Thompson: história e formação – BERTUCCI (RBHE)

BERTUCCI, Liane Maria; FARIA FILHO, Luciano Mendes de; OLIVEIRA, Marcus Aurélio Taborda de. Edward P. Thompson: história e formação.  Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. Resenha de: MAYOR, Sarah Teixeira Soutto. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 12, n. 3 (30), p. 229-234, set./dez. 2012.

Partindo do pressuposto de que a produção de Edward Palmer Thompson pode ajudar, de inúmeras maneiras, a “indagar o fenômeno educacional” na contemporaneidade (p. 10), e de que pouco se recorre às obras deste historiador para pensar a história da educação no Brasil, o livro procura desenvolver uma reflexão sobre a educação, a escolarização e a sua história.

Cabe ressaltar a inserção acadêmica no âmbito da história da educação dos três autores do livro e o diálogo com as obras de Thompson em seus trabalhos. Liane Maria Bertucci é doutora em história pela Universidade Estadual de Campinas e professora de história da educação na Universidade Federal do Paraná; Luciano Mendes de Faria Filho é doutor em educação pela Universidade de São Paulo e professor de história da educação na Universidade Federal de Minas Gerais; e Marcus Aurélio Taborda de Oliveira é doutor em educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor do programa de pós-graduação em história da educação e em lazer, na Universidade Federal de Minas Gerais.

O livro é dividido em três capítulos. Neles os autores dialogam com as contribuições de Thompson como historiador, com as noções-chave de cultura e experiência, para pensar a escolarização, e com a noção de “fazer-se”, construída pelo autor a partir do estudo da classe operária inglesa, a qual se mostra como possibilidade para pensar a cultura escolar.

Assim, no primeiro capítulo, intitulado “Thompson historiador: Teoria, método e fontes – contribuições para a história da educação”, o leitor tem acesso a “[…] um quadro de possibilidades de Thompson para pensar a produção do conhecimento histórico, seja na educação ou não […]” (p. 13). Já no segundo capítulo, “Experiência e cultura em Thompson: Contribuições para uma história social da escolarização”, o leitor encontrará a problematização do processo de escolarização como “[…] experiência histórica ainda aberta, e não predefinida […]” (p. 13). E por fim, no terceiro capítulo, “Formação como fazer-se, um legado Thompsoniano: Contribuições para a educação”, o livro se volta para a compreensão das formas como a escolarização

[…] pode produzir um sujeito que é, de alguma maneira, formado […] para perpetuar a sociedade, ao mesmo tempo que adquire uma base cultural que permite produzir as condições de resistência a essa mesma sociedade […] (p. 14).

Nos três capítulos, é realizado um diálogo com autores importantes do campo historiográfico, como Peter Burke, Eric Hobsbawm, Marc Bloch, Lucien Febvre e Carlo Ginzburg, assim como com autores que problematizam os currículos e as culturas escolares, a exemplo de Osmar Fávero, Ivor Goodson, Maria do Carmo Martins, André Petitat, Fernando Alvarez-Uria, Julia Varela e Diana Gonçalves Vidal. Há também o diálogo com outros dois importantes autores, principalmente em se tratando das noções de cultura e experiência: Raymond Williams e Walter Benjamin. Dentre as treze obras e textos de Thompson abordados no decorrer do livro, podem ser destacados: “A miséria da teoria” (1981), “A formação da classe operária inglesa” (1987), “Costumes em comum” (1998) e “Folclore, antropologia e história social” (2001).

Ao fim dos capítulos, os autores apresentam um conjunto de trabalhos publicados no Brasil sobre Edward Palmer Thompson e sua produção historiográfica. Vale destacar a importância desta iniciativa para o aprofundamento do debate para aqueles que se interessarem pelas contribuições desse historiador para a pesquisa em educação.

Os autores começam a discussão lançando as seguintes perguntas: “é possível pensar na possibilidade de um Thompson educador? Se sim, em que sentido” (p. 10)? Tomando o cuidado necessário de não “pedagogizar” o historiador, como os próprios autores ressaltam, com o “[…] intuito de preservar o contexto que viu nascer determinado conjunto de reflexões motivadas por um inventário muito particular de problemas […]” (p. 10), há um reconhecimento de que várias são as possibilidades para se pensar o fenômeno educacional e os processos de escolarização por meio do legado de Thompson, destacando-se o que os autores consideram como duas das noções-chave de seu pensamento: a de cultura e a de experiência.

Essas noções, trabalhadas pelo historiador, permitem um alargamento da própria noção de formação, o que de fato, torna-se uma grande contribuição deste livro. Os autores destacam uma ideia bastante defendida por Thompson, de que os diversos sujeitos se formam e se educam “[…] nas mais diversas circunstâncias em que vivem, seja no mundo do trabalho, da família, da comunidade de pares, do lazer, entre muitos outros […]” (p. 11). Nesta perspectiva, Thompson procurou demonstrar, utilizando-se de seus estudos sobre a classe operária inglesa, que as pessoas se autorreconhecem como um grupo com interesses próprios, a partir de suas lutas cotidianas, costumes, leis, práticas religiosas, entre outras.

Interessante destacar que o entendimento da formação para além dos limites da escola torna-se fundamental para a compreensão da própria cultura escolar e dos processos de escolarização, permitindo, assim, a ampliação do olhar sobre o fenômeno educacional. Este entendimento demonstra também a necessidade de se ampliar os olhares acerca dos próprios sujeitos, aspecto bem abordado pelos autores ao se referirem à noção de experiência de Thompson e à sua preocupação em estudar a vida cotidiana de homens e mulheres simples (p. 22). Recusando a superioridade do econômico sobre o sociocultural, o historiador questiona como uma abordagem exclusivamente economicista compreenderia aspectos desse cotidiano, como “[…] os ritmos habituais de trabalho e lazer (ou festas), […] os ritmos intrínsecos ao próprio ato de produzir […]”, as diversas crenças religiosas, entre outras formas de experiência humana (p. 28).

A própria consideração de Thompson sobre a amplitude das fontes e dos problemas torna-se de grande relevância para se pensar as questões propostas pelo livro. Como apontam os autores (p. 35):

[…] o fazer histórico de Thompson é um permanente questionar de nossa compreensão sobre o que considerar documento para o estudo histórico da escola e dos processos educacionais. Da legislação, tradicional, locus de pesquisa dos estudos da área, aos jornais diários de uma cidade, a gama de fontes e a forma de interrogá-las ganham nova perspectiva: aquela que aponta para a necessidade imperiosa de se perceber as relações e tensões sociais que um documento expressa; as marcas muitas vezes sutis das derrotas, as exuberantes expressões das vitórias dos que viveram e lutaram para construir a vida em sociedade.

O trecho final da citação revela um aspecto importante ressaltado pelos autores em outro momento do livro, quando relatam o que, segundo eles, seria uma grande lição deixada por Thompson: “[…] toda regulamentação da vida em sociedade é marcada por conflitos, cuja intensidade deve ser analisada nos termos de quem as viveu […]” (p. 43).

Assim, uma importante contribuição de Edward Thompson pode ser pensada em qualquer processo de formação. Ao propor que a história não é predeterminada, considerando a ação criativa dos homens e mulheres, contribui para pensar a escola, na medida em que aponta que sua ação não ocorre em um “vazio cultural”. Apropriando-se das ideias do historiador, os autores observam que a escola, ao se estruturar como instituição, age “[…] numa situação de grande densidade cultural, na qual as pessoas são produzidas e reconhecidas como sujeitos na e da cultura […]”, sendo preciso reconhecer, assim, “[…] que o processo educativo posto em ação na e pela escola entra em tensão com processos educativos já existentes […]” (p. 46).

Ao abordarem essa densidade cultural, os autores chamam a atenção para os processos históricos que constituíram e constituem a instituição escolar e a escolarização, também culturais, assim como as suas estratégias formativas. Como exemplo, citam a mobilização da sociedade a favor da escola, empreendida pela elite letrada, por meio da qual “[…] as culturas dos pobres e do aprendizado na e pela experiência deveriam ser abandonadas a favor das racionalizadas e racionalizadoras culturas escolares […]” (p. 47).

Os autores ressaltam, assim, que a emergência da escola criou novas formas e padrões de socialização, que tendiam a “[…] afastar as novas gerações, sobretudo das camadas mais pobres, da cultura cultivada pelos ancestrais […]” (p. 52); interrogam “[…] as formas pelas quais os tempos escolares vão ganhando legitimidade e provocando um crescente tensionamento do conjunto dos tempos sociais […]” (p. 61). Chamam a atenção, desta forma, para um longo percurso que precisa ser estudado, dando destaque ao modo como instituições sociais

“[…] vão inventando ou desautorizando tradições culturais e políticas as mais diversas, e sobre as formas como as escolas são chamadas a contribuir com a formação cívica e, por que não, com a espetacularização da política […]” (p. 61).

Com estas reflexões, o livro contribui para pensar novas possibilidades de pesquisa na história da educação e também para desnaturalizar a instituição escolar e os próprios processos de escolarização, inseridos em diferentes contextos históricos, marcados por inquietações de um tempo específico. Traz elementos também para pensar as dimensões da formação como “intimamente relacionadas ao conjunto das experiências dos sujeitos” (p. 52), uma das grandes possibilidades oferecidas pelos trabalhos de Thompson para pensar os estudos em educação. A noção de experiência, cunhada pelo historiador, implica o reconhecimento dos sujeitos como reflexivos, capazes de, em suas ações, construírem continuamente o movimento da história (p. 49).

E, no entendimento de uma educação que se faz nas relações sociais e que extrapola os limites da escola e da sala de aula, dimensão fundamental para a compreensão da própria instituição escolar, os autores retomam a ideia Thompsoniana de “fazer-se”, ou seja, os indivíduos são sujeitos de sua própria formação, de um processo que permite a ideia de emancipação (p. 66). Como observam os autores, fala-se de homens e mulheres, “[…] em sua vida material, em suas relações determinadas, em sua experiência dessas relações, e em sua autoconsciência dessa experiência […]” (p. 69).

Assim, outra importante contribuição é trazida pelo livro a partir das ideias de Edward Palmer Thompson: as diferentes formas de reação dos agentes, no caso os escolares, que precisam ser reconhecidas não como adesão cega às intervenções de diversas instâncias normatizadoras, mas como diálogo. Priorizando a experiência do indivíduo, que, como já referido, não se encontra em “um vazio cultural”, o diálogo “[…] deve considerar tanto a dimensão racional quanto a dimensão sensível postas em prática no ato de formação […]” (p. 71). A experiência consistiria, assim, em um elemento mediador, uma conexão entre processo histórico, determinações culturais e ação humana individual, em permanente tensão.

Entre a determinação e a apropriação, entre a estrutura e o processo, entre a singularidade e a generalização, medeia a experiência. Logo, esse autor não descartaria uma análise ideológica da cultura, mas não a reduziria também à lógica da conspiração, leitura que marca ainda hoje grande parte dos trabalhos em educação no Brasil. Ao propor a dialética entre educação e experiência o autor caracteriza o segundo termo como uma “exploração aberta do mundo de nós mesmos” (p. 80).

Desta forma, experiência é compreendida pelos autores como “[…] própria de indivíduos singulares e é incompatível com os cálculos que reduz homens e mulheres a insumos […]”. Ela é dialógica e “[…] se funda no ser sensível, que está em tensão permanente com as estruturas econômicas, políticas e sociais sintetizadas na cultura […]” (p. 84).

Finalizando, o livro sugere a importância de considerar a tensão entre formas de dominação e resistência, fundamental para se pensar a escola e a escolarização, já que “[…] os indivíduos são partícipes dessa luta, por adesão ou omissão, resistência ou conformação, mas o são em situação […]” (p. 91). Os autores problematizam as possibilidades de formação postas pelo mundo contemporâneo, pautadas pelas ideias de autoconsciência crítica, autodeterminação, autonomia, reciprocidade e mutualismo, que remetem à noção de autoformação trabalhada por Thompson, mas que ainda contrastam com um mundo que parece

[…] marcado pela heteronomia, pela indiferença, pela atualização sem precedentes das formas de dominação, seja pela força das armas ou pela educação dos sentidos, ou simplesmente pela negação do direito à dignidade a grandes contingentes da população mundial […] (p. 92).

E, assim, concluem que a formação, “[…] entendida como processo de autorreflexão, de autoconhecimento, de contínuo fazer-se, inclusive escolar, teria um lugar fundamental para que a sociedade pudesse se organizar em outras bases […]” (p. 93).

Nesse sentido, o livro cumpre o objetivo proposto e revela grandes contribuições para pensar a educação e a escolarização na contemporaneidade, a partir dos estudos do historiador Edward Palmer Thompson. A ideia de formação como um contínuo “fazer-se”, as noções de cultura e experiência e de educação para além do limite escolar podem possibilitar novos olhares para a própria escola e para os sujeitos que dela fazem parte, assim como para as tensões de uma cultura sempre em movimento, que não abarca apenas perspectivas de conformação, mas, como lembram os autores, possibilidades de reinvenção.

Sarah Teixeira Soutto Mayor –  Mestre em Estudos do Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Integrante do NUPES/UFMG (Núcleo de Pesquisas sobre a Educação dos Sentidos e das Sensibilidades), e do CEMEF/UFMG (Centro de Memória da Educação Física, do Esporte e do Lazer).  E-mail: sarahtsouttomayor@hotmail.com

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História da educação no Brasil: Matrizes interpretativas, abordagens e fontes predominantes na primeira década do século XXI – XAVIER (RBHE)

XAVIER, Libânia; TAMBARA, Elomar; PINHEIRO, Antônio Carlos Ferreira. História da educação no Brasil: Matrizes interpretativas, abordagens e fontes predominantes na primeira década do século XXI. Vitória: EDUFES, 2011. Resenha de: CARVALHO, Fábio Garcez de. Revista Brasileira de História da Educação, v. 11, n. 3 (27), p. 153-182, set./dez. 2011.

O leitor interessado em conhecer os caminhos que a pesquisa em História da Educação vem trilhando nesse curto século XXI encontrará nos dez volumes da Coleção Horizontes da Pesquisa em História da Educação no Brasil uma rica coletânea de artigos representativos do debate intelectual no campo. Aos organizadores coube a difícil tarefa de selecionar e organizar uma amostra dessa produção, que tem como marca identitária a pluralidade de abordagens teórico-metodológicas, fruto das mudanças de paradigmas nas Ciências Humanas.

Tal tendência renovadora se faz representar na seleção e organização do volume 5, denominado História da Educação no Brasil: Matrizes interpretativas, abordagens e fontes predominantes na primeira década do século XXI. O sumário é dividido em três partes que abrange o largo espectro de mudanças da historiografia da educação brasileira nas últimas décadas. A primeira parte é reservada às matrizes interpretativas. Nelas encontraremos os grandes sistemas de pensamento, que forjaram as tradições intelectuais que ainda hoje se fazem presentes no debate acerca da escrita da História em Educação. Na segunda parte privilegia-se o debate sobre métodos, onde são apresentados resultados de pesquisas em curso a partir do uso de diferentes fontes: oralidade, estatísticas educacionais e livro didático. Por último, a temática das novas abordagens se faz representar com a seleção de algumas pesquisas, representativas de tendências renovadoras.

No que se refere à primeira parte, o artigo Matrizes interpretativas da história da educação no Brasil republicano, de Libânia Xavier, nos oferece um painel apropriado da trajetória da historiografia da educação em relação com o pensamento social brasileiro mediante a operacionalização da definição de matrizes, proposta por Wanderley Guilherme dos Santos. Assim, dispomos de uma grade interpretativa que se propõe a analisar a construção da disciplina História da Educação em sua relação com os intelectuais e sistemas de pensamento que influenciaram de alguma maneira o próprio campo da educação no Brasil, a saber: 1) matriz político-institucional; 2) matriz sociológica; 3) matriz político-ideológica; 4) matriz histórico-cultural (p.20). Além de servir como texto orientador para a organização e seleção dos textos da primeira parte, representa também uma iniciativa de contribuir para o debate acerca das relações da historiografia da educação com o campo educacional, propriamente dito.

Assim sendo, cada um dos textos refere-se a uma matriz específica, diferenciando-se entre si no tipo de abordagem, questão e recorte temático proposto. É o que podemos constatar na leitura de O centenário de Sérgio Buarque de Holanda diz respeito à história da educação, de Marcos Cezar de Freitas. O autor explora as possíveis conexões entre o pensamento educacional de Anísio Teixeira e a historiografia de Sérgio Buarque de Holanda, na concepção intelectual do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE). Proposta de análise fecunda uma vez que nos remete a uma reflexão acerca de quão complexas foram as imbricações intelectuais que percorreram a construção do campo da pesquisa educacional no Brasil.

Outra análise centrada no intelectual representativo de uma respectiva matriz está presente em Florestan Fernandes e a construção de um padrão científico na educação brasileira, de Marcelo Augusto Totti. Evidencia-se no artigo a função desempenhada por Florestan Fernandes em tornar a sociologia uma disciplina norteadora dos padrões de cientificidade a que carecia, a seu ver, o campo educacional brasileiro. Os artigos supracitados tratam, portanto, de tradições intelectuais que se forjaram no interior do campo da educação brasileira a partir da interseção entre diferentes áreas de conhecimento.

Já os dois artigos seguintes, espelham uma das vertentes de pensamento presente no campo da educação: o marxismo. Em Marxismo e culturalismo: reflexões epistemológicas sobre a pesquisa em História da educação, de Marisa Bittar e Amarílio Ferreira Jr., o percurso do marxismo na pesquisa educacional – paradigma representativo da matriz político-ideológica – é abordado à luz de uma proposta interpretativa que leva em consideração a militância política e a formação teórica dos respectivos pesquisadores. Perspectiva que se evidenciou fecunda uma vez que os autores articularam a sua condição de testemunho da história com a sua prática de pesquisa no interior da Universidade. O marxismo, assim, torna-se um problema de pesquisa, conforme podemos atestar na própria opção em investigar a presença desse referencial teórico nas dissertações de mestrado da UFSCar entre os anos de 1976-1993. Tal pesquisa resultou no balanço crítico da produção fundamentada no corte temático das instituições escolares, que tem marcado intensamente o campo da história da educação no contexto da renovação historiográfica.

O leitor encontra outras considerações críticas acerca das tendências renovadoras da historiografia educacional em História cultural e educação: questões teórico-metodológicas, de Sérgio Castanho. O autor é claro em sua inquirição à influência da História Cultural na pesquisa em educação na medida em que sugere uma reflexão sobre os seus possíveis limites na abordagem de temas relativos “[…] à profissionalização docente, a temporalidade e a espacialidade escolar, o impacto da passagem da cultura ágrafa à alfabetização e outros âmbitos educacionais específicos” (p.109).

As questões propostas tornam-se instigantes em face da hegemonia da História Cultural nos estudos em História da Educação. Ao propor debater as relações entre os respectivos campos, o autor explicita a sua crítica às concepções que elevam a cultura à causa primeira dos acontecimentos sociais, subordinando o processo histórico a sua dinâmica. De modo geral, é uma questão teórica fundamental que tem colocado em lados opostos defensores e críticos da História Cultural.

Quanto à segunda parte da coletânea, dispomos de quatro textos representativos do impacto das tendências historiográficas renovadoras na escrita em História da Educação. O primeiro deles, Fontes e métodos na história da educação, de Elomar Tambara & Avelino Rosa Oliveira, segue na linha de questionamentos, a partir de uma abordagem marxista, à influência da Nova História. Concordando ou não com as concepções esposadas pelos autores sobre a construção do conhecimento histórico e as críticas às novas tendências historiográficas, o leitor tem em mãos os argumentos críticos às novas metodologias em história da educação que tem resultado na fragmentação do objeto de estudo e o ‘(…) relativo afastamento da idéia de totalidade”(p.160).

Por outro lado para demonstrar a vitalidade da renovação dos estudos em história da educação, o leitor dispõe de A História da Educação conjugada à história Oral em Imagem videográfica, de Bernadeth Maria Pereira. De acordo com a sua análise, a oralidade contribui para a renovação historiográfica sob três perspectivas: 1) destaca-se por sua especificidade metodológica à medida que problematiza a relação entre entrevistado e entrevistador; 2) a oralidade pode trazer à baila a voz dos “excluídos” e dos “esquecidos” para o âmbito da pesquisa acadêmica. Outrossim, a autora demonstra que a contribuição da história oral para a renovação da historiografia educacional não é tão recente quanto se parece, mas remonta aos anos 1970, a exemplo do trabalho de pesquisa de Zeila Dermatini (1979), que focado no estudo da memória de professores, “objetivou trazer à luz o conhecimento de um período ainda bastante desconhecido naquela época sobretudo no tocante ao aspecto educacional em áreas rurais no estado paulista” (p. 182)

Se uma das virtualidades do uso da história oral foi a deampliar o escopo documental dos pesquisadores para além dos dados quantitativos, no artigo Os limites das estatísticas educacionais por aqueles que os produziram, de Natália de Lacerda Gil, somos convidados a uma reflexão crítica sobre um tipo de fonte tradicional, que os historiadores de ofício denominam de fonte serial. No caso do estudo em questão, a autora se debruça sobre as estatísticas educacionais. As certezas quanto a sua objetividade e infalibilidade para orientar as políticas educacionais são postas em cheque a partir de uma investigação de alguns trabalhos estatísticos realizados pelo estado brasileiro no final do século XIX e a primeira metade do século XX. Ao explorar essa produção, a autora, tece a sua argumentação em duas direções: 1) as lacunas que envolvem os problemas técnicos de seleção e operacionalização de dados estatísticos; 2) analisa os discursos, fundamentados no universo simbólico de certezas científicas, que acompanha a construção do saber estatístico em sua aplicação na área da educação. As tensões advindas da interseção entre duas áreas distintas de conhecimento são exploradas com competência, a ponto de, ao final da leitura, ser possível refletir acerca da complexidade do campo educacional. Aliás, convite sugerido pela própria autora ao advogar uma postura crítica dos pesquisadores frente à “apropriação no meio educacional de qualquer conhecimento produzido no meio científico” (p.215).

A segunda parte da coletânea é finalizada com a apresentação de uma pesquisa de doutorado em andamento. O artigo: Pesquisa em História da Educação: localização e seleção de livros didáticos de história do Brasil no contexto republicano, de Kênia Hilda Moreira, é um relato de pesquisa cujo foco é a apresentação dos procedimentos metodológicos para a busca, seleção e construção do corpus documental que, no caso em questão, são os livros didáticos de História. Aliás, uma fonte que apresenta um enorme potencial a ser explorada, conforme defende a autora. Dispomos, então, de um artigo representativo da produção atual em história da educação que, por sua vez, segue os caminhos de renovação historiográfica a partir da incorporação de novas fontes.

Ao chegarmos à terceira parte da coletânea referente às abordagens, encontramos em As novas abordagens no campo da história da educação brasileira, de Antônio Carlos Ferreira Pinheiro, um texto-síntese acerca dos percursos da renovação da História da Educação. Esta é relacionada às mudanças no campo historiográfico, em que despontam três segmentos: a Nova História Cultural, a História Social inglesa e a Micro-história italiana; lugares a partir dos quais os historiadores da educação brasileira têm buscado os seus referenciais teóricos. As experiências de pesquisa com a história oral, de acordo com o autor, têm contribuído para os estudos de história de vida, bem como possibilitado uma “aproximação com as temporalidades mais contemporâneas, ou seja, produzir na perspectiva da história do tempo presente’. (p.257). Este insight nos faz refletir acerca das possibilidades futuras que envolvem o diálogo com a História do Tempo Presente – território ainda inexplorado na comunidade de historiadores da educação.

Em seguida, nos deparamos com dois artigos que corroboram a tendência marcante do uso da oralidade na pesquisa em História da Educação nos últimos dez anos. Sem dúvida é uma metodologia que vem norteando o debate e configurando linhas de pesquisa na pós-graduação. No entanto, o que chama a atenção são os distintos usos a que foi submetida. Em Histórias de vida de destacados educadores no contexto espaço-temporal da história do Rio Grande do Sul, de Maria Helena Menna Barreto Abrahão, a História Oral serve como suporte para a construção da metodologia em História de Vida. Ao advogar a relevância teórico-metodológica dos estudos em História de Vida, a autora trata das implicações desses estudos para a própria formação e profissionalização de professores. Ou seja, a História da Educação imbrica-se com a pesquisa educacional, conforme se explicita no diálogo com a produção bibliográfica de estudos de currículo e de formação docente. Já no artigo História oral e processos de participação nas culturas do escrito, de Ana Maria de Oliveira Galvão, há o relato do desenvolvimento da pesquisa sobre osprocessos de inserção de indivíduos e grupos sujeitos à oralidade na cultura escrita, onde são tecidas algumas considerações críticas acerca das potencialidades e limites dos testemunhos orais. “Afinal, se a ‘história’ oral tem o poder de desmistificar, pode também ser objeto de mistificação, como qualquer outro tipo de fonte” (p. 316). A pesquisa em questão estrutura-se em torno de forte diálogo com a História Cultural.

Seguindo na trilha desse diálogo, o artigo A teoria sobre associações voluntárias como matriz interpretativa das instituições escolares protestantes no Brasil, de Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do Nascimento, reafirma a riqueza de possibilidades que a História Cultural oferece ao realizar uma pesquisa inovadora sobre as escolas protestantes no Brasil à luz dos escritos de Norbert Elias. Tendo a preocupação de romper com uma visão excessivamente mecânica da circulação das missões protestantes na América latina – vistas como representativa da crescente hegemonia norte-americana no continente -, a investigação traz questões instigantes referentes às conexões entre a dinâmica do protestantismo nos Estados Unidos e a sua expansão no Brasil.

A abordagem em História Cultural, a partir do conceito de representação de Roger Chartier, se faz presente no artigo Arquivo pessoal como fonte para a História da educação: Coleção professor Jerônimo Arantes, Uberlândia-MG (1919-1961), de Sandra Cristina Fagundes de Lima. Nele, a autora discorre sobre a formação do arquivo histórico da cidade de Uberlândia a partir do acervo pessoal do professor Jerônimo de Albuquerque; acervo esse que abrange documentos iconográficos, impressos variados, correspondências e documentos escolares. Esta dimensão da pesquisa, relatada pela autora, motiva uma reflexão acerca da relevância dos arquivos públicos municipais em cidades médias e pequenas em sua tarefa de preservar e organizar documentos locais. Tarefa indispensável para viabilizar os estudos em História Local, ainda ser explorado no País, bem como ampliar as possibilidades de diálogo da História da Educação com essa área de pesquisa.

A despeito das diferenças teórico-metodológicas e de suas polêmicas, cada um dos artigos, a seu modo, contribui para uma reflexão mais ampla sobre os aspectos teórico-metodológicos da escrita em História da Educação. Da mesma maneira que nos permitem refletir sobre questões específicas que acompanham as diferentes matrizes interpretativas.

Por tudo o que foi apresentado, podemos afirmar sem sombra de dúvidas que esta Coleção é um retrato da dimensão a que os estudos em História da Educação assumiram para a pesquisa educacional brasileira. Concordamos com Ângela de Castro Gomes, no prefácio da obra, quando afirma que este “[…] crescimento quantitativo e qualitativo é um ‘fato social’ a ser remarcado, seguindo-se a linha de se pensar a historicamente a História da Educação […]” (p. 13). Nesse sentido, é mister reconhecer a relevância da iniciativa editorial que cumpre o papel estratégico de apresentar para um público mais amplo um panorama do rico e complexo campo da produção intelectual realizada nos programas de pós-graduação em educação das universidades brasileiras.

No tocante ao volume cinco, este objetivo foi amplamente alcançado, pois algumas tendências podem ser destacadas após o término da leitura. A primeira refere-se ao estreitamento do diálogo com a produção historiográfica internacional como fato relevante na reconfiguração da escrita em História em Educação. Fato que se pode constatar de imediato após a consulta aos referenciais bibliográficos, geralmente vinculados à denominada Nova História, mas não exclusivamente. A segunda refere-se à vitalidade da produção nacional, oriunda dos programas de pós-graduação que tem servido como parâmetro para a elaboração de novos projetos, formulação de novas questões e uma reflexão sobre si mesma que demonstra o amadurecimento intelectual e a criatividade imperante nas pesquisas em curso.

Fábio Garcez de Carvalho – Doutorando em História da Educação na Universidade Federal do

Rio de Janeiro. E-mail: garcez.fabio7@gmail.com

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Cinco estudos em história e historiografia da educação – OLIVEIRA (RBHE)

OLIVEIRA, Marcus Aurelio Taborda de (Org.). Cinco estudos em história e historiografia da educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. Resenha de: BORNATTO, Suzete de Paula. Revista Brasileira de História da Educação, n. 23, p. 253-259, maio/ago. 2010.

Cinco estudos… é o terceiro título da coleção História da educação, iniciada pela Editora Autêntica em 20061, e organiza-se como um programa de formação em pesquisa, ao condensar discussões pertinentes sobre o estágio atual da pesquisa em história da educação no Brasil e reunir exemplos de abordagem de diferentes temáticas a partir de um repertório diversificado de fontes.

A obra supõe, conforme as palavras do organizador, Marcus Taborda de Oliveira, a necessidade de “unificar em alguma medida a narrativa historiográfica como crítica da cultura”; portanto, propõese a articular diferentes pesquisadores e projetos, “portadores de perspectivas distintas, mas que têm como horizonte comum a crítica permanente dos modos de fazer a história da educação no Brasil e, por corolário, as formas de organização da cultura neste país” (p. 7).

O primeiro artigo, de Carlos Vieira (UFPR), trata das “característica e potencialidades dos jornais diários” como fonte e como tema de pesquisa, destacando a importância do jornal como suporte de sentidos, lugar em que se pode vislumbrar a “experiência citadina”, mas também seu protagonismo como agente social.

Antes de entrar no detalhamento da pesquisa, em torno da presença de temas educacionais nos diários paranaenses Gazeta do Povo e Diário da Tarde na década de 1920, com o intuito de “interpretar os projetos dos intelectuais e da imprensa em relação à educação” (p. 36), o texto problematiza a natureza dessas fontes e sua produtividade para a escrita da história dos intelectuais. Assim, além de apresentar alguns contornos da história da imprensa no Paraná, propõe um modo de ler e entender o jornal, tendo em vista a identificação de estratégias discursivas e a investigação de possíveis efeitos de sentido.

“Para além do registro e do comentário político, os homens de imprensa ocuparam os espaços públicos legitimados pelas suas trajetórias como redatores, analistas e críticos da moderna ágora” (p. 20). Nos anos 1920, o desejo da imprensa empresarial moderna de

[…] permanecer atuante na esfera política levou-a a engajar-se em projetos sociais, com base na produção de slogans e de campanhas […]. É nesse contexto que verificamos a adesão da imprensa à causa educacional, bem como a presença da elite letrada nos quadros do jornalismo na condição de arautos da inserção do País na modernidade com investimento em educação [p. 21].

A segunda metade do texto traz uma grande tabela em que estão classificados, em nove categorias primárias e 43 secundárias, 2.702 registros de temas educacionais, veiculados em 2.555 exemplares de jornal. Essa tabela é desmembrada em outras sete, conforme as grandes categorias localizadas: cenário educacional e educação; profissão docente; experiências e modelos educacionais; modalidades e níveis de ensino; cotidiano escolar; temas da modernidade e da educação. As análises que seguem cada tabela sugerem o extenso trabalho de que são a breve amostra e podem instigar o leitor interessado no tema e/ou no período a um maior contato com essas fontes, ou à exploração de novos recortes e objetos, o que é um grande mérito nesse tipo de texto.

Tanto a tese que permeia o estudo, da afirmação gradativa do intelectual como agente político na cena pública brasileira, como a discussão em torno do “projeto da modernidade” são oferecidas ao leitor a partir de reflexões teóricas que costuram adequadamente os resultados da pesquisa. Pode este se ressentir apenas da falta de referências relativas aos “efeitos de sentido”, à análise discursiva, de que a nota número 10, remetendo à reflexão de Pocock sobre a linguagem política, constitui exceção.

O segundo artigo reúne pesquisadores ligados à UFMG – Luciano Faria Filho, Maria Cristina de Gouvêa e Matheus da Cruz e Zica –, em torno do difícil tema da literatura como fonte para a história – no caso, história da infância, tomada como entrada analítica para a história cultural da sociedade.

O título já anuncia “possibilidades, limites e algumas explorações”. Entretanto, o caráter formador do texto revela-se na forma como os autores (que, às vezes, se singularizam, outras vezes se assumem como coletivo) recapitulam os cuidados necessários para a abordagem da literatura como fonte – desde a questão do maior ou menor compromisso com a realidade e com a verossimilhança, a historicidade própria dos textos literários e das práticas de leitura, até as diversas vertentes teóricas de análise (Chartier, Williams, Prost). Assim, o cruzamento de perspectivas analíticas “indica um adensamento da análise da produção e circulação histórica do escrito, rompendo-se com hierarquias advindas da crítica literária, e sinaliza a importância de uma análise interdisciplinar na interpretação historiográfica do texto literário” (p. 47).

No terceiro tópico do artigo, que discute a pertinência da fonte literária para a construção da história da infância, aconselham os autores a não se tomar “como absolutas as fronteiras que delimitam os espaços da literatura infantil e adulta”. Em seguida, no entanto, são problematizadas questões referentes à literatura “infantil” (que alguns especialistas preferem hoje chamar de literatura “para crianças”), considerada em sua própria historicidade como objeto cultural:

[…] analisar a produção literária destinada à criança permite-nos não apenas ter acesso às representações sobre a criança e aos modelos de comportamento infantil num determinado período e contexto histórico, mas também às representações sobre os modelos de ação social e conhecimento de mundo ali legitimados [p. 49].

O exemplo de abordagem, entretanto, não é da literatura “infantil”, mas enfoca as imagens de infância construídas na obra de Bernardo Guimarães, escritor mineiro do século XIX, qualificado como “um autor atento à história de seu tempo e reflexivo sobre a experiência de sua gente” (p. 54). Defendem os autores que “é na descrição/produção dos sentimentos e ações das crianças que a narrativa cria melhores condições para que adentremos outros territórios das culturas oitocentistas” (p. 55), que não os temas “clássicos” da educação e da ocupação infantil.

A conclusão parece um pouco deslocada, ao sugerir maior investimento na pesquisa de literatura “infantil”, uma vez que esse não é o caso do exemplo apresentado, porém ressalta o que merece atenção nesse gênero de pesquisas: a investigação em torno das “experiências dos sujeitos infantis” (tão difíceis de serem flagradas em seu momento histórico), sujeitos “que insistem em interpelar e interpretar as culturas adultas e dominantes e a fazer disso uma forma de estar-na-história, de fazer a história” (p. 63).

Também na linha da investigação da experiência dos sujeitos está o terceiro estudo, de Marcus Taborda de Oliveira e Sidmar Meurer (UFPR), mas este toma forma a partir de textos de leitura, aparentemente, bem menos aprazível: relatórios da instrução pública paranaense da primeira década do século XX.

A investigação nesses documentos visa perceber as “tensões entre o prescrito e o realizado” nas experiências de professores primários. Combatendo as generalizações de certa historiografia, segundo a qual a legislação impõe “determinado modo de organizar a cultura”, privilegia-se aqui a experiência dos indivíduos ou grupos na “dinâmica de apropriação” dos documentos oficiais:

[…] antes de considerar os relatórios como parte de um esforço conformador isento de dissenso, procuramos localizar nos registros […] tanto a retórica da confirmação daquilo que foi anunciado pelo legislador quanto a crítica explícita ou velada àquele esforço. […] a legislação aparece aos nossos olhos como um esforço de organização racional da realidade social, esforço que pressupõe tanto filigranas ideológicas quanto reação do Estado às demandas oriundas da sociedade, nem sempre coincidentes com o que esperava a autoridade pública [p. 73].

Nesse sentido, os diversos excertos dos relatórios são ricos e emblemáticos das questões discutidas. Em relatório de 1806, por exemplo, a professora Carolina Moreira escreve: “Sinto dizer que, infelizmente, em nossas escolas os preceitos de hygiene estão bem longe de ser observados”. Adiante, avalia:

No meu franco modo de entender, acho que o nosso Regulamento é defeituoso e mesmo pernicioso na parte referente a matricula das escolas publicas primarias, pois é claro que um professor por mais trabalhador e esforçado não poderá, em absoluto, ministrar conhecimentos a 70 e 80 alumnos diariamente, com grande proveito, sem o concurso de um auxiliar;… [p. 83].

Os relatórios, tanto de professores quanto de inspetores, vão oferecendo, assim, uma ideia da rotina, mas também das carências e perplexidades que compuseram o cotidiano desses profissionais, em carreiras de organização incipiente, e dos conflitos entre a operacionalidade (ou a falta de) prevista na legislação e o funcionamento possível das instituições, permitindo reconhecer que “nada é mais equivocado do que supor que aqueles homens e mulheres simplesmente corroboravam o existente, fosse no plano das proclamações oficiais, fosse no plano das preocupações com os limites e as possibilidades de suas ações” (p. 84).

O quarto estudo, de Marta Carvalho (Uniso) e Maria Rita Toledo (Unifesp), trata da “análise material” das coleções de Lourenço Filho (Biblioteca da educação) e Fernando de Azevedo (Atualidades pedagógicas) voltadas à formação de professores. Para as autoras, as investigações sobre impressos de destinação pedagógica e seus usos escolares propiciam sólido suporte “a uma história cultural dos saberes pedagógicos interessada na materialidade dos processos de difusão e imposição desses saberes e na materialidade das práticas que deles se apropriam” (p. 89).

Aparece aqui, novamente, o perfil formador da coletânea: o estudo recupera conceitos de Chartier e Certeau imprescindíveis ao pesquisador iniciante – orienta quanto à necessidade de atenção à materialidade do impresso, às estratégias que conduziram sua produção e às táticas de apropriação que podem subverter os usos previstos.

O impresso destinado aos professores é tomado como produto de estratégias pedagógicas e editoriais de difusão dos saberes pedagógicos e de normatização das práticas escolares – as coleções de livros “organizam e constituem o corpus dos saberes representados como necessários à prática docente, constituindo, concomitantemente, uma cultura pedagógica” (p. 92). Referência importante para a análise é a Histoire de l’edition française, de Isabelle Olivero, que caracteriza as coleções como “uma nova classe de impresso cuja função essencial é a de conquistar e atender um público maior de leitores” (idem). No Brasil, o desenvolvimento do mercado editorial nas décadas de 1920 e 1930 favorece o investimento na “invenção” de um leitor-professor ou professor-leitor.

A identidade das coleções será produzida a partir da padronização de formato, estrutura, estratégias de seleção de textos e autores, e de divulgação. Contudo, é seu “aparelho crítico” (prefácios, notas, comentários de especialistas) que vai propor uma orientação, um “modo de usar” ao leitor e, ao mesmo tempo, permitir ao historiador, nas palavras de Carvalho e Toledo (2001), “entrever o leitor destinatário, desenhado pelo editor” (p. 93).

Apesar das semelhanças, as duas coleções analisadas diferenciam- se, e sua organização revela concepções diversas quanto à formação de professores. Assim, é identificado na coleção de Lourenço Filho um perfil mais prescritivo, com maior presença de prefácios e notas de tradução, em torno de um “conjunto fechado e ideal de saberes”, ao passo que a coleção de Fernando de Azevedo remeteria à ideia de pluralidade de perspectivas e saberes e à sua “eterna renovação” (p. 106).

O trecho que encerra o artigo ressalta o fato de que essas coleções são “partícipes” do processo de estruturação da rede escolar do país, assim como dos debates sobre a formação de professores e sobre o significado da educação para a modernização brasileira, o que sintetiza, de algum modo, a importância deste e de novos estudos voltados a esse objeto.

Finalmente, em “Desafios da arquitetura escolar: construção de uma temática em história da educação”, Marcus Lévy Bencostta (UFPR) procura costurar algumas reflexões sobre as “possibilidades interpretativas da linguagem arquitetural nos estudos em história da educação”, com o intuito explícito de fomentar o interesse de pesquisadores brasileiros pela arquitetura escolar. Bencostta refaz o itinerário de seu interesse pelo tema, aponta autores que educaram seu olhar para a linguagem da arquitetura e do espaço escolar, e destaca a importância metodológica do exame da própria concepção de espaço escolar bem como da percepção das relações deste com os projetos políticos, educacionais e urbanísticos.

Sugerindo fontes que vão desde contratos de construção, textos de cronistas e jornalistas sobre as transformações da cidade, tratados de arquitetura, até biografias e projetos de arquitetos, o autor defende a utilidade da diversificação de leituras, dos estudos comparados e da aproximação com diferentes áreas, como a geografia e a semiótica, para a compreensão dos sucessos e insucessos da “gramática arquitetônica” em meio à dinâmica urbana.

Dada a existência de estudos, tanto na área de arquitetura como na de história[1], sobre as construções escolares, talvez não seja ocioso ressaltar, nas proposições, o que distingue a investigação do historiador da educação – a intenção de entender a escola: “para se entender a escola e suas transfigurações, é significativo também compreender como as linguagens arquiteturais penetram nesse espaço permeado pelos discursos ramificados na sociedade e na história” (p. 122).

O livro cumpre, assim, seu projeto de articular perspectivas que, explorando diferentes objetos culturais, indicam e orientam possibilidades para a escrita da história da educação no Brasil. Apenas os muitos descuidos de revisão textual por parte da editora não condizem com a qualidade dos textos, nem com o bonito acabamento da edição.

Notas

[1] Os outros títulos são História da educação – Ensino e pesquisa, Cultura escolar –

Prática e produção dos grupos escolares em Minas, de 2006, Para a compreensão histórica da infância, de 2007, Escolas em reforma, saberes em trânsito – A trajetória de Maria Guilhermina Loureiro de Andrade (1869-1913) e Livro didático e saber escolar – (1810-1910), de 2008.

Suzete de Paula Bornatto. E-mail: spbornatto@ufpr.br

[1] Exemplo recente é “Grupos escolares de Curitiba na primeira metade do século XX”, livro e CD de autoria de Elizabeth Amorim Castro (2009), arquiteta e doutoranda em história pela UFPR.

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