têm desempenhado um papel central no diagnóstico de doenças e na produção de verdades científicas sobre o corpo e a saúde. No entanto, as tecnologias de visualização não prescindem do olhar treinado do especialista, e este olhar sempre envolve uma interpretação, a qual nunca é neutra, mas assentada em determinados pressupostos. Por exemplo, as imagens obtidas por neuroimageamento – amplamente difundidas nos meios de comunicação – não consistem em fotografias de cérebros reais, mas na reconstituição de parâmetros estatísticos e matemáticos.
Os autores não deixam de reconhecer os avanços proporcionados pelas tecnologias de visualização para o diagnóstico e tratamento de problemas de saúde, de modo que elas não são, de forma alguma, dispensáveis. No entanto, Ortega e Zorzanelli criticam a abordagem estritamente visual do corpo, em detrimento da compreensão de aspectos subjetivos – que também estão relacionados a doenças, mas não podem ser visualizados por nenhuma tecnologia.
O segundo capítulo inicia com uma reflexão sobre uma mudança fundamental ocorrida na forma de compreender a subjetividade: a ideia de um sujeito habitado por um profundo espaço interior, no qual se encontrariam as explicações para as características individuais, vem dando lugar a uma concepção de subjetividade compreendida em termos corporais e biomédicos, a partir dos quais são explicados nossos comportamentos, nosso caráter, dentre outras características.
O corpo não esconde mais uma identidade interior: ele é a própria identidade. Cada vez mais os indivíduos têm criado suas identidades sociais a partir de critérios baseados no corpo e na saúde, a tal ponto que até mesmo a cidadania se tornou ‘biológica’, conforme expressão dos próprios autores: indivíduos que compartilhem determinadas condições corporais se reúnem para reivindicar tratamentos médicos, acesso a medicamentos e outros serviços. Essa centralidade do corpo na construção da identidade explica por que ele tem sido alvo de constantes intervenções, tanto em sua superfície (através de cirurgias plásticas, dietas, exercícios, tatuagens, dentre outras práticas) quanto em seu interior (que é visualizado em busca de tratamentos médicos).
Termos biomédicos têm sido amplamente difundidos pelos meios de comunicação, integrando- se ao vocabulário popular e sendo utilizados na forma como os indivíduos compreendem e descrevem a si mesmos. A avaliação moral de um indivíduo também se dá a partir dos cuidados que ele toma (ou não) com o corpo e a saúde, de modo que fumantes, obesos, sedentários, dentre outros ‘desviantes’, se tornam objeto de críticas: o fracasso em atingir e/ou manter ideais corporais e de saúde é visto como fraqueza de vontade.
O gerenciamento de riscos vem assumindo grande importância. ‘Saúde’ não é mais sinônimo de ausência de doenças, mas potencialização de estados saudáveis e prevenção de possíveis problemas, através da realização de exames, tratamentos preventivos, dentre outros recursos.
Os conhecimentos da genética, por exemplo, possibilitam averiguar a probabilidade de desenvolvimento de determinadas doenças para, assim, controlá-las. Portanto, a biologia não é mais destino, pois é possível agir sobre o corpo no presente para evitar problemas futuros.
As explicações etiológicas atuais são baseadas unicamente no corpo, como se uma doença tivesse apenas causas orgânicas. O cérebro é um órgão que vem recebendo destaque nessas explicações, e é sobre este destaque que os autores falam no terceiro capítulo. Os seguintes fatores podem explicar o atual prestígio do cérebro: a ascensão de explicações neurocientíficas para perturbações comportamentais e mentais; o desenvolvimento de neuroimagens e seu poder de persuasão perante o público; e a extensão das preocupações das neurociências aos comportamentos morais e sociais.
É nesse contexto que emerge o chamado ‘sujeito cerebral’ – uma nova figura antropológica que se refere a discursos, práticas, formas de pensar sobre si e o outro que partem do pressuposto de que o cérebro é o único órgão necessário para definir o que alguém é. Em outras palavras, é como se o indivíduo fosse o seu próprio cérebro, havendo uma equalização entre a condição de ter um cérebro e ser alguém.
Cada vez mais o ser humano vem sendo definido pela ‘cerebridade’, conforme expressão dos próprios autores. O trocadilho com ‘celebridade’ parece ter sido intencional, pois o destaque que o cérebro vem recebendo, tanto nas neurociências quanto na cultura popular, realmente tem transformado este órgão em uma celebridade.
O sujeito cerebral não se constitui como uma entidade autônoma, que teria vida própria e exerceria efeitos sobre as coisas. O conceito se refere a discursos, formas de pensar, manifestações práticas e teóricas que pressupõem uma visão específica sobre o ser humano, baseada estritamente no cérebro. Essa visão está presente, por exemplo, em debates sobre morte cerebral; em concepções acerca de comportamentos, doenças e experiências; e no surgimento de novas áreas do saber, situadas na convergência entre as ciências humanas e as neurociências, como a neuroeducação e a neuropsicanálise.
Em linhas gerais, a neuroeducação parte do princípio de que a aprendizagem pode ser aprimorada pelo conhecimento de suas bases neurobiológicas. Uma conclusão problemática que se pode inferir dessa premissa é a de que o cérebro seria o único elemento em jogo nos processos de aprendizagem. Já a neuropsicanálise visa à reconciliação entre perspectivas psicanalíticas e neurológicas, buscando obter fundamentação científica para o conhecimento psicanalítico.
Para os autores, não se pode simplesmente descartar o conhecimento neurocientífico na compreensão do ser humano. As neurociências trouxeram, por exemplo, contribuições relevantes para o aprimoramento da aprendizagem de pessoas portadoras de necessidades especiais. O que os autores criticam é a redução do ser humano ao cérebro, visto que há outros fatores envolvidos em nossa constituição enquanto sujeitos.
O capítulo quatro tem como foco as chamadas síndromes funcionais – classificação descritiva que se refere a um conjunto de sintomas corporais que não possuem causas orgânicas.
Uma vez que essas síndromes não podem ser diagnosticadas objetivamente, elas ocupam um status marginal, como se fossem menos importantes ou legítimas por não apresentarem localização precisa no corpo, passível de ser visualizada por tecnologias médicas. Convém lembrar que essa ‘ilegitimidade’ deve ser compreendida em relação a determinados parâmetros, segundo os quais uma doença ‘verdadeira’ deve possuir explicações biológicas e ser atestável por exames, enquadrando-se em diagnósticos ‘objetivos’. Contudo, o fato de uma doença não possuir fundamento biológico não significa que ela não exista, pois pode ser causada por fatores psicológicos e socioculturais.
Graças a essa valorização do conhecimento médico, têm surgido grupos de portadores de determinadas patologias que ‘lutam’ em prol de explicações biológicas para suas doenças, de modo que elas sejam consideradas ‘reais’. Uma das formas de atuação desses grupos é a arrecadação de recursos para financiamento de pesquisas científicas, que descubram as ‘verdadeiras’ causas (isto é, causas biológicas) de suas patologias. As tecnologias informacionais desempenham um papel importante nesse tipo de ativismo, pois possibilitam a aproximação de indivíduos localizados em contextos distintos e o acesso a informações médicas.
Em suma, o livro permite a elaboração de questionamentos sobre a importância que tem sido atribuída ao corpo e à ciência médica.
Utilizando argumentação consistente, os autores demonstram os limites de uma compreensão estritamente biológica dos fenômenos que envolvem o corpo humano. Ora, se o corpo não responde a certas perguntas que a ciência lhe faz, talvez as perguntas a serem feitas sejam outras, envolvendo outros fatores que não os biológicos.
Jonathan Henriques do Amaral – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. E-mail: jonathanhenriques@yahoo.com.br>
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