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Hobbes on legal authority and political obligation – VENEZIA (CE)
VENEZIA, Luciano. Hobbes on legal authority and political obligation., 2015. Resenha de: HIRATA, Celi. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.34, Jan./Jun. 2016
Em seu livro, publicado no ano passado, Luciano Venezia pretende fundamentar uma leitura deontológica da obrigação política em Hobbes. Trata-se de um comentário que se opõe à leitura mais difundida, leitura segundo a qual o principal traço da lei seria a coerção, de forma que os súditos seriam obrigados a obedecer à lei porque o seu cumprimento constituiria a melhor maneira de promover os seus interesses e não porque a lei obrigaria por si mesma. Venezia, em contraste, pretende argumentar que os súditos estão moralmente obrigados a obedecer à lei na medida em que as promessas e contratos possuem a força de obrigar por si mesmas, independentemente dos interesses do agente, sendo que há casos nos quais a ordem legal requer que os súditos ajam de um modo diferente do que o interesse racional ordenaria. A marca característica da lei seria, pois, a autoridade e não a coerção. Para o autor, o que está em questão é a defensabilidade mesma da teoria política de Hobbes, na medida em que uma interpretação que enfoca no caráter coercitivo da lei e no interesse próprio comprometeriam a relevância teorética de sua filosofia política e legal pelas seguintes razões: em primeiro lugar, porque teorias que fazem da coerção a característica fundamental da lei não são hodiernamente populares; em segundo, como H. Hart argumenta, a teoria hobbesiana da lei, de acordo com essa interpretação predominante, não daria conta de uma certa variedade de leis — como aquelas que conferem poderes ao invés de imporem obrigações — bem como da persistência das leis ao longo de diferentes gerações de legisladores; por fim, como S. Shapiro defende, um regime no qual as sanções de não-cumprimento constituíssem a única razão para a obediência seria logicamente impossível pela simples razão de que há um limite para as ameaças e sanções.
A interpretação de Venezia é fundamentada em três sub-teses, como o próprio autor formula nas considerações finais: em primeiro lugar, Venezia defende que as diretivas legais introduzem razões autorizadas para a ação, que, como tais, excluem e tomam o lugar de outros tipos de razão, como as razões de teor prudencial; em segundo, o autor argumenta que os súditos são moralmente obrigados a obedecer a quase tudo que é ordenado pelo soberano, mesmo quando o cumprimento da ordem é desvantajoso para a sua autoconservação; em terceiro, Venezia sustenta que a teoria contratual de Hobbes fundamenta as obrigações políticas de modo independente dos estados motivacionais dos súditos, sendo que as suas obrigações podem ir para além da promoção de seus interesses racionais.
Quanto ao primeiro ponto, Venezia argumenta que a noção de autoridade ocupa um lugar de destaque na filosofia legal e política de Hobbes e que ela se distingue normativamente de outras razões que influenciam o comportamento humano, como a persuasão e o poder: enquanto as diretivas coercitivas influenciam as ações pelo seu conteúdo (na medida em que um agente as segue para evitar um mal maior ou alcançar um bem maior), as diretivas autorizadas influenciam o raciocínio prático pela sua origem, sendo que um agente a segue porque uma pessoa ou instituição exige que ele aja assim, independentemente de seu conteúdo, mesmo quando o agente não acredita que o seu cumprimento seja vantajoso (incluindo no cálculo as sanções que podem advir de seu não-cumprimento). A distinção que está na base dessa diferenciação é aquela que Hobbes realiza no capítulo XXVI do Leviatã entre conselhos (counsels) e ordens (commands): enquanto os primeiros fornecem uma razão para agir em virtude de seu conteúdo, as segundas o fornecem em função de sua origem. A lei, na medida em que motiva a ação pela sua origem, tem, segundo Venezia, o propósito de interromper a deliberação prática e fornecer a razão relevante para a obediência. É nesse sentido que Hobbes de fi ne nos Elementos da Lei que uma ordem é uma lei quando “a ordem é uma razão suficiente para mover a ação” (EL, XIII, 6). É também nesse sentido que a sentença do árbitro exclui e substitui a avaliação pessoal, tornando-se a razão definitiva para agir. Sendo assim, as sanções pelo não-cumprimento não desempenham um papel central na concepção hobbesiana da lei, mas são apenas coadjuvantes. Venezia opõe-se, assim, à leitura analítica predominante sobre a obrigação, leituras como as de D. Gauthier, G. Kavka, J. Hampton, K. Hoekstra, que sustentam que o papel do soberano consiste em resolver o dilema do prisioneiro, superando a in fluência das paixões e aliando o interesse privado com o interesse comum por meio das sanções.
O argumento de que as leis seriam um tipo diferente de razão por meio da distinção entre ordens e conselhos, entre motivação pela origem e motivação pelo conteúdo é bastante convincente. Entretanto, fica a questão de se seria possível algo assim como interromper a deliberação para Hobbes. A alternância das imagens das consequências boas ou más de uma dada ação na mente ou dos apetites e aversões parece ser descrito por Hobbes como um processo universal, que se dá em todos os corpos animados. Este argumento deveria, pois, ser fundamentado não apenas na natureza da lei, isto é, no terreno político e legal, mas também no terreno antropológico.
Outro argumento que Venezia apresenta para defender que as sanções não são centrais na filosofia legal de Hobbes é que mesmo agentes que, por suposição, fossem perfeitamente racionais e morais, precisariam de autoridade para regular as suas ações, mesmo na ausência de sanções. A guerra no estado de natureza se daria, segundo a interpretação de Venezia, porque os homens discordam em suas interpretações particulares do que é válido ou razoável, isto é, devido à ausência de padrões do que é bom ou ruim e das ações que devem ser realizadas. A explicação do conflito não seria moral ou psicológica, mas residiria na falta de definições autorizadas de noções morais. Essa explicação do conflito abre espaço para uma filosofia política e legal que enfatiza a autoridade como o traço característico da lei. Embora toda lei envolva penalidade e as sanções sejam uma parte constitutiva da lei, trata-se mais de uma questão empírica do que conceitual, sendo que a ordem do soberano fornece por si mesma a razão para agir e as sanções introduzem apenas uma razão adicional para o cumprimento da lei, minimizando o risco de abuso e não-cumprimento. A coerção não seria, deste modo, indispensável na regulação das leis.
A despeito de centralizar na noção de autoridade, afirmando que é ela que caracteriza a lei e não a coerção, o autor não analisa a noção de autorização e de representação tal qual Hobbes a apresenta no Leviatã. A justificativa que ele indica é dupla: em primeiro lugar, o autor alega que a autorização não acrescenta nada de significativo para a obrigação contratual de obediência às diretivas do soberano; em segundo, ele afirma, seguindo nisto o comentário de P. Martinich, que a fundamentação da obediência na autorização e na alienação do direito natural são incompatíveis, na medida em que, quando uma pessoa autoriza uma outra, esta última apenas a representa, de modo que a primeira possui autoridade e permanece superior em relação à segunda, em contraste com a alienação. Ora, seria importante mostrar isso de forma mais fundamentada, já que não é essa a consequência que Hobbes parece extrair do ato de autorização. Uma vez que a noção de autoridade é central para a argumentação de Venezia, seria preciso, parece-nos, dar mais atenção a essa noção tal como ela é apresentada no texto de Hobbes.
Quanto ao segundo ponto, Venezia argumenta que se a tese de que a obediência se fundamenta no auto-interesse dos súditos fosse correta, os agentes poderiam legitimamente desobedecer à lei quando ela não o promovesse, o que não é afirmado por Hobbes. Pelo contrário, a desvantagem da obediência da lei não legitima a desobediência. A desobediência em relação às leis só é justificada nos casos nos quais os súditos não se obrigaram a obedecer ou a não resistir. Deste modo, mesmo a liberdade para desobedecer é normativa, segundo Venezia.
Além disso, a teoria de Hobbes introduziria, segundo Venezia, as duas notas características das razões morais, tais como elas são descritas contemporaneamente por Stephen Everson. Segundo este, as razões morais são aquelas que, em primeiro lugar, motivam o agente a agir pelo interesse de outro além do interesse próprio e que, em segundo, são categóricas, sendo que a sua força normativa não depende das motivações do agente. Ora, Venezia argumenta que Hobbes introduz a análise de determinadas paixões, como piedade, caridade, benevolência, etc., pelas quais os homens podem ser motivados apenas pela ideia de promoverem o interesse de outros. Quanto ao segundo ponto, o comentador argumenta que, a partir da definição hobbesiana de justiça, os homens justos não são motivados pelo benefício próprio, mas exclusivamente por considerações morais, sendo que aquele que cumpre a lei não pela lei, mas pelo medo da sanção, é injusto (Do Cidadão, IV, 21). Ora, a partir do parágrafo referido, no qual Hobbes afirma que a lei de natureza compete à consciência, não se pode fundamentar a tese de que essas leis sejam imperativos categóricos, e consequentemente razões morais no sentido descrito por Everson. No Leviatã, Hobbes, pela contraposição entre foro interno e foro externo, afirma que a obrigação em consciência das leis de natureza só obrigam de fato quando há segurança no seu cumprimento. Ou seja, trata-se de um imperativo hipotético e não categórico, já que a obrigação se fundamenta na obtenção da paz e vale apenas com a condição de que os outros a cumpram 1 . Elas tornam impositivo o desejo de as colocar em prática, mas nem sempre obrigam porque dependem de circunstâncias exteriores ao agente. Há, neste ponto, uma grande distância entre a filosofia de Hobbes e aquela de Kant. A perspectiva acaba sendo até mesmo inversa: para Hobbes, aquele que agisse incondicionalmente de acordo com as leis de natureza, aplicando- as mesmo na ausência de garantias de que os outros a cumprissem, agiria contrariamente ao fundamento mesmo das leis de natureza, invalidando a sua aplicação futura.
Enfim, quanto ao terceiro ponto, Venezia sustenta que Hobbes analisa as obrigações contratuais numa maneira deontológica, na medida em que depois de renunciar pelo contrato à parte de seus direitos naturais, os agentes adquirem obrigações que são independentes de seus estados motivacionais contingentes. A obrigação tem como fundamento
a promessa, sendo que a penalidade constitui uma motivação meramente adicional. Nesse sentido, a razão para contrair a obrigação distingue-se da razão para cumpri-la: enquanto a primeira é prudencial, baseada no auto-interesse, a segunda não o é. A obrigação política não se fundamenta na possibilidade de sanções em caso de não cumprimento, mas em atos voluntários que expressam consentimento.
Por fim, Venezia critica esse fundamento mesmo da obrigação política em Hobbes, a saber, a tese de que as ações realizadas sob coerção são completamente voluntárias. O comentador argumenta que as ações cometidas sob coerção não são voluntárias porque as condições sob as quais os agentes coagidos fazem as suas escolhas não refletem a sua vontade real, considerando-se a afirmação de Hobbes de que “o objetivo de todos os atos voluntários dos homens é algum bem para si mesmos” (Leviatã, XIV, p. 115). Os agentes não realizariam as ações em questão se elas tivessem oportunidade de agir de outro modo, sendo que a escolha em questão não expressa o arbítrio próprio do agente, mas a escolha é de outro, que deliberadamente reduz as opções possíveis. As suas decisões não refletiriam a sua verdadeira vontade, mas eles seriam o mero instrumento de outros agentes. Ora, tal crítica se opõe à definição mesma de voluntaridade em Hobbes, definição segundo a qual é voluntário todo ato que provém da vontade, a qual consiste, por sua vez, no último momento da deliberação do qual se segue imediatamente a ação, independentemente de como e em quais circunstâncias foi determinada. É justamente nesse sentido que Hobbes reavalia o exemplo de ação dado por Aristóteles na Ética a Nicômaco, a saber, a de um capitão que joga a carga de sua embarcação no mar pelo medo de seu navio afundar, exemplo que é mencionado por Venezia. Enquanto para o estagirita essa ação constitui o exemplo de uma ação mista, nem voluntária e nem contra-voluntária, visto que a ação não seria desejada por si mesma, ainda que o princípio da ação resida no agente, para Hobbes se trata de uma ação perfeitamente voluntária porque procedente da vontade. Essa redefinição e simplificação do que é a vontade e do que é voluntário é absolutamente central na filosofia hobbesiana. Afirmar, pois, que o que Hobbes de fi ne como voluntário nem sempre o é, na medida em que as ações realizadas sob coação não seriam desejadas em si mesmas, é rejeitar a definição de Hobbes e endossar o que o autor já refutara. Mas como o próprio Hobbes defende, se a definição é compreendida e não admitida, a controvérsia se encerra (De Corpore, VI, § 1 5) .
Por fim, nas considerações finais, Venezia dirige críticas a diversos pontos da filosofia política de Hobbes. Em primeiro lugar, Hobbes erraria no ponto de partida de sua teoria política ao colocar o desacordo humano e a guerra civil no mesmo patamar, ponto de partida que resultaria numa teoria política extremamente autoritária. Os filósofos políticos contemporâneos, como J. Rawls, mostraram que o conflito e a diversidade de opiniões são constitutivas das sociedades democráticas. Outro ponto a ser criticado, tal como Hume já o fizera, é que apenas um número muito limitado de súditos obrigaram-se, tanto pelo consentimento tácito como explícito, a obedecer à lei. Além disso, Venezia critica o fato de que o direito do soberano de governar não é apenas o resultado da transferência dos direitos pelos súditos, mas está fundamentado em seu direito natural, o que seria inapropriado, pois deste modo não se distinguiria o soberano enquanto um indivíduo privado e enquanto portador de um cargo oficial. Por fim, além daquela crítica concernente à voluntariedade das ações feitas sob coação, Venezia endossa a crítica dos filósofos liberais, notadamente, J. Locke, de que não se pode ter obrigações políticas em relação a um governo absoluto por não possuirmos o direito de nos escravizar. À exceção da segunda crítica, que diz respeito ao número dos que pactuaram e que parece ter validade mesmo pressupondo a filosofia hobbesiana, as demais críticas são exteriores à filosofia de Hobbes e só podem ser realizadas a partir de pressupostos completamente estranhos ao filósofo. Se, por um lado, é louvável o esforço de trazer a filosofia de Hobbes para os debates contemporâneos, por outro, medi-lo a partir dos parâmetros da filosofia política atual faz o seu sistema filosófico perder o seu sentido.
De toda forma, o livro de Luciano Venezia constitui uma contribuição importante para os estudos da filosofia hobbesiana, uma vez que apresenta bons argumentos em favor de uma leitura diferente daquela predominante sobre a obrigação política, a natureza da lei e do contrato na filosofia de Hobbes, além de ser extremamente claro e objetivo. O que nesta resenha se apresentou como sendo problemático decorre em grande medida da discrepância entre dois métodos e tradições de interpretação distintos, a saber, entre o método estrutural de leitura e o método analítico, que é o método adotado pelo autor do livro.
Nota
1 “(…) Aquele que fosse modesto e tratável, e cumprisse todas as suas promessas numa é poca e lugar em que ninguém mais assim fizesse, torna-se-ia presa fácil para os outros, e inevitavelmente provocaria a sua própria ruína, contrariamente ao fundamento de todas as leis de natureza, que tendem para a preservação da natureza ” (Hobbes, 2014, p. 136).
Referência
HOBBES, Thomas. (2 0 1 4). Leviatã. São Paulo: Martins Fontes.
Celi Hirata – Professora Universidade Federal de São Carlos. E-mail: celi_hirata@yahoo.com