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A atualidade do acontecer: o projeto dialógico de mediação na hermenêutica de Hans-Georg Gadamer – ARAÚJO (HH)
ARAÚJO, André de Melo. A atualidade do acontecer: o projeto dialógico de mediação na hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. São Paulo: Humanitas, 2008, 240pp. Resenha de: CALDAS, Pedro Spinola Pereira. Hans-Georg Gadamer e a tradição. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 04, p.299-305, março 2010.
O livro A atualidade do acontecer, de André de Melo Araújo, originado de uma dissertação de mestrado defendida na USP, é, sem dúvida, uma contribuição relevante para as reflexões teóricas sobre história e historiografia no Brasil.
Seu principal valor se encontra no esforço do autor em compreender a obra de Hans-Georg Gadamer (1900-2002), sobretudo Verdade e Método, de 1960, para a hermenêutica histórica. Dentre os historiadores brasileiros, ou bem estou bastante desatualizado na bibliografia especializada, ou creio que nenhum se ocupou em escrever um livro inteiramente dedicado a Gadamer.
Isto, por si só, já recomenda a leitura de A atualidade do acontecer,[1] publicado pela editora Humanitas, com apoio da FAPESP.
Mas não é só uma questão de haver-se preenchido uma lacuna. O fato de se publicar, no Brasil, um livro sobre Gadamer escrito por um historiador é uma oportunidade para que se debata intensamente a relação entre a teoria da história e a filosofia, algo tão difícil quanto raro. E, suspeito, a razão desta ausência de debate se deve à forma como nós, brasileiros, e, no caso específico, historiadores brasileiros, herdamos as peculiaridades do contexto intelectual alemão. Mais especificamente, como os historiadores brasileiros, em geral (há sempre as exceções de praxe), reagem ao nome de Martin Heidegger. Somese a isto ao fato de se evitar, mesmo na Alemanha, cautelosamente o confronto entre a teoria da história com o projeto de uma ontologia fundamental de procedência fenomenológica. Jörn Rüsen, por exemplo, um dos grandes nomes da teoria da história na atualidade, talvez ainda nos deva tal embate. [2]Gadamer paga, portanto, um preço alto por ser vinculado a Heidegger. Corrigindo: os historiadores brasileiros é que exigem tal preço, mas que se explica pelo fato de um dos filósofos mais importantes do século XX ser lembrando pela comunidade historiográfica nacional, sobretudo, em duas ocasiões: como um dos precursores filosóficos do linguistic turn e como alguém que não escondeu suas simpatias pelo nacional-socialismo.
Portanto, repito: que um jovem historiador tenha trazido Gadamer para o debate, em forma de livro, é, em si, uma oportunidade a ser aproveitada.
Uma chance para enriquecer o debate na área de teoria da história.
Para além disto, como aborda o autor o tema? Hermeneuticamente, respondo. E o que isto significa? Nas palavras do autor: “(…) este trabalho não consegue escapar de uma apresentação circular. Aqui não se trata de uma exposição sistemática dotada de um começo e de um fim claros, já que o desenvolvimento interpretativo pressupõe a totalidade dos esforços mediadores
Há mais de dez anos estudando teoria e filosofia da história e historiografia alemã, eu mesmo também não posso oferecer uma boa razão por ainda não ter pensando na possibilidade de um confronto entre Heidegger e a teoria da história.
do pensamento” (ARAÚJO 2009, p.19). Um texto hermenêutico é (ou pode ser), portanto, circular. Sua forma de apresentação não é um molde exterior ao conteúdo, mesmo porque, se formos coerentes com o princípio hermenêutico, não há sentido que seja definitivo. Não se trata de relativismo, mas sim de constantemente fazer o esforço de construir o sentido, recuando, deixando-se sempre e novamente ser atingido pelo passado, e jamais tomá-lo como pronto, dado e dito: o processo interpretativo se faz na escrita, não sendo, pois, uma operação exclusivamente mental passada ao papel.
E é a partir deste critério que precisamos compreender também o esforço de André de Melo Araújo, a saber: entre outras possibilidades dadas no pensamento gadameriano, trata-se de entender a historicidade do método, perceber a marca de sua finitude de modo a evitar o que nele se apresenta de meramente instrumental, como algo dado fora de um mundo. É possível, portanto, estabelecer o diálogo entre teoria da história e hermenêutica filosófica tendo, como termo comum, o método. Por inúmeras vezes, o autor mostra o quanto Gadamer critica a redução de uma concepção de história à epistemologia, isto é, a uma noção dicotômica entre sujeito e objeto. Logo no princípio do livro, lê-se: “O fenômeno da história, portanto, não é puro objeto adaptável aos padrões métricos da ciência nem à sua aferição linear e contínua do tempo, mas é refratário à denominação exteriorizante de objeto, de instância alheia à temporalidade que o constitui” (ARAÚJO 2009, p.33).
Aliás, permita-me o leitor a digressão, talvez poucos exercícios hoje fossem mais ricos, na área de teoria da história, do que comparar, por exemplo, a concepção de unidade do método histórico, exposta por Jörn Rüsen em Reconstrução do Passado, com Verdade e Método, de Gadamer. Portanto, uma reflexão de fôlego, como a feita por André Araújo, vem em boa hora. Mais ainda, e sigo com a digressão, pensar linguagem e história a partir de Gadamer implica discutir o problema em bases outras, para além das contribuições de Hayden White e divulgadores. O livro indica que a questão é mais profunda: basta lembrar que Gadamer jamais dispensa a dialética de Hegel, autor tratado pelos “pós-modernos” como se fosse um vírus letal a ser isolado – o que implica dizer que nunca é lido. Dialética, linguagem e história estão juntas em um Gadamer leitor de Hegel, e, felizmente, também no livro de André Araújo.
E, de fato, este é um dos assuntos centrais do livro. Nas palavras do autor: “O caminho de leitura aqui apresentado é balizado pela proposta teórica de validação de um projeto de verdade próprio às reflexões das ciências humanas, cuja possibilidade de compreensão é tecida pela mediação da linguagem” (ARAÚJO 2009, p.17). Verdade e linguagem, portanto, não se excluem.
Todo o argumento do autor se desenvolve em três partes. Cada uma delas abre veredas para muitas discussões. Dentre estas, destaco algumas, pois considero impossível tratar de tudo que suscita discussão e interesse. Espero que o corte não seja arbitrário e caprichoso.
A primeira parte, denominada “A Deformação especular do foco da subjetividade”, talvez tenha o seu eixo na indicação de como o humanismo científico encobriu como pôde “o amargo sabor da finitude” (ARAÚJO 2009, p.26). Na contramão da marcha vitoriosa da ciência, haveria, então, a hermenêutica compreensiva, na qual a finitude se mostra em um horizonte que a torna evidente. E esta finitude, afirma-nos o autor, se mostra em inúmeras experiências: do não entendimento, do reconhecimento de que o outro pode ter razão e de que já estamos inseridos em uma estrutura do tempo e em uma pré-compreensão do mundo. Em uma tradição.
Ainda nesta primeira parte, é digno de elogios, embora eu seja suspeito em fazê-lo dado o meu interesse pelo tema, que o autor dedique tantas páginas ao conceito de Bildung, a partir do qual o embate com o humanismo clássico é feito.3 Segundo André Araújo, o conceito hegeliano de Bildung se faz presente na obra de Gadamer na medida em que “(…) nos remete tanto para a finitude da operação do juízo, para os limites da capacidade de julgar, quanto para a capacidade de cumprir as obrigações para com o outro. Justamente aqui reside, acreditamos, o ponto máximo do interesse gadameriano, cuja hermenêutica se volta para a possibilidade de que o outro tenha razão” (ARAÚJO 2009, p.
43). Some-se a isto o fato do homem culto, para Hegel, ser aquele que conhece do ponto de vista universal – aliás, além de passagens da Propedêutica filosófica, o autor poderia também usar passagens semelhantes da Razão na História, algo que permitiria, inclusive, um debate interessante entre os conceitos de tradição, em Gadamer, e de Espírito, em Hegel. Fica apenas aqui dada a sugestão.
Lamento, apenas, que o autor, no momento em que marca a diferença entre a acepção clássica e a compreensão gadameriana de Bildung, faça-o com demasiada rapidez. Afinal, qual seria a conotação clássica? A de Goethe, Wilhelm von Humboldt, Schiller, e, claro, de Hegel? Se Hegel é um dos representantes eminentes da visão clássica da Bildung, o que Gadamer aproveitaria e o que ele descartaria do projeto hegeliano de formação? Como leitor, fiquei na dúvida se o autor assume a visão de Gadamer exposta em Verdade e Método (cf. GADAMER 1990, p.15-24), ou se a amplia, utilizando outros textos da mesma tradição. Se já dei uma sugestão, agora faço uma pequena provocação: como compreender a obra de Gadamer a partir da idéia de tradição. O ponto é: e se os humanistas estiverem com a razão? Neste sentido, me parece que o autor adota uma postura excessivamente empática com seu autor, como se ele não pudesse não ter razão – algo que, hermeneuticamente, é controverso, na medida em que, segundo o próprio Gadamer em passagem citada por André Araújo, “a interpretação se torna necessária onde o sentido de um texto não se deixa compreender imediatamente” 3 Apenas discordo do autor quando ele afirma, já nas páginas conclusivas, que “a política é exatamente o componente fundamental que se encontra enfraquecido na formulação humanística da Bildung”.
Imagino que o autor tenha se atido à idéia difundida, entre outros, por Fritz Ringer, mas creio que a obra de Wilhelm von Humboldt, importante não somente para a lingüística e para a teoria da história, mas para a teoria política (é considerado uma das referências fundamentais do liberalismo clássico) poderia render pensamentos mais robustos sobre a concepção política de Bildung. De maneira menos direta, o próprio Hegel, de modo algum um liberal clássico, também, em sua Filosofia do Direito, não deixou de usar o termo Bildung.
(apud ARAÚJO 2009, p.168). Ora, não estou a dizer que André Araújo considera o texto de Gadamer “claro como água de riacho”, como diria Rubem Braga, mas que, mesmo adotando a estratégia – essa sim hermenêutica – de escrever de maneira mais elíptica, em que o sentido nunca está dado de antemão, pareceme que não há espaço para impasses e, portanto, incompreensões em Gadamer.
É bem verdade, por outro lado, que André Araújo afirma que Gadamer aproveita de Hegel a idéia de Bildung como superação do imediato, mas sem a dissolução da finitude que ocorreria em Hegel (cf. ARAÚJO 2009, p.53).
Ainda na primeira parte, o autor discute outro ponto fundamental: a crítica gadameriana ao historicismo, ou melhor dizendo, ao tratamento metódico do acontecer histórico, que partiria, necessariamente, de uma separação entre sujeito e objeto. Aqui me parece que o autor poderia ter ido mais longe, e consultado, diretamente, os textos dos autores apresentados por Gadamer em “Geschichtliche Vorbereitung”, item I da segunda parte de Verdade e Método. É bem conhecida a intenção de Gadamer em mostrar que o esforço dos historiadores e teóricos da história do XIX foi em vão: ao tentarem construir outro modelo de ciência, exclusivo para as ciências humanas, Ranke, Droysen, Dilthey e outros ficaram presos também na rede que nega a finitude do conhecimento. Gadamer, sinceramente, me parece apressado neste assunto – ao menos no que diz respeito a Droysen, ele me parece errar o alvo (cf. GADAMER 1990, p.274-275). Basta ler um trecho da Historik, logo em seu início: Pois cada ponto no presente, cada coisa e cada pessoa, é um resultado histórico, contém em si uma infinidade de relações, que estão introjetadas e internalizadas. (…) O homem ilumina seu presente com um mundo de lembranças, que não são arbitrárias, caprichosas, mas que são o desdobramento (…) daquilo que ele tem em torno de si e em si como resultado dos tempos passados; ele tem esse momento, em uma primeira instância, imediatamente, sem reflexão, sem consciência; ele o tem, como se não o tivesse, e somente quando ele o observa e o traz à consciência, ele reconhece, o que ele tem de si neles, nomeadamente, a compreensão de si mesmo (DROYSEN 1977, p.10).
Claro que não pretendo dizer que Droysen é um precursor de Heidegger.
Isto seria absurdo, mesmo porque Droysen ainda aposta, como bom homem do século XIX, na consciência, no método e na reflexão controlada. Mas, de modo algum, consciência e reflexão operam uma separação entre sujeito e objeto como condição da ciência. Em heideggerianês: para Droysen, de alguma maneira o homem já se vê aberto para a estrutura na qual sempre já foi lançado.
Ele se vê como parte de uma tradição. A diferença, claro, é que, a partir daí, será possível ainda, para Droysen, propor uma metodologia.
Não vem tanto ao caso, nesta resenha, criticar Gadamer ou fazer a apologia de Droysen, mas de perguntar por que motivo Gadamer partiu de uma concepção de ciência algo redutora, como se todas as concepções de ciência do século XIX fossem uma vaga mistura de positivismo com iluminismo.
O autor mesmo afirma, em uma nota ao pé da página, na última parte do livro, que não lhe cabia verificar se a interpretação de Gadamer sobre o historicismo estava correta ou não, interessando-lhe apenas os desdobramentos da crítica de Gadamer à ciência (cf. ARAÚJO 2009, p.169). Não se trata de cobrar algo que o próprio autor não pretendeu trabalhar, mas de se indagar se não se ganharia de fato se tal confronto tivesse sido feito. Neste aspecto, André de Melo Araújo me parece, mais uma vez, ter aderido excessivamente às teses de Gadamer: Eis o abalo que o pensamento gadameriano promove no cerne da razão, que se deve descolar do mais puro plano da idealidade transcendente, em que a apreensão totalizada, acabada e absoluta da realidade seria possível, para reconhecer o horizonte temporal de sua própria conformação histórica.
A idéia gadameriana de razão se configura como histórica, e o jogo em meio ao qual ela se encontra é marcado pelo vigor presente da história (ARAÚJO 2009, p.61).
Pergunto: seria a configuração histórica da razão efetivamente um abalo causado pelo pensamento de Gadamer? Em Johann Gottfried Herder isto já não aparece, quando ele mesmo, ao escrever sua breve e irônica filosofia da história em 1774, afirma que, ao tentar escrever generalidades, reconhece sua própria finitude? Cito um breve trecho: Ninguém no mundo reconhece mais do que eu as fraquezas da caracterização geral. Pinta-se o quadro de todo um povo, de toda uma época, de toda uma região. Quem foi assim que pintamos? Que imperfeito o instrumento da representação (…) Quem terá notado o que há de indizível na tarefa de dizer qual a propriedade específica de um homem e de assim dizer distintivamente aquilo que o distingue? (cf. HERDER 1995, p.34).
É verdade também que a solução teológica do protestante Herder não será imitada por Gadamer, mas, de alguma maneira, na história do romantismo hermenêutico, o reconhecimento do próprio limite, e, portanto, da alteridade, é algo que já se faz – talvez não com o refinamento de um Gadamer, e, muito menos, com o impacto de um Heidegger, mas, também, considero ainda que uma leitura de Gadamer há de ser feita tendo, ao lado, as obras por ele criticadas.
Por que não nos propormos a uma experiência própria de leitura dos textos da tradição, para que possamos nos apropriar delas, herdá-las? Afinal, se se afirma que o pensamento de Gadamer realizou um abalo, imagino que este abalo tenha sido dado no escopo de uma tradição. Daí lamentar a opção do autor em não averiguar a procedência das críticas de Gadamer.
Na segunda parte do livro, “O núcleo dialético do dialogismo lingüístico”, André Araújo se dedica a retomar a discussão sobre linguagem e verdade, anunciada, inclusive, como um dos eixos em torno do qual seu argumento gira.
Alçando o debate à devida complexidade, o autor afirma: É importante enfatizar que Gadamer não abandona radicalmente a idéia de razão [Vernunft], mas sim o revestimento instrumentalizado do conceito pela ciência, ou mesmo sua forma absolutizada pela filosofia hegeliana. A razão, desfeitos estes dois percalços, sustenta parte do esforço dialógico no encontro do outro e na determinação compreensiva da consciência de si (ARAÚJO 2009, p.101).
É este o momento em que André Araújo desenvolve alguns aspectos bastante ricos: falar em uma razão que não seja instrumental nem absoluta é falar de uma experiência em que a alteridade se torne incontornável e fundamental, algo que ocorre sempre que o mundo não se deixa converter em objeto (cf. ARAÚJO 2009, p.109).
Aqui vale a pergunta, suscitada pela leitura do livro: por que não ler a tradição criticada por Gadamer à luz da pergunta: por que o mundo se deixou objetivar? Por que se esqueceu do caráter constitutivo da linguagem? Uma coisa é dizer que iluminismo e romantismo acabaram, um e outro, objetivando a experiência, e, com isso, esqueceram-se de sua finitude essencial. Outra é mostrar como isso se deu. E como esta experiência também, não está, ela mesma, acabada, posto que, se o fizéssemos, também a estaríamos vendo como dado, como objeto. Ela também ainda vigora. Mas como? Feita a pergunta, cabe ver, portanto, o lugar central da arte no pensamento de Gadamer e como este lugar consegue pensar a razão de uma maneira diversa.
É fundamental lembrar, agora, da maneira como Gadamer lê a tradição grega. Cito Verdade e Método, a propósito da definição de theoria: nós nos comportamos teoricamente quando “(…) ante uma questão, podemos nos esquecer de nossos próprios objetivos” (GADAMER 2007, p.182). E o filósofo segue: “(…) em princípio a theoria não deve ser pensada como um comportamento da subjetividade, como uma autodeterminação do sujeito, mas a partir daquilo que o sujeito está olhando. A theoria é verdadeira participação, não é atividade; é um sofrer (pathos), isto é, um ser atraído e dominado pela visão (…)” (idem).
A experiência teórica é, portanto, a experiência do espectador, mais especificamente a experiência extática em que “se está fora de si”. Mas, para Gadamer, remetendo-se ao Fedro, de Platão, “o estar-fora-de-si é a possibilidade positiva de estar inteiramente em alguma coisa” (GADAMER 2007, p.183).
Pergunto-me se não poderíamos dizer que, em Gadamer, toda experiência estética é histórica. Creio que o livro de André Araújo nos permite pensar a partir desta vereda, porquanto ela inverte o que habitualmente se diz sobre história e arte, isto é, de que a experiência histórica é estética – como faz, por exemplo, um Frank Ankersmit (cf. ANKERSMIT 2004, 2005). Mais uma vez, esperava apenas que o autor se detivesse um pouco mais no conceito de simultaneidade como modo de ser da tradição, e, neste sentido, como o acontecer preserva a experiência da contingência, e, neste sentido, pode, aí sim, retirar das garras do historicismo (na definição de Gadamer) o objeto entendido como singularidade ocasional, recuperando-o em sua fundamentação ontológica. O modo de ser da tradição, portanto, revela a estrutura da temporalidade em que o mundo não deixa mais ser controlado como se fosse um objeto.
Trata-se da experiência da simultaneidade, analisada por Gadamer longamente no item “Temporalidade da estética”. A simultaneidade seria, portanto, o acontecer em sua atualização, o momento em que o ocasional e o decorativo desvelam sua fundamentação ontológica. O teatro é um bom exemplo dado por Gadamer: É por isso que o palco teatral é uma instituição política de natureza única, porque somente na execução faz transparecer aquilo tudo que há no jogo, a que está aludindo, os ecos que desperta. Ninguém sabe de antemão qual será o resultado e o que irá se perder no vazio. Cada execução é um acontecimento, mas não um acontecimento que se oponha ou posicione ao lado da obra poética como algo autônomo; o que acontece no acontecimento da encenação é a própria obra (GADAMER 2007, p. 209).
Na terceira parte de seu estudo – “Do vigor extratextual da existência” – André Araújo apresenta, entre outras, uma questão das mais ricas, a saber, o embate sobre a concepção gadameriana da atividade da história. A partir de Jean Grondin, o autor elabora o significado do caráter decisivo da transcendência dentro de uma hermenêutica da finitude: “A transcendência é justamente o padrão da ultrapassagem da toda ‘experiência feita na vida’, no mesmo registro em que já percebíamos que a arte pode ser a correspondência humanamente finita do que se concebe por eterno” (ARAÚJO 2009, p.171-172).
A costura da obra se apresenta aqui muito bem cosida: as discussões sobre a arte reaparecem aqui como lastro indispensável para se pensar a transcendência. Mas como se configura esta transcendência? Neste sentido, imagino, a recuperação do diálogo entre Gadamer e Reinhart Koselleck é bastante interessante. Afinal, há na historiografia alguma brecha para o vislumbre da transcendência? O que está em jogo é, de alguma maneira, a experiência fundamental da hermenêutica: se em Koselleck a ação histórica pode também aparecer como negação da alteridade (o poder-massacrar, o poder-matar, poder-aniquilar, Totschlagenkönnens), a obra de Gadamer enfatizará que o vigor da existência será sempre, nas palavras de André de Melo Araújo, o da “não-identidade de si para com o mundo” (ARAÚJO 2009, p.197). E isto é decisivo: (…) olhar unilateralmente para o sujeito – ora como produtor da matéria artística, ora como seu receptor –, ou direcionar a atenção apenas para a materialidade da obra é fazer surgir os pólos da falsa dicotomia objetivadora da ciência, que carrega como conseqüência a impossibilidade do reconhecimento da conformação artística como uma relação social, como uma prática social (ARAÚJO 2009, p.207).
As palavras do autor são bastante instigantes, na medida em que o problema do projeto da ciência moderna estaria em tentar reduzir toda experiência possível ao fim dos conflitos, algo a ser feito mediante a correta aplicação do princípio de identidade – do sujeito com o objeto, ou do objeto com o sujeito. A hermenêutica só mantém seu vigor quando houver uma discrepância, portanto, um resto que indique sempre a inesgotabilidade da história, e, portanto, a finitude de todo aquele que nela se vê inserido.
Apenas algumas breves notas para reflexão: como poderíamos descrever esta situação como “social”? Deveríamos retornar a Simmel para realizar tal descrição? E, mais uma sugestão, por que não comparar a situação hermenêutica da experiência fundamental da não-identidade (que chamo de discrepância) com a desenvolvida em Adorno? Não me parece impossível, pois se Heidegger e Marx separam Gadamer e Adorno, Hegel os une.
De toda forma, divagações de lado, é muito interessante o livro de André de Melo Araújo. Pensar a hermenêutica não somente como método, mas como estrutura na qual estamos sempre já lançados é algo digno de mérito; mais ainda, pensar linguagem e história em nível para além das (por vezes) requentadas querelas entre modernos e pós-modernos é um alento.
Referências
ANKERSMIT, Frank. Representación histórica. In: ______. Historia y Tropología: Ascenso y caída de le metáfora. México, D.F.: FCE, 2004.
______. Sublime historical experience. Palo Alto: Stanford University Press, 2005.
ARAÚJO, André de Melo. A Atualidade do acontecer: O projeto diálogico de mediação histórica na hermenêutica de Hans-Georg Gadamer. São Paulo: Humanitas, 2008.
DROYSEN, Johann Gustav. Historik. Stuttgart; Bad-Canstatt: Fromann- Holzboog, 1977.
GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Tübingen: Mohr, 1990.
______. Verdade e Método. Petrópolis; Bragança Paulista: Vozes, Editora da Universidade de São Francisco, 2007.
HERDER, Johann Gottfried. Também uma filosofia da história para a formação da humanidade. Lisboa: Antígona, 1995.
[1] Sem querer cometer injustiças, vale lembrar as publicações, sob forma de artigos, da Profa. Norma Côrtes (UFRJ) sobre o filósofo alemão. CÔRTES, Norma. Descaminhos do método: Notas sobre história e tradição em Hans-Georg Gadamer. In: Varia História, v.22, n.36, 2006; ______. Desafios hermenêuticos: as noções de tempo e tradição em Hans-Georg Gadamer. In: BUSTAMANTE, Regina e LESSA, Fábio (orgs.) Dialogando com Clio. Rio de Janeiro: Mauad, 2009.
[2] Cf. BAMBACH, Charles R. Heidegger, Dilthey and the Crisis of Historicism. Ithaca; London: Cornell University Press, 1995, p.18.
Pedro Spinola Pereira Caldas – Professor Adjunto Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) pedro.caldas@gmail.com Av. Pasteur, 296 – Urca Rio de Janeiro – RJ 22290-240 Brasil,