Futebol, História e Política / Estudos Históricos / 2019

Dossiês temáticos têm-se mostrado de grande importância para o desenvolvimento dos estudos sobre esportes e futebol nas Ciências Humanas e Sociais brasileiras. Desde pelo menos o ano de 1994, com o dossiê organizado pela Revista USP (n. 22 – Futebol), assistiu-se a uma série de publicações em periódicos científicos sobre esse tema no país. Com base em números especiais, textos e autores tornaram-se referência e fonte recorrente de citações. Deste modo, contribuíram para a formação de um campo de estudos e possibilitaram um avanço reflexivo — teórico, metodológico e empírico — em torno das práticas esportivas nacionais e internacionais.

A própria revista Estudos Históricos contribuiu nesse sentido em 1999, quando publicou o número 23 — Esporte e Lazer —, conhecido por trazer à tona debates e por ensejar polêmicas acerca dos referenciais mais apropriados para pesquisas na área. A “década esportiva”, como ficou conhecido o período entre 2007 e 2016, com a realização de uma gama de megaeventos esportivos no Brasil, estimulou também um conjunto significativo de dossiês dessa natureza, publicados em congêneres como a Horizontes Antropológicos, a Revista de História (USP) e os Cadernos AEL (Unicamp), entre outros periódicos científicos.

Passados os megaeventos, e multiplicadas as pesquisas sobre modalidades esportivas em programas de pós-graduação no país, novas gerações continuam a se debruçar sobre esse fenômeno típico das sociedades modernas e contemporâneas, capaz de mobilizar identidades coletivas, interesses midiáticos, circulações globais, fluxos financeiros e representações sociais. A motivação para a organização de um número específico dedicado à temática futebolística, cuja importância no século XX permanece atual, relaciona-se também a um cenário de desafios políticos que se colocam para a sociedade brasileira, na esteira das chamadas Jornadas de Junho de 2013 e no conturbado ciclo jurídico-político que se sucede ao Brasil pós-megaeventos.

O presente dossiê propõe, pois, uma articulação entre três dimensões — Futebol, História e Política. Estas inspiram-se, por sua vez, no trabalho desenvolvido pelo saudoso colega Carlos Eduardo Sarmento (2013), pioneiro no CPDOC nos estudos futebolísticos. Em sua investigação sobre a história institucional do futebol, feita com fontes primárias junto aos arquivos da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), Sarmento tratou da constituição da identidade nacional por meio da Seleção Brasileira e propôs intersecções diacrônicas desta com entidades desportivas, com instituições de poder e com estruturas políticas em chave mais ampla.

A tríade que circunscreve o presente número permite igualmente arejar um assunto marcado pelo peso ceticista das Teorias Críticas do Esporte, muito presentes nas Ciências Sociais europeias, norte-americanas e sul-americanas entre os anos 1960 e 1980, a exemplo dos escritos de Jean-Marie Bhrom (2006), Gerhard Vinnai (1973), Bero Rigauer (1981) e Juan José Sebreli (2005).

Se a introdução dos estudos sobre futebol no Brasil precisou contornar tais críticas funcionalistas e frankfurtianas, que preconizavam sua condição seja de dominação instrumental seja de epifenômeno da ideologia capitalista, valeu-se para tanto das postulações da Antropologia Social na afirmação da relevância do objeto no decorrer dos anos 1980. Rito, mito e símbolo das sociedades complexas foram, então, mobilizados para observar processos constitutivos da identidade nacional, em particular o significado, ora metafórico ora metonímico, adquirido pelo selecionado brasileiro nos eventos quadrienais das Copas do Mundo FIFA, com seus sentidos amplificados e conduzidos pelas narrativas da imprensa.

Assim, de tema secundário e por vezes não sério, o futebol pouco a pouco conquistou sua legitimidade e alcançou sua institucionalização na Academia. Nos últimos anos, observa-se também uma diversificação de abordagens, com a capacidade de ir além do âmbito meramente identitário e culturalista. No terreno da historiografia, a história social tem-se apropriado da temática em períodos mais recentes, graças a trabalhos seminais como o de Leonardo Pereira (2000). É o caso de destacar também a história política, cuja renovação nos anos 1980 (Rémond, 2003), se ainda é tímida na oferta de pesquisas concretas sobre o assunto, pavimenta caminhos para um tratamento menos canônico nessa área.

A proposta de renovar olhares acerca da história política do futebol é, portanto, um objetivo que se procurou contemplar com o presente volume. Da mesma maneira que as edições anteriores de Estudos Históricos, a grande demanda recebida e o elevado número de artigos aprovados, acima do que se poderia afinal publicar, foram uma prova do número de pesquisas de qualidade existentes nos dias de hoje, não só no Brasil como na comunidade acadêmica internacional. A difícil tarefa de selecionar ao final os textos por publicar sinaliza para a existência de um alargamento e uma continuidade geracional de pesquisadores que vêm se formando nas últimas décadas.

Sendo assim, o presente dossiê é constituído por três partes principais. A primeira conta com os sete artigos selecionados após o processo de avaliação cega por pares. Trata-se de doutorandos e doutores, vinculados a programas de pós-graduação no Brasil, em sua maioria historiadores, mas também de sociólogos, urbanistas e pesquisadores da área de Educação Física.

A primeira parte é composta por textos de autoria de João Malaia (Dep. História / Universidade Federal de Santa Maria); Marcel Tonini (Dr. História / Universidade de São Paulo) e Sérgio Giglio (Dep. Ed. Física / Universidade Estadual de Campinas); Raphael Rajão (Doutorando em História / FGV CPDOC); Luís Burlamaqui Rocha (Dr. em História / USP); Lívia Magalhães (Instituto de História / Universidade Federal Fluminense); Erick Melo (IPPUR / Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Gabriel Cid (Dr. IESP / Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

Salienta-se, ainda na primeira parte, a colaboração de um autor de origem inglesa, Matthew Brown, professor de Letras Modernas na Universidade de Bristol, no Reino Unido. Agradecemos, a propósito, às dezenas de pareceristas ad hoc que contribuíram voluntariamente com sua expertise para a composição final dessa seção.

A segunda parte abarca as colaborações especiais e traz os dois autores internacionais, convidados especialmente pela equipe editorial para publicarem no dossiê. São eles: Courtney Campbell, brasilianista de origem estadunidense, doutora em História pela Universidade de Vanderbilt (EUA) e professora da Universidade de Birmingham; e David Wood, latino-americanista de origem inglesa, responsável por presidir a Society for Latin American Studies (SLAS) no período 2017-2019, e professor da Universidade de Sheffield.

A terceira e última parte do número 68 de Estudos Históricos apresenta uma entrevista com Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, referência importante nas Ciências Históricas e Sociais, em particular no estudo da obra de Gilberto Freyre, destacando-se como pesquisadora associada há mais de vinte anos do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Cambridge.

2019 foi um ano de perdas na área de estudos do futebol, com o falecimento de três pesquisadores referenciais: o sociólogo inglês Eric Dunning, o geógrafo Gilmar Mascarenhas e a antropóloga Simoni Lahud Guedes. À memória desses três estudiosos dedicamos este número.

Por fim, desejamos a todos uma boa leitura.

Referências

BHROM, Jean-Marie; PERELMAN, Marc. Le football, une peste emotionelle. Paris: Gallimard, 2006.

PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro (1902-1938). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2003.

RIGAUER, Bero. Sport and work. New York: Columbia University Press, 1981.

SARMENTO, Carlos Eduardo. A construção da nação canarinho: uma história institucional da seleção brasileira de futebol, 1914-1970. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2013.

SEBRELI, Juan José. La era del fútbol. Buenos Aires: Debolsillo, 2005.

VINNAI, Gerhard. Football mania: the players and the fans – the mass psychology of football. London: Orbach & Chambers, 1973.

Bernardo Borges Buarque de Hollanda – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: bernardo.hollanda@fgv.br

João Marcelo Ehlert Maia – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: joao.maia@fgv.br

Thais Continentino Blank – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editora da Revista Estudos Históricos. E-mail: thais.blank@fgv.br

Os editores


HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de; MAIA, João Marcelo Ehlert; BLANK, Thais Continentino. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.32, n.68, set. / dez.2019. Acessar publicação original [DR]

História das Ciências Humanas e Sociais / Estudos Históricos / 2019

Ao escolhermos o tema “História das ciências humanas e sociais” para o número 67 da revista Estudos Históricos, sabíamos que receberíamos um volume considerável de boas contribuições, afinal se trata de um tema interdisciplinar e que dialoga com uma quantidade significativa de agendas de pesquisa de longa tradição na historiografia e nas ciências sociais brasileiras. De fato, foi difícil chegar à seleção final de artigos, mas os dez textos aqui publicados dão aos leitores um excelente panorama desse vasto campo.

O número é aberto com uma colaboração original da professora australiana Raewyn Connell sobre a construção do cânone na sociologia e sua vinculação com as dinâmicas históricas do colonialismo e do eurocentrismo. Seu artigo “Canon and colonies: the global trajectory of sociology” é uma excelente porta de entrada para uma discussão global do tema proposto para este número.

A sociologia paulista é, por sua vez, objeto de alentada investigação original de William Santos, Luiz Jackson e Max Gimenes, que destrincham aproximações e tensões entre escolas e discípulos dessa conhecida tradição intelectual brasileira no texto “Roger Bastide, Antonio Candido e a tese interrompida sobre o cururu”.

O questionamento da tradição eurocêntrica na historiografia das ciências humanas é tema para Marcelo Rosa, no seu texto “Sociologias indígenas ioruba: a África, o desconcerto e ontologias na sociologia contemporânea”, que reconstrói o debate iniciado por Akinsola Akiwowo sobre as indigenous sociologies, a fim de evidenciar sua rentabilidade teórica para a sociologia contemporânea.

A relação entre colonialismo e sociologia também surge no trabalho dos colegas portugueses Frederico Ágoas e Cláudia Castelo, que refletem sobre as iniciativas portuguesas de cooperação científica na África em “Ciências sociais, diplomacia e colonialismo tardio: a participação portuguesa na Comissão de Cooperação Técnica na África Subsaariana (CCTA)”.

A revista também selecionou textos que procuram repensar o legado de intérpretes clássicos do pensamento brasileiro. Lorenna Zem El-Dine revisita a fração “verde-amarelo” do modernismo paulista e suas conexões com o ensaísmo clássico brasileiro e latino-americano em “Ensaio e interpretação do Brasil no modernismo verde-amarelo (1926-1927)”, enquanto José Szwaco e Ramon Araújo lançam um olhar cuidadoso sobre a trajetória do conceito de populismo na sociologia paulista e questionam paradigmas explicativos de inspiração bourdieusiana no artigo “Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do ‘populismo’ e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais”.

Por fim, Lidiane Rodrigues evidencia a força da análise sociologizante da vida intelectual em seu estudo a respeito dos modos de apropriação dos intérpretes do Brasil por parte dos acadêmicos marxistas, em artigo que tem por título “Amar um autor: os marxistas nas universidades brasileiras e os intérpretes do Brasil”.

A história da historiografia comparece com os dois textos que fecham o volume. Aryana Costa questiona o apagamento da atuação universitária dos profissionais do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo no seu “Um regime de transição: o papel do IHGSP no curso de história da Universidade de São Paulo (1934)”, enquanto Victor da Silva, em “History of the human sciences and Wallace’s scientific voyage in the Amazon: notes on historiographical absences”, reflete acerca das tensões entre história da ciência e outros campos historiográficos por meio de uma análise dos trabalhos que se debruçaram sobre a clássica viagem de Alfred R. Wallace pela Amazônia.

Acreditamos que este número da revista Estudos Históricos cumpra fielmente nossa vocação de apresentar conhecimento inovador e interdisciplinar sobre o Brasil e o exterior, apontando para a fertilidade de construirmos diálogos entre a história e as várias ciências sociais. Boa leitura!

Bernardo Borges Buarque de Hollanda – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: bernardo.hollanda@fgv.br

João Marcelo Ehlert Maia – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: joao.maia@fgv.br

Ynaê Lopes dos Santos – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editora da Revista Estudos Históricos. E-mail: ynae.santos@fgv.br

Os editores


HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de; MAIA, João Marcelo Ehlert; SANTOS, Ynaê Lopes dos. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.32, n.67, maio / ago. 2019. Acessar publicação original [DR]

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Escravidão e Liberdade nas Américas / Estudos Históricos / 2019

No dia 02 de junho de 1888, duas semanas depois de abolida a escravidão, Angelo Agostini e Luiz de Andrade afirmavam que “Na vida do Brasil, nenhum fato se poderá comparar ao do dia 13 de maio do corrente ano. A própria independência, ao lado da escravidão, era como uma data velada, uma conquista clandestina. Hoje sim, o Brasil é livre e independente”. O entusiasmo dos editores da Revista Illustrada tinha uma razão faustosa: o Brasil finalmente abandonava a pecha de único país das Américas a manter a nefanda instituição, entrando assim para o rol das nações verdadeiramente livres e independentes.

Durante os anos subsequentes, o 13 de Maio foi comemorado como data máxima da liberdade nacional. Mas, assim como a independência parecia ser uma data velada, num país que mantinha a escravidão, a forma como a Primeira República festejou o Treze de Maio camuflou um sem-número de personagens e tramas que estiveram diretamente relacionados com a assinatura da Lei Áurea, bem como silenciou grande parte das violências e exclusões que marcaram os corpos e vidas de homens e mulheres cingidos pela escravidão. Tal silenciamento há muito era pauta de denúncias como a que foi feita em março de 1933 pelos dirigentes do jornal A Voz da Raça, um periódico “que se destinava à publicação de assuntos referentes aos negros”, posto que “as outras folhas, aliás veteranas, por despeitos políticos, tem deixado de o fazer”. Para os editores e jornalistas negros desse periódico, as comemorações da Abolição pareciam ter sentidos diversos daqueles apregoados por muitos abolicionistas que viam na liberdade o fim da escravidão, mas não enxergavam as dimensões do legado do escravismo.

A rememoração crítica dos 130 Anos da Abolição da Escravidão no dia 13 de maio de 2018 serviu como inspiração para o número 66 da Revista Estudos Históricos. No número que se propõe analisar Escravidão e Liberdade nas Américas, entramos em contato com pesquisas que consolidam e renovam a tradição historiográfica brasileira dos estudos sobre escravidão e Pós-Abolição, com destaque para as abordagens transnacionais ou “conectadas” que permitam reposicionar a agenda de investigações à luz de outras experiências no continente americano.

O número começa com o artigo de Ana Carolina Viotti, que, por meio de variado corpus documental, analisou a obrigatoriedade que recaía sobre os senhores no tocante à alimentação dos escravos no período colonial. A reconstituição de redes de compadrio em Minas Gerais na virada do século XVIII para a centúria seguinte é tema do artigo de Mateus Andrade, que por meio de estudos de demografia histórica demonstra a intrínseca relação entre a confirmação cotidiana da liberdade de indivíduos alforriados e o caráter sistêmico da escravidão na formação do Brasil. Outros significados de liberdade em meio ao mundo escravista e fronteiriço da região do Prata foram trabalhados por Hevelly Acruche, no contexto marcado pelas lutas de independência nos primeiros anos do século XIX. Partindo da política do Estado brasileiro, que, em consonância com os interesses da elite cafeicultura, retomou o tráfico transatlântico na ilegalidade após 1831, Walter Luiz Pereira e Thiago Campos Pessoa examinaram sujeitos e lugares do tráfico transatlântico no Sudeste do Brasil, que durante muito tempo foram silenciados pela historiografia. Por meio do exame de uma Ação de Liberdade movida por uma negra livre, vítima da prática ilícita de reduzir pessoas à escravidão, Virgínia Barreto demonstrou como a força da escravidão se fazia sentir, mesmo na vida de homens e mulheres negros que haviam nascido sob o signo da liberdade.

No sexto artigo, Alex Andrade Costa evidenciou, uma vez mais, como a escolha pela escravidão e a reabertura do tráfico transatlântico na ilegalidade (após 1831) envolveu uma série de autoridades públicas brasileiras. Numa proposta macroanalítica que parte da categoria de economia-mundo, Rafael Marquese apresenta como a escolha pela escravidão pode ser observada por meio de um novo regime visual da escravidão negra nas Américas, tomando os casos do Brasil cafeeiro e da Cuba açucareira como objetos de análise. No oitavo artigo, André Boucinhas utiliza corpus documental variado para examinar quais eram as condições de vida dos trabalhadores livres e escravizados da Corte imperial do Brasil na década de 1870. A criação em 1872 do Club Igualdad é o fio condutor por meio do qual Fernanda Oliveira avaliou a intrínseca relação entre a libertação de escravizados e a formação do Estado Republicano do Uruguai. No décimo artigo do dossiê, Juliano Sobrinho problematizou a participação do clero católico e presbiteriano na luta abolicionista nos últimos anos de vigência da escravidão brasileira.

As interfaces do abolicionismo transbordam as fronteiras nacionais no décimo primeiro artigo, no qual Luciana Brito examina a experiência de André Rebouças nos Estados Unidos marcado pelas políticas de segregação racial conhecidas como Jim Crow. No artigo seguinte, a trajetória de um consagrado (porém nem sempre lembrado) homem negro brasileiro – abolicionista, republicano e socialista – é o fio condutor que permite a Ana Flávia Magalhães Pinto revisitar as políticas de memória das pessoas livres do Brasil que viveram os últimos anos da escravidão e os primeiros tempos do Pós-Abolição. Por meio do exame interseccional do universo dos serviços domésticos, os sentidos de liberdade voltam a ser questionados no artigo de Natália Peçanha, que esmiúça os processos de criminalização das servidoras domésticas do Rio de Janeiro entre finais do século XIX e início do século XX. Tão importante quanto pensar e analisar sentidos e significados da escravidão e liberdade é examinar a produção da historiografia sobre tais questões. É exatamente esse o objetivo do décimo quarto artigo do dossiê, no qual Fabiane Popinigis e Paulo Terra examinam como a historiografia da História do Trabalho – mais especificamente o GT Mundos do Trabalho, associado à Associação Nacional de História (Anpuh) – tem dialogado com os estudos sobre escravidão e Pós-Abolição. Por fim, o último artigo da revista, escrito por Moiséis Pereira Silva, permite pensar na longa duração do legado escravista no Brasil, na medida em que se utiliza das denúncias de trabalho escravo na região no Amazonas em plena década de 1970 para conceituar o trabalho escravo contemporâneo.

As abordagens teórico-metodológicas, os usos de fontes e os jogos de escalas presentes nos quinze artigos que compõem este número da Revista Estudos Históricos demonstram que, nas Américas, a multifacetada experiência de escravidão foi aspecto estruturante do continente, ao mesmo tempo em que as lutas pela liberdade revelam os avessos desses mesmos lugares. Fica o convite para a leitura.

Referências

Biblioteca Nacional. Hemeroteca Digital. Revista Illustrada, ano 13, n. 499, p. 2, 1888.

Biblioteca Nacional. Hemeroteca Digital. A Voz da Raça, ano 1, n. 1, p. 1, 1933.

Bernardo Borges Buarque de Hollanda – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: bernardo.hollanda@fgv.br

João Marcelo Ehlert Maia – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: joao.maia@fgv.br

Ynaê Lopes dos Santos – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editora da Revista Estudos Históricos. E-mail: ynae.santos@fgv.br

Os editores


HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de; MAIA, João Marcelo Ehlert; SANTOS, Ynaê Lopes dos. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.32, n.66, jan. / abr.2019. Acessar publicação original [DR]

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Associativismo e movimentos sociais / Estudos Históricos / 2018

Nesta edição de número 65, a revista Estudos Históricos traz aos leitores artigos relacionados a um tema caro à tradição interdisciplinar, que é marca constitutiva do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC): associativismo. No campo das Ciências Sociais, tal conceito pode ser rastreado até os trabalhos clássicos de Alexis de Tocqueville sobre as virtudes (e os perigos) da democracia norte-americana, passando por obras seminais da sociologia política mais recente, como “Comunidade e Democracia”, de Robert Putnam. Entre os historiadores, as formas encontradas por homens e mulheres para produzir vida em comum também foi tema crucial de pesquisa, em especial nas vertentes analíticas inspiradas pela obra seminal de E.P. Thompson sobre a formação da classe trabalhadora na Inglaterra. A fertilização mútua entre História e Ciências Sociais tornou quase impossível delimitar com precisão onde começam e terminam suas respectivas jurisdições sobre as artes da associação humana. Thompson, por exemplo, foi fonte recorrente para sociólogos interessados em transformar o “fazer-se” específico estudado pelo autor em instrumento para decifrar processos mais amplos de formação de classes nas sociedades capitalistas. E o conceito de “capital social”, por sua vez, percorreu itinerários complexos nos trabalhos de historiadores interessados em desvendar redes e laços entre grupos, comunidades, irmandades e clãs.

Esses debates e cruzamentos teóricos estão bem representados no dossiê que o leitor tem em mãos. Há artigos que retomam o clássico tema do associativismo dos grupos subalternos, em especial dos trabalhadores, como no caso dos textos de Samuel de Oliveira sobre trabalhadores favelados no Rio e em Belo Horizonte, durante a República de 1946, e de Mário Brum sobre a Pastoral de Favelas e sua conexão com a Teologia da Libertação. Elis Angelo e Maria Izilda de Matos, por sua vez, revisitam as relações entre imigração e formas associativas por meio de estudo sobre a Casa dos Açores de São Paulo. As variáveis étnico-raciais que estruturaram as formas de ação coletiva no Brasil são abordadas no texto de Petrônio Domingues, centrado na história da Frente Negra no Rio de Janeiro, evidenciando novas frentes de investigação sobre a articulação entre raça, classe, cidadania e associativismo.

A cidade, como não poderia deixar de ser, figura com destaque em vários artigos, por se constituir no espaço por excelência para a invenção de novas formas de vida em comum de homens e mulheres. Pode-se aprender sobre esse associativismo urbano no texto de Lia Rocha sobre a história recente da criminalização do associativismo nas favelas cariocas, no artigo de José Bortolucci sobre as redes entre arquitetos e movimentos populares em São Paulo no processo de redemocratização e no trabalho de Jonatha Santos e Wilson de Oliveira sobre o Coletivo Debaixo e suas práticas comunicativas na esteira dos movimentos de 2013 em Aracaju. Finalmente, se o nexo entre democracia e associativismo parece ser tomado como pressuposto em muitos debates, o artigo de Reginaldo Sousa nos permite repensar tal relação ao investigar o associativismo feminino em apoio à ditadura civil-militar no Paraná.

Acreditamos que o conjunto de textos disponível nesta edição irá interessar não apenas aos estudiosos do associativismo, mas a toda a comunidade de historiadores e de cientistas sociais que veem na construção de formas de vida em comum não apenas um tema de pesquisa disciplinar, mas também um credo fundamental para o revigoramento de nossa combalida democracia.

Referências

PUTNAM, Robert D. Comunidade e Democracia – a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro: FGV, 2008.

THOMPSON, Edward. P. A Formação da Classe Operária Inglesa: A árvore da liberdade. vol. I, 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

Bernardo Borges Buarque de Hollanda – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: bernardo.hollanda@fgv.br

João Marcelo Ehlert Maia – Professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editor da Revista Estudos Históricos. E-mail: joao.maia@fgv.br

Ynaê Lopes dos Santos – Professora da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). Editora da Revista Estudos Históricos. E-mail: ynae.santos@fgv.br

Os editores


HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de; MAIA, João Marcelo Ehlert; SANTOS, Ynaê Lopes dos. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.31, n.65, set. / dez. 2018. Acessar publicação original [DR]

História e Literatura / Estudos Históricos / 2017

História e Literatura Afinidades eletivas? A literatura nos pródromos da História

A escolha de um dossiê para a revista Estudos Históricos costuma levar em consideração ao menos três aspectos: o ineditismo de determinado tema, sua relevância na historiografia contemporânea e a aderência às linhas de pesquisa do CPDOC. A introdução de um assunto inédito pode causar certa surpresa aos próprios editores, sobretudo quando se deparam com esta ou aquela lacuna temática em um periódico que já conta com quase 30 anos de existência. Ausências em áreas centrais de atuação da “casa” tendem a chamar mais atenção, como ocorreu com “Patrimônio” (n. 57, 2016), dossiê que tardou a ser contemplado num conjunto de mais de 60 números publicados.

Algo semelhante parece ter-se passado com “História e Literatura”. Escritores e suas obras, movimentos literários e suas revistas, redes de sociabilidade e sua circulação de ideias estiveram presentes na agenda da instituição desde antes da criação da revista, em 1988. Em parte, o interesse pela literatura derivou do próprio material que compõe o acervo original do CPDOC. Arquivos inicialmente voltados para as elites e para a história política traziam consigo a visão de bacharéis, jornalistas, ensaístas e polígrafos, entre os quais se encontravam, não raro, romancistas, poetas e toda sorte de homens de letras.

Fontes primárias do arquivo privado de Gustavo Capanema, por exemplo, são pródigas em informações sobre a atuação pública de Carlos Drummond de Andrade na chefia de gabinete do Ministério da Educação e Saúde (MES) entre 1934 e 1945. Com base neste e em outros arquivos, mobilizaram-se diversos investimentos de pesquisa, que resultaram em livros como Guardiães da razão: modernistas mineiros, de Helena Bomeny, Essa gente do Rio: modernismo e nacionalismo e História e historiadores: a política cultural do Estado Novo, os dois últimos de autoria de Ângela de Castro Gomes.

Enquanto Helena Bomeny se deteve nas especificidades e nas raízes da geração mineira que tomou parte no modernismo dos anos 1920 e 1930, Ângela de Castro Gomes, professora emérita do CPDOC, dedicou-se em História e historiadores à análise dos escritos de Graciliano Ramos para o periódico estadonovista Cultura e Política. Já em Essa gente do Rio, a autora estudou revistas, prosadores e poetas do movimento simbolista no Rio de Janeiro, grupo literário ligado tanto à linhagem espiritualista mais conservadora da intelectualidade católica radicada na capital da República quanto ao efervescente projeto estético modernista, em contraponto aos próceres mais conhecidos do modernismo de São Paulo.

Para ficar apenas com esses exemplos, trata-se de documentos e de produções relevantes, porquanto contribuíram para iluminar questões centrais da vida republicana brasileira. Durante mais de quatro décadas, pesquisadores do CPDOC envidaram esforços coletivos para analisar a dinâmica do pensamento social no Brasil da primeira metade do século XX, dentro da qual se inscrevia uma galeria de literatos envolvidos com a vida intelectual e com a esfera pública do país.

Apesar disso, um olhar retrospectivo pelas edições anteriores da revista não identifica um dossiê consagrado à literatura. Chega-se, quando muito, a lograr aproximações, mediante interesses afins ou mais amplos, como foram os números dedicados a “Viagem e narrativa” (n. 7, 1991), a “Intelectuais” (n. 32, 2003) ou a “Arte e História” (n. 30, 2003). Neste último, entretanto, a literatura sequer comparece, com textos em sua maioria voltados para a arquitetura, a pintura e a música, entre outras expressões, linguagens e manifestações artísticas.

Uma visada mais benevolente seria, no entanto, capaz de reconhecer que, embora lhe falte uma edição exclusiva, o interesse literário reponta aqui e ali no corpo da revista, disperso ao longo de suas dezenas de números e de suas centenas de artigos. Sem a preocupação de um levantamento exaustivo, é possível compulsar pouco mais de 20 artigos acerca do tópico. Machado de Assis, Oliveira Lima, Graça Aranha, Ronald de Carvalho, Mário de Andrade, Paulo Prado e Murilo Mendes, entre outros, pontificaram na revista no decorrer de 60 números.

Temas “clássicos” da vida literária foram abordados, tais como o modernismo, a identidade nacional e a sociabilidade urbana. Assuntos menos centrais também se fizeram presentes e deram a conhecer a literatura regional no Rio Grande do Sul, o movimento modernista na Amazônia, o novo romance histórico no Brasil, o gênero autobiográfico e memorialístico, a questão do sujeito na narrativa, a correspondência epistolar, os concursos literários, os projetos enciclopédicos, a presença de literatos na diplomacia, o neorrealismo em Portugal e a sociologia da literatura.

Mas o ineditismo no histórico da revista e a aderência às áreas de concentração da instituição que a publica não bastam para justificar a decisão em favor de um dossiê. A relevância da questão na contemporaneidade é fundamental para sua escolha como tema. Neste sentido, é sabido que as gerações de historiadores formadas no último quartel do século XX e nos primeiros anos do século XXI vêm enfrentando o problema epistêmico da escrita da história. Esta questão vem de par com a polêmica em torno das fronteiras da narrativa historiográfica em face da literatura e, mais precisamente, da ficção.

Desde a chamada “virada linguística” nos idos de 1970, como se sabe, revolve-se a antiga querela que opõe o mito à ciência e avança-se nos questionamentos filosóficos de um Michel Foucault ou de um Paul Ricoeur acerca das maneiras de narrar dos historiadores profissionais. Em paralelo, a teoria literária estadunidense, com Hayden White e Dominick LaCapra à frente, aprofundou ainda mais a crítica aos fundamentos epistemológicos da narração na história e postulou o protagonismo da linguagem figurada e da imaginação no processo de reconstituição do passado histórico. Em razão disto, assestaram-se as baterias contra estatutos canônicos da ciência e buscou-se desconstruir a técnica tradicional de composição de textos científicos.

De sua parte, longe de apenas rebater ou esquivar-se defensivamente das críticas, a História procurou nos últimos decênios ser também propositiva e ampliar seus domínios. Para tanto, em meio à decantação da interdisciplinaridade e à própria renovação da historiografia em países centrais como Estados Unidos, França, Inglaterra e mesmo Itália, os historiadores penetraram na seara antes exclusiva dos Departamentos de Letras.

Com efeito, munidos de pressupostos teóricos da Sociologia para fustigar a redoma estetizante das belas-letras – evoquem-se tão-somente o Flaubert de Pierre Bourdieu e o Kafka de Pascale Casanova –, os historiadores apropriaram-se a seu modo da literatura como objeto de estudo. Desde então, interpelam as formas materiais e simbólicas de fruição do livro, examinam as práticas e representações da leitura, preconizam o polo da recepção na compreensão mais plena do sistema literário, emulam o desenvolvimento de subáreas como a história literária, a história social e a história cultural.

A falta de consenso gera ruídos de comunicação de ambas as partes. Grosso modo, para a crítica literária de extração acadêmica, o imbróglio diz respeito à utilização documental, por assim dizer, que o historiador pode fazer da ficção. O fato de um romance, um poema ou um conto ser considerado fonte, documento ou testemunho para escrutínio da História tende a ser visto como reducionista por críticos e teóricos do métier.

A comunidade de historiadores, por sua vez, rechaça de maneira taxativa a redução das suas atividades à produção de enredos mais ou menos arbitrários, mais ou menos fictícios. Embora o britânico R. G. Collingwood entrevisse, no livro A ideia de história, de princípios do século XX, as afinidades eletivas entre o romancista e o historiador, para os profissionais da História as categorias temporais não são artefatos ou construtos mentais a serviço da verossimilhança ou da trama romanesca. Cumpre, segundo eles, refutar o argumento de que o tempo constitui uma variável neutra na narrativa, mero adorno ou pano de fundo a emoldurar a ação dramática, destituído de dinamicidade e de significado social mais amplo.

A recusa à condição fática de registro do real, por meio do material ficcional, leva, pois, a infindáveis controvérsias acerca dos condicionantes do imaginário de um escritor, que se acredita idealmente autônomo, coerente e indiviso. Tais discordâncias acionam tensões, quase sempre regidas sob a égide de uma razão dualista. Esta tanto une quanto separa vida e obra, texto e contexto, reflexo e autonomia, imanência e transcendência, matéria e espírito, real e imaginário, documento e monumento, numa palavra lukácsiana: forma literária e processo social.

Uma exceção nessa cena é Antonio Candido, cujo método dialético, amadurecido entre os anos 1950 e 1970, procurou superar o binarismo estruturalista e, com ele, a suposição apriorística de um “dentro” versus um “fora” do texto. Ao propor um terceiro eixo sintético, Candido tinha como premissa a necessidade de um esquema analítico ternário, pois tencionava dar conta do sistema literário triangular: autor – obra – público. Nesta esteira, perseguiu, nos ensaios antológicos que se sucederam a Formação da literatura brasileira, uma síntese capaz de fundir os pares antitéticos invocados por “internalistas”, de um lado, e “externalistas”, de outro.

A despeito das tentativas conciliatórias, o peso dos referentes internos versus externos compele historiadores e teóricos literários a debater não apenas os contornos como também os nervos da criação de uma obra de arte. A fatura literária continua a ser apreciada ora em função da intencionalidade do autor e da lógica interna que conforma a mimesis, ora em virtude dos nexos sociológicos que demandam a realidade, o cotidiano, a memória, o verossímil, a experiência vivida, narrada e transfigurada.

O presente dossiê almeja ser uma ocasião para a atualização de um debate cujas implicações teóricas e conceituais permanecem a desafiar a historiografia e a epistemologia nos de dias de hoje. A impossibilidade de esgotá-lo ou de superá-lo em suas discussões mais controversas não impede de reconhecer os rendimentos analíticos, bem como os avanços das várias frentes de pesquisa nesse âmbito.

Se as Ciências Humanas e Sociais lidam com o assunto desde a segunda metade do século XX, informadas por vertentes críticas que vão do marxismo ao estruturalismo, do funcionalismo ao culturalismo, da fenomenologia à semiótica, da filologia ao existencialismo, da estética da recepção ao círculo hermenêutico, dos cultural studies aos estudos pós-coloniais, a historiografia nacional principiou a se debruçar sobre a temática somente a partir dos anos 1980.

A proposição de um ponto de partida é sempre um risco, com eventuais omissões ou injustiças, mas seria o caso de arriscar aqui apontando a publicação de Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República (1983). A tese de doutoramento de Nicolau Sevcenko, defendida em 1981 na USP, configura uma espécie de momento fundante de uma perspectiva intelectual-cultural calcada na literatura.

De início o impacto do livro foi diminuto no interior da comunidade científica, mas a repercussão mostrou-se significativa fora da universidade, junto ao público leitor não acadêmico e aos meios editoriais. Estava-se diante de uma primorosa reconstituição da trajetória intempestiva de dois literatos-missionários, Euclides da Cunha e Lima Barreto, a contrastar, cada um a seu modo, o teor de suas “ideias em movimento” com os ideais reacionários dos conservadores de seu tempo.

De forma mais orgânica e institucionalizada, o estudo acadêmico da literatura se consolidou no cenário universitário durante os anos 1990 e 2000. No âmbito da pós-graduação em História, merece destaque a atuação de um grupo de pesquisadores reunidos na Unicamp. A convergência entre as linhas de pesquisa da História Social do Trabalho e da História Social da Cultura permitiu que investigadores de ponta da área renovassem interpretações consagradas. Estas evidenciaram uma capacidade de formular questões e fontes próprias do ofício do historiador, para lançar luzes menos reverentes sobre ícones da literatura, a exemplo de Machado de Assis ou de Coelho Neto.

Dissertações e teses defendidas na Unicamp, muitas delas publicadas em livro, vêm contribuindo para um conhecimento sólido, produzido coletivamente nesse centro universitário. Seus egressos têm dado continuidade ao debate, mediante, por exemplo, a organização de sucessivos Simpósios Temáticos nos encontros da ANPUH, “Literatura, História e Sociedade”, estimulando a formação de jovens discentes em nível de mestrado e doutorado e ensejando a sua renovação geracional.

Longe de ser um polo único e exclusivo, via de regra adstrito ao eixo Rio – São Paulo, outros programas pós-graduação em História têm-se notabilizado por linhas de pesquisa com esse foco. Bastaria lembrar universidades federais e estaduais de cidades como Belém, Florianópolis, Goiânia, Ouro Preto, Porto Alegre, Recife, Salvador, Teresina e Uberlândia, entre outras, para aferir uma realidade que é hoje plural e multifacetada.

O presente dossiê pretende ser também uma amostra de tal diversidade. Enfeixa-se a seguir um total de dez textos, publicados após um notável número de submissões recebidas e avaliadas por quase duas centenas de pareceristas. A marca interdisciplinar, cultivada pela revista, faz-se igualmente perceptível neste número, com a abertura para abordagens que não se restringem a esta ou aquela escola de pensamento, a esta ou aquela filiação departamental, a este ou aquele recorte histórico.

Num arco temporal que vai do século XVI à contemporaneidade, e num horizonte espacial que não se limita à fronteira nacional, a díade história-literatura encontra aqui um apanhado do estado da arte do universo literário, tal como vem sendo estudado em determinados programas de pós-graduação do país. Fornecem-se elementos para entender como os estudiosos das gerações atuais têm respondido, por meio de estudos de caso e de trabalhos empíricos – valendo-se de obras, cartas, arquivos, manuscritos, jornais, biografias, memórias, escritas de si, correntes estéticas, traduções, edições e reedições –, ao conjunto de questões sumariamente esboçadas acima.

Além dos textos submetidos e aprovados na seção “Artigos”, este dossiê dá espaço para a série “Colaboração Especial”, com o artigo assinado pelo professor Roger Chartier, do Collège de France. Trata-se de versão apresentada pelo historiador francês em palestra proferida no CPDOC em 2013, quando da comemoração dos 40 anos da instituição, na abertura da quarta edição do Ateliê do Pensamento Social, evento promovido pelo Laboratório de Pensamento Social (LAPES).

Na ocasião, conforme consta do texto aqui publicado ineditamente em língua inglesa, Chartier revisitou o cerne de suas inquietações intelectuais ao perquirir as formas de comunicação facultadas pelas correspondências epistolares no alvorecer da Idade Moderna europeia e ao indagar a tensão das formas literárias com a cadeia comunicacional emissor / mediador / receptor, na esteira do advento da tipografia e da imprensa, nos séculos XV e XVI. Chartier analisa ainda a irrupção da figura autônoma do Autor na chamada República das Letras francesa, entre os séculos XVII e XIX. Considera, para tanto, seus corolários imediatos, quais sejam, a consagração da ideia de indivíduo e a conversão da noção de autoridade em autoria intelectual personalizada na Era Moderna.

Por último, mas não menos importante, a seção “Entrevista” traz o depoimento transcrito e editado de Heloísa Starling, professora titular do Departamento de História da UFMG, concedido a mim e ao professor Marcelino Rodrigues da Silva (Dep. Letras / UFMG) em fevereiro de 2017, na cidade de Belo Horizonte. Em seu percurso acadêmico, sempre sensível à sonoridade e à poética das criações artísticas, as reflexões da entrevistada vêm ao encontro do presente volume, ao rememorar a experiência de realização de sua tese de doutorado, que versa sobre a obra magna de João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas.

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Bernardo Borges Buarque de Hollanda – Doutor em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). E-mail: bernardo.hollanda@fgv.br

Editor convidado.


HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.30, n.62, set. / dez. 2017. Acessar publicação original [DR]

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