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Uma introdução à história da historiografia brasileira (1870-1970) | Thiago Lima Nicodemo, Pedro Afonso Cristovão dos Santos, Mateus Henrique de Faria Ferreira
Dividido em cinco capítulos, Uma introdução à História da Historiografia Brasileira (1870-1970), escrito por Thiago Lima Nicodemo, Pedro Afonso Cristovão dos Santos e Mateus Henrique de Faria Ferreira, avalia as transformações na escrita da história no Brasil e o processo de especialização do ofício de historiador no período. Esse processo se deu em pelo menos dois aspectos conjuntos, tanto por uma lenta distinção dos estudos históricos em relação a outros campos quanto pelo advento das universidades como locais de produção histórica especializada. Ao mesmo tempo, observa-se que a profissionalização do ofício apresentava questões que iam além de um âmbito acadêmico, como os usos da história na análise da sociedade e de seus problemas, o que deveria tornar a história relevante para o futuro. Sem pretender apresentar a “formação”, os “momentos decisivos” ou um cânone da historiografia brasileira, os autores do livro analisam como se deu sua modernização no país, em um processo que esteve longe de ser uma simples apropriação de matrizes exteriores, sobretudo europeias (p.9). Leia Mais
A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica | Mariana Muaze e Ricardo H Salles (R)
Mariana Muaze e Ricardo Salles | Foto: Divulgação
O desembarque do conceito de segunda escravidão na historiografia brasileira encontra importante expressão com a publicação do estudo crítico que, além da apresentação do historiador norte-americano Dale Tomich, reuniu quinze historiadores para o exame da relação entre capitalismo e escravidão no século XIX.
Denominada A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica, a coletânea é resultado dos trabalhos de pesquisas e discussões do grupo interinstitucional “O Império do Brasil e a segunda escravidão”, formado por pesquisadores da Unirio, Mast, UFF, USP, Unifesp, UFJF e UFSC e pelos integrantes do Laboratório de Estudos sobre o Brasil e o Sistema Mundial (Lab-Mundi/USP).
Se o propósito era pensar a porosidade do conceito de segunda escravidão, ele se configura na breve apresentação de Dale Tomich, que nos indica que “segunda escravidão é um conceito aberto que tem o objetivo de repensar a relação entre capitalismo e escravidão e as causas desta última no Oitocentos” (Tomich, 2020, p. 13). Pretendendo sublinhar que a abordagem da segunda escravidão trata “as relações escravistas históricas reais [que] são constituídas […] pela forma das relações senhor-escravo […] por processos de produção materiais específicos (açúcar, café, algodão) […] por sua posição relativa na divisão internacional do trabalho e no mercado mundial […]” (p. 14), realça que a origem do conceito é fruto da “insatisfação com histórias lineares da escravidão que a veem como incompatível com o capitalismo industrial e as ideias liberais de propriedade e liberdade” (p. 13).
É nesse quadro de “escravidão em interação com a construção dos Estados nacionais e com a expansão internacional do mercado escravista” (Muaze, Salles, 2020, p. 19) que se deve colocar o livro organizado por Mariana Muaze e Ricardo Salles. O que primeiro chama a atenção é que a coletânea tem como pilar central “o problema histórico de como a escravidão moldou o capitalismo brasileiro no século XIX e na atualidade” (p. 20). De fato, esse eixo central, colocando problemas, proporciona análises, revisões e novidades que enriquecem o conhecimento que se tem da escravidão.
A obra é dividida em quatro partes. Na primeira, aborda-se a constituição da “Segunda escravidão e o capitalismo histórico em perspectiva atlântica”. Seu mérito reside na estimulante e bem arejada exposição de Leonardo Marques sobre o percurso historiográfico das ideias que compõem o espectro analítico do conceito de segunda escravidão e sobre os desafios de integrar o mundo político e cultural nas narrativas de emergência e destruição da segunda escravidão. Além de contar com o “ensaio de historiografia” de Ricardo Salles, no qual direciona especial atenção para o debate sobre as relações entre capitalismo e escravidão, partindo da consideração de que nos Estados Unidos “o problema dessas relações se apresentou de forma mais aguda” (Salles, 2020, p. 27). Já no último capítulo da primeira seção, Rafael Marquese tece comentários críticos.
A segunda parte, “Segunda escravidão e diversidade econômica e regional”, reúne quatro trabalhos. No primeiro, Luiz Fernando Saraiva e Rita Almico, com o intuito de investigarem a associação entre escravidão e a modernização da economia brasileira no século XIX, identificam as relações entre as economias mercantis escravistas regionais e a segunda escravidão. Em seguida, Walter Pereira direciona especial atenção para o dinamismo econômico do município de Campos dos Goytacases, ao longo da segunda metade do século XIX. As reflexões críticas desses artigos condensam os comentários de Renato Leite Marcondes e Gabriel Aladrén.
Já a terceira parte confere centralidade à relação entre segunda escravidão e o período Colonial Tardio. Valendo-se dos artigos de Carlos Gabriel Guimarães e Carlos Leonardo Kelmer Martins e comentários de Rodrigo Goyena Soares, essa seção combina reflexões epistemológicas e resultados preliminares de pesquisa.
A última seção do livro apresenta discussões metodológicas. O debate gira em torno das possíveis articulações entre o micro e o macro. Em outras palavras, do entrelaçar das propostas advindas da segunda escravidão e da micro-história. Três historiadores, Mariana Muaze, Thiago Campos Pessoa e Waldomiro Silva Junior, se dedicam a esse esforço. No último capítulo, a historiadora Mônica Ribeiro de Oliveira elabora os comentários críticos sobre as proposições metodológicas.
Ricardo Salles, no primeiro capítulo, faz uma longa travessia historiográfica desde Graham, Genovese, Fogel e Engerman aos recentes estudos de Sven Beckert e Seth Rockman. Retoma tradições de pensamento sobre escravidão e capitalismo: os esforços comparativos entre o “Velho Sul” e o Brasil; o problema das mentalidades ditas “mais racionais” diante dos comportamentos patriarcais de status e poder; a lucratividade, racionalidade e caráter capitalista da escravidão propostas pela New Economic History; os riscos dos excessos de empirismo ou de abstração teórico-metodológica no ofício do historiador; o capitalismo da escravidão de Rockman e Beckert; a centralidade da economia sulista norte-americana no desenvolvimento capitalista; a escravidão nos Estados Unidos face ao pacto político da estrutura de poder federativa; e, no caso brasileiro, o Império do Brasil e sua estrutura de poder unitária, assentada na difusão da escravidão por todo território, alicerçada na hegemonia política e social da fração da classe senhorial da bacia do Paraíba do Sul. E, por fim, a validade instrumental do conceito de segunda escravidão como uma estrutura histórica específica.
Salles aponta que o conceito de segunda escravidão “hibernou” entre 1988 e até fins da década de 1990. Em 1999, de maneira “pioneira e isoladamente” Christhopher Schmidt-Nowara valeu-se do conceito para analisar a escravidão cubana e porto-riquenha no Novo Império Colonial Espanhol do século XIX. Em 2004, o conceito desembarcou no Brasil. Rafael Marquese o empregou em Feitores do corpo, missionários da mente.
No plano da historiografia brasileira, subjacente a essa escolha conceitual, Salles indica que a apropriação do conceito de segunda escravidão relaciona-se diretamente ao “abandono do conceito de capitalismo” pelas correntes historiográficas do “sentido arcaico da escravidão brasileira e a historiografia com ênfase na agência escrava” (Salles, 2020, p. 36). O novo aporte não apenas conduz a análise para o dimensionamento do processo de longa duração e os quadros globais do capitalismo histórico como também para “a discussão da relação entre escravidão e desenvolvimento do capitalismo dependente, periférico e excludente no país” (p. 36).
No capítulo seguinte, cujo objetivo é aprofundar o debate historiográfico sobre escravidão e capitalismo, Leonardo Marques aponta limites e potencialidades do conceito de segunda escravidão. Valendo-se de amplo espectro historiográfico, perpassa o marxismo, a noção de sistema-mundo, Global History e a New History of Capitalism. A exposição reconhece como mérito da segunda escravidão, além de recolocar em cena o tema escravidão e capitalismo, o questionamento que ela oferece contra “o nacionalismo metodológico que ainda informa uma parcela importante da produção historiográfica mundial […]”. (Marques, 2020, p. 55). Para Marques, a contribuição historiográfica essencial é a visão integrada dos mútuos condicionamentos das três principais sociedades escravistas das Américas (Cuba, Brasil e Estados Unidos), pois permite reconstituir o lugar dessas sociedades no capitalismo global do século XIX. Tomando por base essa perspectiva, indica que, diante desse enquadramento analítico, ultrapassa-se o conceito de segunda escravidão, pois, nesse caso, “o procedimento sugerido por Tomich é mais importante do que o próprio conceito […]” (Marques, 2020, p. 68).
Como resultado dos dois capítulos iniciais, Rafael de Bivar Marquese propõe reflexões historiográficas sobre a escravidão histórica e o capitalismo histórico. Nesse debate, ganham contornos as divergências entre as interpretações de Ricardo Salles e Leonardo Marques. O dissenso centra-se na tensão entre o lugar dos Estados nacionais na especificidade das trajetórias dos espaços escravistas das Américas e a perspectiva de que o capitalismo como sistema transpõe fronteiras políticas e combina múltiplas formas de trabalho compulsório. Marquese sublinha, de um lado, a importância da profunda descontinuidade das trajetórias dos espaços escravistas na virada do século XVIII para o XIX, a “segunda escravidão” e, de outro, a integração da economia-mundo, novos espaços escravistas e as relações de produção, distribuição e consumo. Essa afirmativa desloca o olhar para as totalidades como interdependências mútuas, tais como as relações entre mercado mundial, divisão internacional do trabalho e o fenômeno do “ciclo britânico de acumulação”.
É nesse quadro do pensamento econômico que a coletânea avança para a segunda parte “Segunda escravidão e diversidade econômica e regional”. Os capítulos representam não apenas esforços analíticos que visam examinar de maneira integrada economias mercantis escravistas regionais, inovações tecnológicas, indústrias e segunda escravidão mas também nos revelam uma agenda de pesquisa, como nota Renato Marcondes. O texto “Raízes escravas da indústria brasileira” procura mapear a persistência da escravidão, diversidade regional e modernização da economia brasileira nos séculos XIX e XX. Com enfoque regional, o capítulo seguinte, de autoria de Walter Pereira, analisa a dinâmica econômica e da escravidão na bacia do rio Paraíba do Sul, suas atividades agrícolas e bancárias, inovações tecnológicas, ferrovias, embarcações a vapor e bondes.
Ao longo da terceira parte, no primeiro artigo de Carlos Gabriel Guimarães, o que se verifica é uma grande riqueza de análise que, apesar da advertência do autor que “as pesquisas nos arquivos ainda estejam no início”, revela a especificidade da inserção dos negociantes ingleses Joseph e Ralph Gulston e suas conexões globais financeiras e comerciais, em especial, com a comunidade mercantil lisboeta, carioca e africana.
Numa outra proposta, intitulada “O anacronismo de um atavismo? A propósito da segunda escravidão sob a égide mercantilista”, o historiador Carlos Kelmer Martins enfatiza, do ponto de vista teórico e metodológico, as interseções e diálogos entre as premissas do conceito de segunda escravidão, do mercantilismo e da complexidade política, social, cultural e econômica do sistema mundial setecentista. Rodrigo Soares, responsável pelos comentários críticos, considera que o mérito de Kelmer Martins “está na percepção da desigualdade entre as sociedades ou no seio de cada uma, como decorrência de uma forma combinada integrada” (Soares, 2020, p. 226).
Na quarta e última parte, intitulada “Segunda escravidão, micro-história e agência”, o que está em jogo no par macro e micro é um redimensionamento dos objetos e questões. Em todos os capítulos a abordagem é convergente. Reafirma-se o ofício do historiador como possibilidade de articulação da dimensão macroestrutural aos elementos da micro-história, assim como se procura sofisticar as pesquisas a partir do conceito de segunda escravidão. Mariana Muaze aponta caminhos para superar a incompatibilidade fundante entre a micro-história e a segunda escravidão. Em outra chave, Thiago Pessoa conjuga análise empírica, decorrente dos resultados de pesquisa no Arquivo Nacional, a abordagem metodológica da micro-história e as contribuições do conceito de segunda escravidão. Nesse movimento, valoriza as contribuições da redução de escala e as potencialidades da perspectiva global a fim de examinar a classe senhorial do Império do Brasil, as redes de negócios e sociabilidade, o complexo cafeeiro, o tráfico e a escravidão.
Por essas razões, Waldomiro Lourenço da Silva Júnior afirma que a segunda escravidão, como conceito analítico que abrange zonas de plantação mais dinâmicas e capitalizadas da economia global, em especial, no Brasil, o complexo cafeeiro, não estaria invalidada por não contemplar a escravidão urbana e portuária, a produção com pequenas escravarias voltadas para o abastecimento em Minas Gerais ou a indústria baleeira catarinense. Para o autor, a validade da noção de segunda escravidão configura uma “questão elementar de epistemologia” em que “a validade cognitiva de uma categoria de análise não se limita necessariamente às constatações empíricas que respaldaram a sua formulação” (Silva Júnior, 2020, p. 282). Portanto, as evidências da escravidão em economias como Minas Gerais, Santa Catarina ou de regiões portuárias ou urbanas seriam decorrência direta da dinâmica da segunda escravidão: “as outras formatações da escravidão só persistiram a longo prazo no Brasil porque existiu uma base material nuclear suficientemente sólida (a base da segunda escravidão), que garantiu, no campo político, as condições para sua perpetuação” (p. 282).
Como bem lembra Monica Ribeiro de Oliveira, apesar das contribuições de Muaze, Silva Júnior e Pessoa, os desafios postos pela articulação da micro-história à perspectiva macro permanecem em aberto.
De modo geral, o conceito de segunda escravidão, subjacente a todos os trabalhos do livro, nem sempre alcança o objetivo de dotar a obra de relativa unidade e também da porosidade conceitual desejada por Dale Tomich na apresentação. No entanto, certamente, alguns trabalhos ganharão espaço na historiografia, mais pelo valor do debate apresentado do que pelas conclusões.
É importante compreender que a obra reflete, ao mesmo tempo, o esvanecimento da história econômica, hegemônica por décadas na academia brasileira e em seus cursos de graduação e pós-graduação em história, e também sintetiza uma retomada.
Apesar dos novos horizontes metodológicos, a formulação do conceito de segunda escravidão (1988) é oriunda, em parte, no caso da interpretação sobre a economia brasileira, das ideias encontradas em Formação econômica do Brasil (1959) de Celso Furtado, um dos autores citados por Tomich no capítulo fundador do conceito de segunda escravidão. É no mínimo curioso que nenhum dos capítulos de A segunda escravidão e o império do Brasil em perspectiva histórica mencione o livro de Celso Furtado em suas referências bibliográficas, nem o possível impacto da interpretação de Furtado na gestação conceitual de segunda escravidão, ou associe o fato de que concepções furtadianas ganharam nova roupagem historiográfica.
Referências
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil [1959]. 15a ed. São Paulo: Editora Nacional, 1977.
MARQUES, Leonardo. Unidades de análise, jogos de escalas e a historiografia da escravidão no capitalismo. In: MUAZE, Mariana ; SALLES, Ricardo H . (org.). A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica São Leopoldo: Casa Leiria, 2020, p. 53-74.
MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
SALLES, Ricardo H . A segunda escravidão e o debate sobre a relação entre capitalismo e escravidão: ensaio de historiografia. In: MUAZE, Mariana ; SALLES, Ricardo H . (org.). A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica São Leopoldo: Casa Leiria, 2020, p. 27-52.
SILVA J JÚNIOR, Waldomiro Lourenço da. A segunda escravidão: o retorno de Quetzalcoatl? In: MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo H . (org.). A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica São Leopoldo: Casa Leiria, 2020, p. 279-285.
SOARES, Rodrigo Goyena. Comentário: benefícios e limites da segunda escravidão como método para uma razão dialética. In: MUAZE, Mariana ; SALLES, Ricardo H . (org.). A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica São Leopoldo: Casa Leiria , 2020, p. 223-238.
TOMICH, Dale. The “second slavery”. In: TOMICH, Dale. Through the prism of slavery Lanham: Rowman & Littlefield, 2004, p. 56-71.
Télio Cravo – Pós-doutorando em História pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). São Paulo(SP), Brasil. teliocravo@gmail.com.
MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo H. . (org.). A segunda escravidão e o Império do Brasil em perspectiva histórica.São Leopoldo: Casa Leiria, 2020. 298p. Resenha de: CRAVO, Télio. Desembarque da segunda escravidão na historiografia brasileira. Tempo. Niterói, v.27, n.1, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [IF]
Uma introdução à história da Historiografia brasileira 1870-1970 / Thiago Nicodemo, Pedro Santos e Mateus de Faria
Thiago Lima Nicodemo / Foto: Jornal da Unicamp /
O título é chamativo: Uma introdução à história da historiografia brasileira (1870-1970). O texto oscila entre o inventário das concepções de historiador ideal e a transmutação do objeto “historiografia” ou “história da historiografia”, na duração de um século: de reflexão dispersa em necrológios e artigos de jornal à disciplina curricular da formação universitária em História.
Thiago Lima Nicodemo (Unicamp), Pedro Afonso Cristovão dos Santos (UNILA) e Mateus Henrique de Faria Pereira (UFOP), os autores, são jovens pesquisadores da área de Teoria e História da Historiografia. Tentaram se livrar da história da historiografia brasileira como inventário de homens e livros em ordem cronológica, mas enfrentaram dificuldades comuns entre os que, em grupo, querem conciliar pensamentos e práticas historiográficas díspares na exposição de um discurso sobre a matéria. Leia Mais
A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845) – ARAUJO (HH)
ARAUJO, Valdei Lopes. A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845). São Paulo: Hucitec, 2008, 204pp. Resenha de: TURIN, Rodrigo. Experiência, história e modernidade no Brasil oitocentista. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 04, p.299-305 março 2010.
Experiência, história e modernidade no Brasil oitocentista 300 Apresentado originalmente como tese de doutoramento junto à PUC-Rio, em 2003, A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845), de Valdei Lopes de Araújo, não era um trabalho desconhecido aos estudiosos da historiografia brasileira oitocentista. Ainda em seu formato de tese, já havia se tornado uma referência incontornável ao debate acadêmico sobre a formação de um conceito moderno de história no Brasil. Sua publicação pela editora Hucitec, dentro da importante coleção Estudos Históricos, vem, portanto, fazer justiça à valiosa contribuição representada por seu trabalho, cujos desdobramentos se estendem em uma série de artigos e capítulos de livros. Essa publicação vem somar-se, igualmente, aos recentes trabalhos realizados sobre a história dos conceitos, referentes tanto ao Brasil em particular, como também ao mundo Ibérico – com destaque para o Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil (cujos verbetes farão parte de um Diccionario político y social iberoamericano), para o qual Valdei também contribuiu, em parceria com João Paulo Pimenta, escrevendo sobre o conceito de “história”. (FERES JÚNIOR; JASMIN 2007; FERES JÚNIOR 2009; SEBASTIÁN; FUENTES 2002; PADILLA 2002; PADILLA 2008). Aliam-se aqui, com extrema competência, trabalho historiográfico e reflexão teórica, numa definição de historiografia que tem se mostrado cada vez mais necessária e, felizmente, ampliada em nosso campo – para o qual Valdei Araújo, deve-se dizer, tem contribuído como poucos, não apenas com seus trabalhos, como também na organização de espaços que possibilitam a troca e o debate entre os especialistas.
A hipótese central de A experiência do tempo vincula-se às célebres investigações capitaneadas por Reinhart Koselleck acerca da formação dos conceitos fundamentais da Modernidade, cujos resultados encontram-se na monumental obra coletiva Geschichtliche Grundbegriffe. Lexikon zur Politischezocialen Sprache in Deutschland, organizada com Werner Conze e Otto Brunner.
De acordo com a tese de Koselleck, entre 1750 e 1850 houve uma transformação no sentido dos conceitos sócio-políticos no mundo linguístico germânico, assim como a criação de neologismos que denunciavam uma mudança no modo como o passado e o futuro (ou “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”, entendidos como categorias meta-históricas) eram relacionados enquanto “forma” da experiência. A produção de uma crescente assimetria entre essas categorias fez com que as expectativas em relação ao futuro se desvinculassem de tudo quanto as experiências do passado tinham sido capazes de oferecer aos homens no presente. Com isso, o próprio tempo era alçado a “objeto” da experiência, assumindo um caráter reflexivo cujo resultado seria a própria formação do conceito moderno de história como um singular coletivo (KOSELLECK, 2006). Koselleck denomina esse período de forte mudança conceitual como Sattelzeit – uma espécie de antecâmara da Modernidade propriamente dita (Neuzeit). O que as investigações de Valdei Lopes de Araújo sugerem é justamente a existência de um análogo ao Sattelzeit kosellekiano para o Brasil oitocentista.
A hipótese que permeia suas investigações está centrada em uma “real descontinuidade discursiva” e conceitual ocorrida na década de 1830 (pp.19-20). Esta descontinuidade caracteriza-se, como mostra o autor, pela formação de uma experiência moderna do tempo no Brasil, marcada por uma crescente historicização da realidade, frente à experiência dos letrados provenientes do ambiente ilustrado português, ainda presos a modelos cíclicos. Assim, entre a geração que participou do processo de independência e aqueles que se veriam incumbidos da tarefa de construir uma narrativa identitária nacional, uma nova rede semântica foi configurada – ao mesmo tempo índice e fator de um novo espaço de experiência que marcava a inserção do Brasil na Modernidade. No desenvolvimento desta tese central, Valdei Araújo discute uma ampla variedade de tópicos e autores, cuja articulação, além de reforçar o sentido de seu argumento, permite vislumbrar a extensão abarcada por essa mudança conceitual em seus níveis ético, estético, político e intelectual. Não podendo, aqui, fazer jus à riqueza trazida por suas análises desses diversos tópicos, concentrarei minha leitura em torno de duas noções mais gerais que permeiam sua narrativa e que, igualmente, me permitem organizar alguns problemas envolvendo o meu próprio interesse na historiografia oitocentista. Estas noções são as de “descontinuidade” e de “Modernidade”.
As duas partes que dividem A experiência do tempo estruturam a forma narrativa e analítica através da qual o autor apresenta esse processo de descontinuidade conceitual. Na primeira, centrada nos textos de José Bonifácio, Valdei Araújo realiza uma apurada análise semântica dos termos através dos quais Bonifácio, expressando uma consciência de crise do Império lusitano, procurava orientar as ações necessárias para sua solução. Seus projetos de reformas ilustradas, definidas em momentos sucessivos, apoiavam-se nos conceitos de “restauração” e “regeneração” – o primeiro indicando a expectativa de restaurar o velho Portugal e, assim, “anular” a aceleração do tempo (p.36); enquanto o segundo já guardava em si uma maior abertura à temporalidade, ao movimento, apesar de manter-se ainda ligado a uma compreensão “cíclica e fechada do desenvolvimento das civilizações” (p. 59), vendo na emancipação do Brasil a possibilidade de um novo começo pautado por princípios imutáveis, em conformidade com a Razão iluminista. A análise dos textos de Bonifácio indica, assim, um movimento direcionado a uma crescente temporalização dos conceitos políticos, sociais e estéticos, mas cujas limitações, além de carregarem seus escritos com algumas ambiguidades, como afirma Valdei, seriam explicitadas pela própria marcha dos eventos. Para a geração que se ocuparia do processo de organização de um Estado Nacional, a continuidade de um mundo lusobrasileiro inscrita no sistema andradiano mostrar-se-ia cada vez mais problemática. Uma das contribuições mais valiosas da tese de Valdei Araújo está justamente em mostrar como esse processo levaria à elaboração de um sentido da história brasileira centrada nos termos “metrópole” e “colônia”, garantindo sua individualidade histórica.
Na segunda parte do livro, o autor nos apresenta o movimento de ruptura com a rede semântica herdada dessa geração de Bonifácio; uma ruptura que, como parece sugerir, também se expressaria numa oposição entre conceitos ilustrados e conceitos românticos. Enquanto para Bonifácio a história se vinculava ainda a um trabalho “fundamentalmente descritivo” e a diversidade dos fenômenos poderia ser organizada “com base nas leis gerais da natureza”, para a geração de Gonçalves de Magalhães e dos sócios do IHGB os conceitos centrais vão revestir-se de “uma espessura histórico-cultural” (p.104). Mesmo quando um autor como o Visconde de São Leopoldo vincula o IHGB às ideias da “ilustração”, para Valdei Araújo essa noção de ilustração se mostra distante do “quadro fechado e cíclico” da geração anterior (p.149). Assim, diferentemente de outras interpretações que vêem a tradição ilustrada presente nos trabalhos do IHGB, como também um de seus fundamentos (GUIMARÃES 2006), o autor associa a formação de uma consciência histórica moderna no Brasil mais diretamente ao romantismo e sua ruptura com os conceitos iluministas – daí o lugar central que destina ao texto de Gonçalves de Magalhães publicado na Revista Nitheroy, no qual a noção de literatura assumiria os atributos do conceito moderno de história (p. 121). Mais do que um processo de historicização, Valdei destaca assim o caráter de quebra e ruptura que caracteriza essa descontinuidade conceitual entre as duas gerações. Desse modo, como afirma, “o fundamental é perceber como conceitos centrais adquirem uma nova qualidade”, e, portanto, a “permanência de uma retórica da nação esconde o fato de já não se falar mais da mesma coisa” (p.104). De fato, como salienta com propriedade o autor, a continuidade de um mesmo vocabulário não pode ser tomada como índice de uma identidade conceitual entre períodos históricos distintos. As análises de Valdei Araújo, nesse sentido, são primorosas em detectar o caráter das mudanças na forma de experimentar o tempo abertas com o processo de emancipação, direcionando as expectativas daquela geração à necessidade de conceitualizar um sentido propriamente histórico para a nação brasileira em sua individualidade. Contudo, me parece igualmente que uma demarcação rígida, seja cronológica ou conceitual, entre o “antigo” e o “moderno” a partir de determinadas oposições pode gerar algumas dificuldades na compreensão das dinâmicas específicas que essa nova forma de experimentar o tempo assume nos textos desses autores.
Nos escritos de Bonifácio, como mencionado, já ocorria uma sensível temporalização dos conceitos (ainda que limitada), manifestada, por exemplo, no uso ambíguo da palavra “modernidade”(p. 82). Do mesmo modo, no trabalho de historicização da realidade levada a cabo pela geração seguinte não estariam ausentes, como nota o autor, elementos característicos de uma rede conceitual anterior, a exemplo da manutenção dos “antigos” enquanto clássicos e modelos de emulação, certas noções ligadas a uma concepção “cíclica” da história ou, ainda, ideias universais iluministas. É na constatação dessas permanências – e não no conjunto das transformações semânticas apresentadas no livro – que a interpretação de Valdei nos encaminha a uma reflexão teórica. Para o autor, a permanência das referências a autores da tradição clássica, por exemplo, não poderia ser confundida com algum tipo de continuidade conceitual com a geração de Bonifácio (p. 150). Essa aparente permanência se explicaria, antes, por uma “metaforização”. Ainda que o autor não explore o sentido desse termo, não podemos esquecer que as metáforas, como os conceitos e mesmo os lugarescomuns, também exercem um papel estruturante (BLUMENBERG 1995). Se, por um lado, Valdei mostra de maneira convincente a formação de um novo campo de experiência que se abre como “desenvolvimento progressivo de uma identidade”, logo, da historicidade; por outro lado, certas permanências como a do uso dos clássicos como figuras de autoridade, seja estética, seja moral, dentro da fórmula da historia magistra vitae, não deixam de colocar alguns problemas a esse quadro de análise. Entender essas presenças como “estratégia compensatória” (p. 97), “metaforização” (p. 150), “hesitações iniciais” (p. 147) ou como falta de uma “compreensão sintética” das forças que compunham um entendimento moderno da história (p. 144), talvez signifique desconsiderar a efetividade que elas realmente desempenhavam na representação histórica desses autores e, desse modo, erigir obstáculos para a compreensão da singularidade dos modos como a história foi conceitualizada e experimentada no Brasil oitocentista. Ao final do livro, o autor salienta essas ambiguidades expressas por permanências, vinculando-as à ausência do conceito de “evolução” – cujo aparecimento só se daria na década de 1870 e sem o qual os autores da geração romântica não poderiam “juntar passado, presente e futuro em um progresso linear e sem ruptura” (p. 184). O problema é que a explicação, nesse ponto específico, concentra-se em um “ainda não”, caracterizando essas permanências de modo negativo, como resquícios ou atavismos de uma outra época conceitual. O entendimento da positividade dessas permanências dentro de um processo de transformação da rede semântica, no entanto, só viria reforçar e enriquecer o dinâmico panorama de reformulação conceitual apresentado em a Experiência do tempo.
Nesse sentido, algumas das ambiguidades que se mostram nesses autores talvez possam ser esclarecidas num esforço constante de nós, historiadores, esclarecermos as perguntas que nos fazem ver tais ambiguidades. O próprio uso do modelo koselleckiano de Modernidade, universalizado a partir de certas oposições, pode acabar gerando distorções, arcaísmos e ambiguidades que, antes de serem inerentes aos próprios textos estudados, são projeções das lentes através das quais os enxergamos. Preocupação semelhante foi colocada por Elias Palti: “Na medida em que modernidade e tradição aparecem como blocos perfeitamente coerentes e opostos entre si, as contradições na história intelectual aparecerão necessariamente como resultado de uma espécie de assincronia conceitual, isto é, a superposição de duas épocas históricas diversas” (PALTI 2007a, p. 64; PALTI 2007b). O desafio para a realização de uma história dos conceitos em espaços culturais distintos daquele analisado por Koselleck, portanto, é manter sempre esse instrumento heurístico aberto, como algo que nos permite interrogar os textos, mas sem deixar, ao mesmo tempo, de fazer o movimento de retorno, revendo e refigurando os instrumentos de nossas indagações. Só assim, acredito, seria possível abrir uma dimensão verdadeiramente comparativa não apenas dos regimes de historicidade, mas também das diversas configurações do que o conceito de Modernidade pretende ou pode abarcar. A permanência dos antigos enquanto fonte de autoridade, para usar o exemplo já citado, não poderia ser entendido, talvez, como um índice do lugar fundamental que as concepções hierárquicas desempenhavam no Império do Brasil, levando ao reconhecimento e à valorização da assimetria implícita na noção mesma de autoridade (D’ALLONNES 2006)? Independente da validade dessa hipótese, o desafio, me parece, é reconstruir a efetividade desses elementos na estruturação da rede conceitual onde aparecem. Se o modelo nos permite ver certas semelhanças e diferenças, a questão, enfim, é entender como essas diferenças ganham sentido na forma como esses letrados e políticos experimentavam o tempo – naquilo que toda experiência tem de singular e geral, de continuidade e inovação. Com isso, outros momentos importantes desse processo de historicização poderiam ser articulados às valiosas descobertas de A experiência do tempo, seja em recuo, como a década de 1770, com o ambiente erudito ilustrado português, seja avançando, caso da década de 1870, cujas expectativas específicas levaram a um movimento forte de democratização, ideologização e secularização dos conceitos históricos e políticos. Somente futuras investigações, contudo, poderiam verificar a pertinência e validade dessas articulações.
O livro de Valdei Lopes de Araújo, enfim, é decisivo justamente em nos encaminhar esses e outros problemas fundamentais para a compreensão do processo de formação de um conceito moderno de história no Brasil, nos mostrando a importância da década de 1830 enquanto momento chave do processo de historicização da realidade e como esse processo esteve fortemente vinculado, no Brasil, à organização do Estado Nacional. A cirúrgica escolha do material, a maturidade da reflexão teórica e o vigor de sua interpretação estendem-se por todo o livro, garantindo uma exposição clara e segura, colocando-se de maneira franca ao leitor e ao mesmo tempo instigando-o a reagir ao texto. Como mencionei, A experiência do tempo abre inúmeras outras questões a serem desenvolvidas, firmando-se como uma referência central aos estudiosos de historiografia brasileira. E o melhor que se pode esperar de uma obra dessa natureza é justamente que suscite sempre novas indagações, gerando, com o prazer da pesquisa, novas intersecções entre presente, passado e futuro.
Referências
BLUMENBERG, Hans. Naufragio con espectador. Madrid: Visor, 1995.
D’ALLONNES, Myriam Revault. Le pouvoir des commencements. Essai sur l’autorité. Paris : Seuil, 2006.
FERES JÚNIOR, João; JASMIN, Marcelo (orgs). História dos conceitos.
Diálogos transatlânticos. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio/Loyola/IUPERJ, 2007.
FERES JÚNIOR, João (org). Léxico da História dos Conceitos Políticos do Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2009.
GUIMARÃES, Manoel L. Salgado. “Entre as luzes e o romantismo: as tensões da escrita da história no Brasil oitocentista”, in: Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2006a.
PADILLA, Guillermo Zermeño. “História, experiência e Modernidade na América Ibérica, 1750-1850”, Almanack Braziliense, n. 7, maio de 2008.
PADILLA, Guillermo Zermeño. La cultura moderna de la historia. Una aproximación teórica e historiográfica. México: El Colegio del México, 2002.
PALTI, Elias. “Temporalidade e refutabilidade dos conceitos políticos”, in: FERES JÚNIOR, João; JASMIN, Marcelo (orgs). História dos conceitos. Diálogos transatlânticos. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio/Loyola/IUPERJ, 2007a.
PALTI, Elias. El tiempo de la política. El siglo XIX reconsiderado. Buenos Aires: Siglo Veiuntuno, 2007b.
SEBASTIÁN, Javier Fernández, FUENTES, Juan Francisco (Eds). Diccionario Político y Social del Siglo XIX Español. Madrid: Alianza Editorial, 2002.
Rodrigo Turin – Pós-doutorando Universidade de São Paulo (USP) rodrigoturin@gmail.com Av. Prof. Lineu Prestes, 338 São Paulo – SP 05508-000 Brasil.
Historiadores do Brasil: capítulos de historiografia brasileira | Francisco Iglesias
Livro inédito e póstumo, publicado em 2000, um ano após o falecimento do historiador Francisco Iglésias, Historiadores do Brasil: capítulos da historiografia brasileira ainda representa um manual historiográfico a enriquecer, sobremodo, o ensino e a pesquisa de história. Não obstante às análises historiográficas produzidas nas últimas décadas, que alargaram os horizontes da pesquisa e ressignificaram trabalhos clássicos; o estudo da historiografia brasileira é um campo em aberto, que ainda carece de maior produção bibliográfica, et pour cause ávido por incursões capazes de ampliarem cada vez mais as interpretações há muito consagradas.
Longe de se constituir em um catálogo, o livro expressa, por um lado, o compromisso inequívoco do autor em entender a história do Brasil, o que sempre esteve inseparável do desafio do intelectual de transformá-la; e, por outro, a busca incessante para entender todas as dimensões da historiografia, área que o historiador Francisco Iglésias mais cultivou e refletiu ao longo de sua vida. Leia Mais
Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói nacional – GRAMMONT (Bo)
GRAMMONT, G. Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Resenha de: GARNICA, Antonio Vincente Marafioti. Da Historiografia: campos, mitos, biografias. Bolema, Rio Claro, n. 34, p. 283-294, 2009.
“Toda vida narrada, biográfica ou auto-biográfica, é sempre habitada por uma dupla tentação: transformar os acasos e imprevistos de uma existência numa implacável necessidade; sustentar, com irredutível singularidade, o que foi um destino fragmentário.” (Roger Chartier)
“It ain’t necessarily so
It ain’t necessarily so
De things dat yo’ liable to read in de Bible
It ain’t necessarily so
/…/
Dey tell all you chillun de debble’s a villain But ‘taint necessarily so.”
(Gershwin)
Na apresentação ao recente livro de Guiomar de Grammont – sua tese de doutorado em Literatura Brasileira defendida na Universidade de São Paulo em 2002 – Roger Chartier sensatamente avalia o trabalho como uma demonstração de que “é possível escrever a história sem ficar prisioneiro de fórmulas herdadas”. O tema, bem como o esboço de cada um dos cinco capítulos, vem explicitado na Introdução da autora: “Esta não é a história de um personagem. É a história de uma imagem que se desdobra em outra e outra”. Trata-se, portanto, não de apresentar Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, e suas obras, mas de descortinar a trajetória que alçou o personagem à condição emblemática de mito, herói nacional, genial expressão do espírito barroco. Os mitos e heróis são predestinados a serem e fazerem aquilo que se deseja que sejam e façam, sendo suas existências atestadas, grande parte das vezes, à revelia de documentação que as sustente. Uma vasta busca em arquivos e uma cautelosa análise das referências bibliográficas fundadoras da mitificação permite à autora afirmar que a história do Aleijadinho (e de sua obra), “reconstituída, na medida do possível, apenas a partir dos dados que se encontram nos documentos, resulta prosaica e comum, muito menos espetacular do que se supunha. Como costuma ser, aliás, a maior parte das vidas humanas.” O tom configurador desse mito barroco é inaugurado pelo texto de Rodrigo José Ferreira Bretas1, obra meticulosamente analisada pela autora.
Fundado em 1838 e tendo como patrono o imperador Pedro II, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) esforça-se para iniciar uma historiografia nacional, da qual necessariamente faria parte o resgate de personagens, localidades e eventos que, em seu conjunto, definiriam “a” identidade nacional. O IHGB, com a intenção enunciada de apropriar-se do passado como fonte de experiência que visasse a uma sustentação para o futuro da Nação, praticava uma história teleológica, não só “conferindo ao historiador um papel central na condução desse fim último, que seria o patriotismo, o amor pelas instituições monárquicas e o sentimento religioso” como também, nas palavras de Lilia Schwarcz, “nas mãos de uma forte oligarquia local, associada a um monarca ilustrado, o IHGB se autorepresentará, nos certames internos e externos, enquanto uma fala oficial em meio a outros discursos apenas parciais”. Nesse cenário não é estranha a criação de um prêmio, em 1842, aos melhores trabalhos estatísticos e históricos sobre as províncias brasileiras. Particularmente interessantes seriam as notas biográficas sobre nossas “celebridades”, das quais surgiria um panteon de heróis nacionais. Tendo ou não sido escrita com a intenção específica de permitir a Bretas o ingresso no IHGB, o certo é que a obra sobre o Aleijadinho abre a ele as portas do Instituto, do qual passa a fazer parte como sócio-correspondente.
A obra de Bretas cria o Aleijadinho e torna-se não um texto a ser lido segundo a perspectiva da ficção – como são os retratos biográficos encomiásticos – mas como uma síntese documental encorpada com fontes orais e, portanto, a descrição de um conjunto de “fatos reais”. E “o retrato realizado por Bretas não apenas servirá à invenção romântica do artista como monstruoso gênio que a doença teria tornado taciturno e solitário, mas também provocará leituras da obra do monstro como retrato expressivo da sua personalidade atormentada. /…/ Na urgência de destacar um personagem da massa anônima dos artesãos coloniais, já não se sabe quem é autor, quem é obra”. O Aleijadinho de Bretas carrega a pesada cruz dos heróis, cujos destinos são sempre acompanhados de provação e dor. O sofrimento é condição essencial para que os consumidores de mitos reconheçam, nesses heróis, sua própria finitude e com eles sejam solidários, tornando-se co-criadores e perpetuadores dos heróis, apropriando-se inclusive de sua redenção e vitória sobre o mal. “Em Bretas”, afirma a autora, “já se inicia a associação entre o artista sofrido, martirizado (como Cristo, naturalmente) e a idéia, germinal, de nação. Aleijadinho e a nacionalidade brasileira nascem juntos na mesma manjedoura, ou seja, envoltos pela força da Igreja, força que atravessou, incólume, um século XIX de transição para a República, marcado por conflitos sangrentos, mas setorizados. Aleijadinho chega quase a tornar-se um mártir a serviço da pátria: ‘jazeu por quase dois anos, tendo um dos lados horrivelmente chagado, aquele que por suas obras de artista distinto tanto havia honrado a sua pátria!´.”
Embora a documentação existente não dê garantias sobre a paternidade do Aleijadinho, Bretas a atribui a Manuel Francisco Lisboa, artesão branco e relativamente reverenciado nas Minas dos Oitocentos: “Na sociedade rigidamente hierarquizada de então, o ‘homem bom’ é aquele que tem um bom nascimento. O filho de um homem sábio e honrado será necessariamente sábio e respeitado2. Além disso, note-se que, ao fazê-lo, Bretas dá a seu personagem uma origem branca, que o dignifica, mesmo no século XIX, quando, supõe-se, essas clivagens raciais fossem um pouco mais tênues do que no século anterior”.
Também os viajantes, interessados em explorar a exótica terra brasilis e descrevê-la a seus conterrâneos, criam uma imagem da arte mineira e, por conseguinte, operam no sentido de atribuir uma identidade ao Brasil frente ao mundo civilizado que representam. Essa visão estrangeira será por vezes negada e por vezes servirá de fundamentação aos modernistas, nas primeiras décadas do século XX, ainda que sustentando discursos em sentidos distintos: “No discurso dos viajantes do século XIX, como Saint-Hilaire, Burton, Eschwege e outros, observamos sempre a comparação implícita com manifestações artísticas e monumentos europeus, para fornecer imagens verossímeis, que possam aproximar mais da visão de seus leitores aquilo que descrevem. A comparação, contudo, sempre é efetuada segundo um padrão de inferioridade da colônia americana em relação à Europa /…/. No discurso modernista, o movimento é contrário: a ordem é revalorizar a arte local para integrá-la no vasto programa de ‘redescoberta’ das raízes da arte brasileira, enfatizando aspectos como a miscigenação racial e cultural, projeto no qual foi integrado o mito do Aleijadinho. O que chamamos de ‘redescoberta’, contudo, em nossa perspectiva, significou, efetivamente, a invenção de um país que é o Brasil modernista, baseado na invenção das raízes culturais. O barroco teria um papel fundamental na constituição dessas ‘raízes’.”
Para o viajante estrangeiro, as artesanias nacionais sempre foram arremedos da alta arte praticada nos países “centrais” dos quais provinham; interessava-lhes mais a fauna e a flora exóticas e as possibilidades que elas abriam ao desenvolvimento das ciências européias. Os relatos dos viajantes, entretanto, convém notar – como ressalta a própria autora – “costumam ser utilizados como fontes históricas ‘primárias’, capazes de fornecer informações de ‘primeira mão’ sobre os acontecimentos. Raramente essas obras são analisadas como ficção literária em si mesmas /…/. Não são apenas ‘fontes históricas’, mas fontes privilegiadas, em acordo com o pressuposto positivista de que a distância conferiria certa ‘imparcialidade’ ao olhar.” O modernismo, ao contrário, tenderá a valorizar as produções nacionais, ávido por repensar nossa identidade. O projeto de constituição dessa identidade, entretanto, afasta-se daquele anteriormente praticado pelo IHGB que era, ao mesmo tempo, uma continuidade da tradição ilustrada já iniciada no século XVIII e uma alteração quanto aos seus objetivos: no século XIX, o IHGB “tinha o objetivo completamente novo de produzir uma reflexão sistemática sobre os problemas da nação e do Estado emergentes, como um projeto civilizatório de uma elite, uma vez que /…/ a maior parte de seus membros pertencia aos aparelhos burocráticos e administrativos da hierarquia dominante no Império.” Apostando na construção da idéia de Nação num momento em que a escravidão ainda existia e parametrizado por uma visão de História apoiada na noção de progresso, não caberia identificar a cultura nacional a uma arte produzida por mulatos e indivíduos situados em escalas sociais inferiores (daí a necessidade, em Bretas, de “clarear” Antônio Francisco Lisboa e aproximá-lo da casta mais nobre, atribuindo-lhe um pai branco e até certo ponto endinheirado). Os “mitógrafos do império” tenderão, de forma mais ou menos clara, mais ou menos explícita, a desvalorizar a arte barroca ou jesuítica. No Modernismo, ao contrário, a intenção de repensar a identidade nacional não teme a aproximação com a discussão sobre a identidade racial: torna-se visceral a idéia da pluralidade étnica e, conseqüentemente, passam a ser valorizadas as contribuições dadas pela mistura de raças diferentes, ainda que as relações entre o Modernismo (leia-se Mário de Andrade) e o Estado Novo (leia-se Gustavo Capanema) não tenham sido totalmente cordiais principalmente devido ao desacordo quanto a essa questão das etnias raciais3. Do modernismo surge o Aleijadinho mulato genial, representante de uma artesania emblemática que simbolizaria a riqueza e a originalidade da arte brasileira, expressão mesmo da “alma nacional”.
Se os três primeiros capítulos do livro de Guiomar de Grammont voltam-se mais à biografia (lacunar) e à constituição do mito do artista genial a partir dessas caracterizações biográficas e interesses diversos, o capítulo quarto inicia uma discussão mais pormenorizada sobre a produção do Aleijadinho que, se já havia sido evocada nos capítulos anteriores – dada a vinculação sempre estabelecida entre autor e obra – começa então a ser tratada com mais detalhamento. O pressuposto da autora, enunciado já no primeiro parágrafo do capítulo, é o de que técnicos e historiadores da arte, via-de regra, operam “sem questionar a historicidade das categorias nas quais se baseiam para construir seus objetos. Fundamentando-se em pressupostos como ‘estilo’, ‘autoria’, ‘diretos autorais’ etc., os críticos costumam analisar obras de tempos e lugares diferentes do seu, aplicando, anacronicamente, categorias de análise contemporâneas.”
A noção de autoria – cujas origens Foucault supõe radicadas no final do século XVIII e início do século XX e que Chartier, preenchendo as lacunas cronológicas deixadas por Foucault, fixa no começo do século XVIII – pressupõe a construção de um autor que, de alguma forma, teria a prerrogativa de propriedade em relação a sua obra. Ainda que atualmente a idéia de autoria – em vários campos, mas principalmente no da arte, onde autoria está diretamente vinculada à questão financeira – nos seja usual, ela só é consolidada no século XVIII, embora tenha começado a desenhar-se na idade média (“com o revivescimento das cidades [e] a conseqüente formação das corporações de ofícios”) e fortalecida durante o Renascimento. Certamente a autoria encontra ressonância e tem sua importância maximizada num mundo que transforma tudo em mercadoria. Os ateliers mineiros do século XVIII, entretanto, funcionavam como uma coletividade produtora de obras cuja execução era “arrematada” em leilões pelos mestres desses núcleos que congregavam os mais distintos artesãos. Dessa feita, os mestres coloniais seriam bons negociantes, mas não necessariamente os artistas mais hábeis de sua corporação. Sem ater-se a esses “pormenores”, a atribuição de obras ao Aleijadinho passou a ser feita a partir de um suposto “estilo próprio”, categoria bastante interessante ao ideal onipresente de destacar, dentre a multidão de artífices mineiros, os criadores originais e, dentre eles, o genial criador dentre os criadores. Do estilo Aleijadinho, segundo os críticos, destacam-se, “além dos polegares na mesma posição dos outros dedos, /…/ os olhos amendoados, o furo no queixo, o nariz afilado com as ventas bem marcadas, as maçãs salientes do rosto; os bigodes e a barba bem delineados, apontando para baixo, barba partida no queixo /…/ etc.” O estilo é a norma a partir da qual todo o resto é definido como mesmice e vulgaridade. A discussão sobre os parâmetros que dariam conta da autenticidade da obra, assentados em princípios anacrônicos, despreza tanto as lacunas documentais relativas às obras quanto despreza as condições reais de produção à época: “em um tempo em que a locomoção de uma cidade a outra não era nada fácil, Aleijadinho teria trabalhado em cerca de trinta igrejas em diversas cidades de Minas, e realizado um número incalculável de pequenas imagens, oratórios, castiçais etc. Quantos artífices anônimos não se ocultam sob a sombra desse mito?”.
Junto aos critérios de autoria e estilo surge, para os historiadores da arte, a difícil questão da originalidade. Estudos sobre Manoel da Costa Ataíde mostram claramente que a originalidade não era um critério a nortear os trabalhos dos artífices coloniais. Há evidências eloqüentes quanto à existência de modelos prévios, gravuras e desenhos comercializados e/ou disponíveis em bíblias e outras obras. A originalidade do Aleijadinho – defendida chamando à cena seu autodidatismo, suas limitações físicas, a enorme produção em um período de tempo tão exíguo – sempre foi uma prova de sua genialidade. Há que se considerar, entretanto, que não há prática – artística ou qualquer que seja – genuinamente autóctone, e as evidências face às cópias e emulações naturais à artesania colonial levaram a uma redefinição no conceito de originalidade de modo a perpetuar mitos de genialidade artística: aos originais, o artista genuinamente genial agrega características próprias, que definem a arte nacional frente aos modelos importados. As igrejas de Aleijadinho, por exemplo, seriam “borromínicas”, mas sua apropriação do estilo seria nova e consistiria em algo totalmente diferenciado.
“Em sua definição contemporânea” – afirma Chartier logo na apresentação do livro – “a obra [de arte] supõe a originalidade da expressão, fortes relações entre as experiências do artista e suas criações e a inalterável propriedade do criador sobre os produtos de sua imaginação. É sobre tais categorias que, a partir do século XIX, foram escritas as histórias da literatura, da pintura e da escultura”. Aplicadas anacronicamente à produção artística de um escultor (ou de vários escultores) mineiro do século XVIII, esses postulados vão se conformando para sustentar a genialidade de um personagem intencionalmente constituído para louvar a nação e provê-la com uma identidade. Na confluência desses fatores tantos surge um Aleijadinho inventado a partir de documentos que, ao mesmo tempo, servem para diferentes fins, “na medida em que se imponha a eles a interpretação desejada”. Constrói-se, pois, o Aleijadinho, e tal construção – alerta Chartier – atua como um silogismo: “Aleijadinho é o escultor barroco por excelência; o barroco é a expressão mais completa da identidade brasileira; portanto, o barroco é a nação brasileira em sua essência e Aleijadinho seu profeta, reconhecido como tal pelo Estado e suas instituições. Guiomar de Grammont retira (como se diz em relação à restauração de um quadro) as diferentes camadas de verniz depositadas sobre o traço histórico do Aleijadinho”.
O que justifica, entretanto, uma resenha deste trabalho, elaborado em searas aparentemente tão distantes, num Boletim de Educação Matemática?
A aproximação de outros campos de produção cultural e acadêmica – temos defendido – é vital para repensarmos nossas próprias práticas e, num processo de apropriação criativa, dão novo fôlego e permitem a configuração de novos rumos às nossas investigações. Assim, alguns elementos claramente perceptíveis no livro de Grammont podem, sim, servir de guia principalmente aos que atualmente exercitam-se na interface entre História, Matemática e Educação Matemática.
Como primeira contribuição, aponta-se a clareza com que a autora – e o prefácio de João Adolfo Hansen, orientador da pesquisa que originou o livro – explicita a posição do IHGB que, como sabemos, é uma das matrizes – se não a matriz – da historiografia nacional e, especificamente, da historiografia da Educação. Não parece ser vão entender os mecanismos de favores e interesses que sustentavam o projeto historiográfico elitista e teleológico do Instituto, afinando-o como um aparelho ideológico cuja função precípua era inventar a nacionalidade de modo a propagar os valores imperiais. São, essas, algumas das raízes do nosso modo de conceber e produzir História, e aliar-se ou afastar-se dessas intenções talvez seja uma opção mais adequadamente feita ao se analisar versões sobre suas “origens”. Note-se, entretanto, que nem todas essas versões sobre o IHGB são tão radicais. A reportagem “Os inventores do Brasil”, de Lorenzo Aldé, publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional em comemoração ao aniversário de 170 anos do IHGB, relativiza a situação do Instituto e seus sócios em relação à tutela do Império: “D. Pedro II foi assíduo freqüentador dos debates. O fato de ter o imperador como patrono e mecenas costuma render à instituição o rótulo de ‘chapa branca’. Embora não haja dúvidas sobre o monarquismo do IHGB no século XIX, essa impressão soa anacrônica, segundo Lúcia Guimarães: ‘Era um espaço de contraposição de interpretações. As idéias eram debatidas, não impostas. A versão sobre a independência que se consolidou nos livros didáticos tinha opositores no Instituto. Varnhagen combatia a idéia de que o episódio tinha sido fruto da vontade de José Bonifácio, D. Pedro I e do povo’ /…/. Ou seja, a idéia de ´chapa branca´ faz sentido atualmente, mas não é adequada para se pensar um tempo em que os contornos do Brasil mal existiam. Literalmente falando. Em 1841, convocado ao Parlamento para expor informações sobre os limites do país, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Aureliano de Souza Coutinho, teve que confessar que…não sabia. Quando D. João voltou para Portugal, em 1821, levou com ele os mapas originais.”
Nas práticas do IHGB ficam claras as intenções quanto à construção de um panteon nacional de heróis a partir de biografias. O fascínio pelas biografias, entre alguns, perdura até hoje, e por vezes a elaboração de descrições de personagens e situações “como realmente ocorreram” confunde-se com a própria função da historiografia. Dos livros didáticos (inclusive dos de Matemática) provêm grandes contribuições para a divulgação dessa concepção distorcida de história. A “ilusão biográfica”, expressão cunhada por Bourdieu, nos dá “a ilusória unidade de uma identidade específica, aparentemente sem contradições, mas que não passa de uma máscara sob a qual se oculta uma miríade de fragmentos e versões. A utopia biográfica”, continua Grammont, “é a ilusão de que a narrativa pode reconstituir autenticamente um destino”. Esforços contemporâneos, portanto, têm a intenção de “desnudar essa utopia, de desconstruir – a contrapelo – uma história tornada verdade pela repetição e por sua adequação aos diversos interesses de momentos específicos da historiografia brasileira”. O desnudamento da utopia, porém, implica trazê-la à cena: por que as verdades fabricadas deveriam ser rechaçadas, postas à margem do histórico? Não somos também as verdades que nos impomos e segundo as quais pretendemos ou quereríamos viver? Qual o problema em aceitar o relato de uma vida que se faz relato exatamente para que o passado seja purgado, para que o presente seja mais aceitável? Tal relato não nos diz tanto quanto o relato que o nega? E ainda que alguma checagem fosse feita, ainda que alguma divergência nos surgisse no processo mesmo sem checagem alguma, não seria mais produtivo indagar-se por que essa divergência? O que ela nos ensina sobre o sujeito, sobre suas verdades, sobre seu tempo e seu modo de constituição do mundo? Recentemente numa revista nacional de grande circulação debatia-se, na seção de cartas dos leitores, sobre a autoria da conhecida frase “O Brasil não é um país sério”. Foi Charles De Gaulle, afirmam alguns. Foi Celso Vieira, embaixador brasileiro na França, rebatem outros. Foi um assessor de De Gaulle? Foi Carlos Alves de Souza, embaixador em Paris? Perguntaríamos: o que faz com que o eco dessa frase ressoe tão significativamente até hoje? Por que esse fascínio com uma autoria? O que esse fascínio nos revelaria? Que percepção de país a frase nos permite vislumbrar? Na História da Matemática, Gauss realmente determinou com presteza, quando ainda criança, a soma dos cem primeiros naturais? Como saber? Como garantir a isenção dos biógrafos de Gauss? Por que essas perguntas afetam de modo tão inclemente os historiadores da Matemática? Não seria mais operativo perguntar-se que tipo de concepção essa afirmação – e sua trajetória pelos tempos – desvela? Qual Gauss esse registro permite construir? Qual Gauss esse registro quer construir? Obviamente, na esteira de uma história-problema, não se negam as questões: afirma-se a necessidade de analisá-las sob diferentes perspectivas.
Ademais, a criação de mitos e heróis para defender posições e construir verdades “compartilhadas” não é nova, não foi inventada pelo IHGB, nem termina com o Império.
Joaquim José da Silva Xavier – apelidado Tiradentes pela habilidade em arrancar dentes sem ter formação específica para isso – é um dos maiores heróis nacionais, tido como mártir do movimento que levou o Brasil à independência de Portugal. Tiradentes foi enforcado no Rio de Janeiro em 21 de abril de 1792. Tanto sua biografia quanto os traços de seu caráter são incertos, vagamente registrados: de Tiradentes não conhecemos um esboço fisionômico confiável, nem podemos decidir se foi um consistente revolucionário ou apenas uma personagem útil às causas da República implantada no país em 1889. Dentre tantos revolucionários de biografia mais documentada, com configuração de caráter e fisionomias menos lacunares, foi Tiradentes o escolhido a representar o sucesso da causa republicana: tão logo proclamada a República, já o dia 21 de Abril de 1890 foi feriado. O regime militar, em 1965, declarou Tiradentes “Patrono da Nação Brasileira”.
Os espaços em branco no registro de sua trajetória permitiam que ele fosse visto por uns como o defensor dos valores que os militares pretendiam representar e, por outros, como um revolucionário contrário aos valores defendidos pelos militares. Sobretudo, agradava à população a fusão de dois aspectos – o Tiradentes herói defensor da Pátria e o Tiradentes ícone religioso que, como um quase-Cristo protagonizou uma paixão, percorrendo seu calvário. Mas, principalmente – e este é o traço que pretendemos realçar – Tiradentes havia nascido no estado de Minas Gerais. Ao contrário de outros estados brasileiros onde viveram grandes revolucionários, defensores das causas da Pátria, Minas Gerais constituiria, já em meados do século XIX, com os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, o centro político do país.
IHGB, Modernismo, Império, República, Tiradentes, Aleijadinho… em tantas alterações, quantas permanências. Face a essas observações, mantemos (e defendemos como legítima) a posição de que se escreve história a partir da detecção e análise dos mecanismos – ora contrários, ora complementares – que sustentam alterações e permanências, de que é possível escapar à sina de escrever História a partir de estratégias consagradas – muitas vezes pelo senso comum –, apostando na história-problema, querendo com isso significar que “a história não deveria ser propriamente vista como uma ciência do passado, mas como uma disciplina que procuraria estabelecer um ‘diálogo do presente com o passado, e no qual o presente tomaria e conservaria a iniciativa’”, como aponta Miguel. Essa não é, definitivamente, uma posição hegemônica dentre aqueles que, em Educação Matemática, se inscrevem na região cujas preocupações orbitam no binômio História – Educação Matemática. Dentre as tantas justificativas possíveis, essa talvez seja a que mais eloqüentemente indique a pertinência da leitura, entre nós, educadores matemáticos, do livro de Guiomar de Grammont.
Notas:
1 Traços biográficos relativos ao finado Antônio Francisco Lisboa (o Aleijadinho), publicado no Correio Oficial de Minas em 1858.
2 Segundo a autora, o postulado de que os filhos se assemelham a seus pais está radicado na noção de genus, da retórica de Quintiliano que Bretas – especialista em retórica – certamente conhecia.
3 Segundo Guiomar de Grammont, o projeto do governo Vargas propunha a erradicação das raças, ao contrário do Modernismo que defendia a integração e louvava a miscigenação: “Houve, então, um prepotente esforço do governo nacionalista de criar as bases de um novo conceito de nacionalidade por meio da educação, da cultura e de versões oficiais da história, visando, pela unificação da língua e padronização do ensino, à ‘erradicação das minorias étnicas, lingüísticas e culturais’ em todos os níveis.”
Referências
ALDE, L. Os inventores do Brasil. Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 4, n. 39. Rio de Janeiro: Sociedade de Amigos da Biblioteca Nacional, pp. 56-61. Dez./ 2008.
CARVALHO, J. M. de. A Formação das Almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
GRAMMONT, G. Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
HORTA, J.S.B. O hino, o sermão e a ordem do dia: a educação no Brasil (1930-1945). Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1994.
NEMER, J.A. A mão devota: santeiros populares das Minas Gerais nos séculos 18 e 19. Rio de Janeiro: Editora Bem-Te-Vi, 2008.
VIDAL, D.G., A escrita da História da Educação e seus múltiplos olhares In: SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA DA MATEMÁTICA.PACHECO, n. 7, 2007, Guarapuava. Anais… Guarapuava: SBHMat, 2007. p. 97-108.
Antonio Vicente Marafioti Garnica.
[P…]A (des) construção do discurso histórico: a historiografia brasileira dos anos 70 | Ana Maria de Oliveira Burmester
Resenhista
Jurandir Malerba
Referências desta Resenha
BURMESTER, Ana Maria de Oliveira. A (des) construção do discurso histórico: a historiografia brasileira dos anos 70. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1997. Resenha de: MALERBA, Jurandir. Diálogos. Maringá, v.2, n.1, 221 -227, 1998. Sem acesso a publicação original [DR]