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A História vai ao Cinema: vinte filmes brasileiros comentados por historiadores | Jorge Ferreira e Maria de C. Soares
Para os irmãos Lumiére, o cinema seria uma curiosidade passageira. Reza a lenda que um dos inventores do cinematógrafo (1895), ou o pai dele, chegara a proferir: “o cinema é uma invenção sem futuro”. O palpite não vingou e, em pleno alvorecer do século XXI, a captação de imagens em movimento sobrevive muito bem, seja em fotogramas, seja nos seus avatares em novas tecnologias (do vídeo analógico aos processos digitais).
E o cinema não apenas teria um futuro, mas ainda deixaria, em sua secular existência, um rastro imensurável de registros desse próprio tempo, bem como de tempos mais ou menos remotos, bem ou mal reinterpretados em celulóide. Presentificando outras etapas da história, o cinem também tornou-se uma invenção com o olho (câmera) no passado. O problema é que os historiadores, em princípio, não perceberam isso. Leia Mais
A História vai ao Cinema: vinte filmes brasileiros comentados por historiadores / Jorge Ferreira
Para os irmãos Lumiére, o cinema seria uma curiosidade passageira. Reza a lenda que um dos inventores do cinematógrafo (1895), ou o pai dele, chegara a proferir: “o cinema é uma invenção sem futuro”. O palpite não vingou e, em pleno alvorecer do século XXI, a captação de imagens em movimento sobrevive muito bem, seja em fotogramas, seja nos seus avatares em novas tecnologias (do vídeo analógico aos processos digitais).
E o cinema não apenas teria um futuro, mas ainda deixaria, em sua secular existência, um rastro imensurável de registros desse próprio tempo, bem como de tempos mais ou menos remotos, bem ou mal reinterpretados em celulóide. Presentificando outras etapas da história, o cinem também tornou-se uma invenção com o olho (câmera) no passado. O problema é que os historiadores, em princípio, não perceberam isso.
A História, que aperfeiçoa seus métodos antes de surgir o cinematógrafo, prefere ignorá-lo, como lembra Marc Ferro, acrescentando: “a linguagem do cinema revela-se ininteligível e, como a dos sonhos, é de interpretação incerta”. Mais prudente, naquele campo do conhecimento, seria manter a tradição documental da palavra escrita. Além de tudo, em sua fase heróica, era o cinema uma curiosidade inculta, destinada portanto à “ralé”. Os elitistas não o levariam a sério. Muitas décadas depois, mesmo mudando-se esse conceito, ainda haveria resistência dos historiadores para se valer do filme, seja ficcional ou mesmo documental, como fonte. Ferro foi um dos profissionais desse campo a apontar a legitimidade do material cinematográfico junto aos estudiosos.
No Brasil, os historiadores seguiram o descompasso de seus pares estrangeiros no trato com o cinema. Mas o audio-visual tanto cresceu em nossas vidas (com a televisão e o videocassete), que logo se impôs como suporte pedagógico. Várias disciplinas o acolheram em salas de aula, impondo aos professores a urgente necessidade de se melhor compreender o que até então era “mera diversão”.
O livro A História vai ao Cinema, organizado por Jorge Ferreira e Mariza de Carvalho Soares, é um rico e estimulante passo do pensamento acadêmico para se compreender uma manifestação artística que já tinha ido à História desde seu surgimento em fins do século XIX.
Não se trata de um compêndio que teoriza sobre tais relações entre as duas matérias apreensoras do tempo (o diretor Sílvio Tendler, na introdução, apenas esboça algo nesse sentido).
A coletânea em pauta reúne vinte filmes brasileiros, cada um deles analisado por um historiador. A seleção dos títulos teve critério um tanto elástico. Incidiu sobre fitas lançadas entre 1976 e 1998 – de “Dona Flor e seus dois Maridos” a “Central do Brasil”. A ênfase em filmes de sucesso comercial, ou de boa ressonância junto à crônica especializada, coincidentemente ou não, redundou em filmes associados a uma idéia de “bom gosto” artístico – o que implica na exclusão não justificada de produções absurdamente populares, como as comédias de Mazzaropi, dos Trapalhões ou do ciclo pornochanchadeiro (dois terços do que se produziu em cinema brasileiro, nos anos 70, eram filmes eróticos). Se tais filmes não foram sucesso de crítica (de resto, algo subjetivo), foram avalizados pelo público. Além do mais, a pornochanchada esteve no centro das discussões daquela década, seja associada ao “pão e circo” imposto pela ditadura, seja por suas supostas “transgressões” sexuais num período de liberação dos costumes, particularmente da mulher – assunto que, por si só, legitimaria uma observação mais ampla das relações basilares entre obras como “Dona Flor…” e “Xica da Silva” e esses filmes de menor extração.
A compreensão, pelo prisma da História, de obras fílmicas requer que se aventure um pouco na própria história do cinema – no caso, o brasileiro. Assim, à guisa de exemplo, é pertinente, na análise de “Marvada Carne”, a observação da ancestralidade do personagem Nhô Quim, que hoje mantém os “poucos mesmos artefatos da cultura material dos bandeirantes paulistas”.[1] Mas o mesmo tipo caipira – e todo esse filme de André Klotzel – é também uma citação do cinema caipira de Mazzaropi, inclusive contando no elenco com a presença de Geny Prado, veterana atriz de seus populares filmes. A cultura remota, sem dúvida, ressoa nos personagens e em seu mundo rural. Mas a cultura imediata do cinema também está, mais conscientemente, arrisco dizer, na construção da obra, que visa tocar no imaginário de amplo público, emocionando-o de algum modo.
O processo cinematográfico, por injunções comerciais, implica em se agrupar filmes em gêneros reconhecíveis. As tramas, os tipos humanos (heróis e vilões) etc. se repetem, bem como as formatações narrativas de pura imagem. Estas tendem a ser recorrentes (o uso dos planos, os movimentos de câmera, a montagem e seu ritmo, a cor etc.). Produzem discursos em consonância com o roteiro meramente literário. Às vezes, porém, deliberadamente ou não, há dissonâncias entre o que é verbalizado na tela e a montagem audiovisual adotada. Na análise de “Pra frente Brasil” cita-se o modelo thriller norte-americano para o filme político, fórmula esta difundida por Costa Gavras.[2] A comparação procede, mas seria também pertinente observar que tal modelo redunda na espetacularização da trama política, engolida pelo ilusionismo hollywoodiano, não surtindo maior efeito nas platéias que só se interessam na “ação pela ação”. Roberto Farias, o diretor, sobretudo está, com seu filme, ajustando-se a uma solicitação comercial num momento em que a abertura política supostamente aceitaria filmes dessa natureza. Farias opta pela linguagem conservadora plenamente adequada à “ideologia” que adota: a do mercado. Da chanchada ao ensaio do Cinema Novo, passando por filmes modernosos sobre Roberto Carlos, o cineasta sempre se guia por caminhos que devem ser também lembrados na análise da obra em pauta. Essa contextualização de cultura cinematográfica e sua adequação ao plano lingüístico não são elementos desprezíveis numa análise envolvendo História e Cinema.
Concorde-se ou não com toda a opinião e abordagem de tantos estudiosos, o livro em questão é, desde já, uma referência obrigatória para se estudar aqueles dois campos do conhecimento. Os autores são especialistas dos temas retratados nos filmes em foco. Alguns podem ter mais familiaridade ou não no trato da linguagem cinematográfica. O projeto editorial assemelha-se ao livro Passado Imperfeito – A História no Cinema (Record, 1997), organizado por Marc C. Carnes, em que historiadores e outros especialistas rastreiam e criticam a história da humanidade expressa em filmes europeus e notadamente hollywoodianos. Ressalvas aqui cabem também no que tange às especificidades do meio cinematográfico, mas o resultado é sempre estimulante. Num outro ângulo dessa aproximação cinema-história, cabe lembrar que os criadores audiovisuais precisam também mergulhar no que há de específico e mais avançado noutras áreas do conhecimento. Há um atraso brutal em relação ao saber, haja vista os resultados medíocres de tantos filmes. “Canudos”, de Sérgio Rezende (que também se baseia no romance O Rei do Cangaço, de Manuel Benício, e não somente traduz Euclides da Cunha), é exemplo desse mau resultado. Um fracasso artístico, inclusive, o que me faz discordar de que seja “bom cinema”, como se lê no texto.[3] O formato do espetáculo comercial de gênero “épico guerreiro”, implica na redução do fenômeno messiânico a uma sucessão de batalhas mal realizadas.
O Nordeste, com esse filme e outros como “Cabra Marcado para Morrer”, “O Homem que virou Suco”, “Central do Brasil” etc. é um tema recorrente na cinematografia brasileira, herança da redescoberta do Brasil via Cinema Novo dos anos 60. Mas outros temas, nessa antologia, se cruzam em vários filmes. Assim, vemos o problema das migrações tanto em “Aleluia Gretchen”, “Quatrilho”, “Gaijin” e “Lição de Amor” quanto em “O Homem que virou Suco” e “Cabra Marcado para Morrer” – esse último diretamente ligado a outro subtema: o Brasil pré e pós-64, ao lado de “Jango”. Temos, enfim, um amplo espectro de possibilidades de análises, por vários ângulos, inclusive com filmes cujo tema histórico situado no passado mais remoto é, de fato, uma crítica ao Brasil contemporâneo, como se observa em “Xica da Silva, por exemplo. Adotemos, pois, esse livro como suporte para discussões mais aprofundadas sobre nosso imaginário histórico, sem esquecer a perspectiva de fazermos “a história audiovisual da história”, como propôs o sociólogo Gilberto Vasconcelos em recente estudo sobre Glauber Rocha.
Notas
1. ALMEIDA, Jayme de. Marvada Carne: uma comédia caipira épica. In: p. 195.
2. BATALHA, Cláudio H. Pra frente Brasil: o retorno do cinema político. In: p. 137.
3. HERMANN, Jacqueline. Imagens de Canudos. In: p. 246.
Firmino Holanda – Universidade Federal do Ceará.
FERREIRA, Jorge; SOARES, Maria de C. (Orgs.) A História vai ao Cinema: vinte filmes brasileiros comentados por historiadores. Rio de Janeiro: Record, 2001. Resenha de: HOLANDA Firmino (Res), Revista Trajetos, Fortaleza, v.1, n.1, 2001. Acessar publicação original. [IF].