Historicidade e objetividade – DASTON (HU)

DASTON, L. Historicidade e objetividade. Tradução: Derley Menezes Alves e Francine Iegelski (org. Tiago Santos Almeida). São Paulo: LiberArs, 2017. 143 p. Resenha de: SOUSA, Raylane Marques. Por uma história dos ideais e práticas da objetividade científica. História Unisinos 22(4):702-707, Novembro/Dezembro 2018.

A coletânea de artigos intitulada Historicidade e objetividade, de Lorraine Daston, historiadora das ciências e diretora do Instituto Max-Planck de História das Ciências de Berlim, publicada no segundo semestre de 2017 e correspondente ao primeiro lançamento da “Coleção Epistemologia Histórica”, da Editora LiberArs, constitui-se num desafio de historicização das ciências e num projeto de epistemologia eminentemente histórica. O livro em tela congrega um prefácio, uma apresentação e sete artigos e persegue o propósito que desvelaremos a seguir.

No prefácio, Lorraine Daston anuncia-nos a proposta da obra 1. A autora esclarece-nos que os artigos, com a ressalva de um, enquadram-se numa perspectiva de historicização das ciências e num programa de “epistemologia histórica”.  Se a intenção de Daston é construir um programa de epistemologia histórica, isto é, “a história das categorias e práticas que são tão fundamentais para as ciências humanas e naturais que parecem muito autoevidentes para ter uma história” (p. 9-10), o itinerário argumentativo que ela desenha nas sete investigações em pauta revela-o de forma coerente e original, uma vez que o objetivo embrionário da coleção desses artigos, tendo em conta o excelente esteio bibliográfico em que se sustentam, é justamente mostrar que a objetividade nas ciências, a atividade de observação, a elaboração de um fato científico e as formas de quantificação têm uma história e pensar sobre as especificidades dessa história nos leva “a repensar a história de como sabemos o que sabemos” (p. 10).

Na apresentação, intitulada “História das Ciências, Teoria da História e História Intelectual”, Tiago Almeida e Francine Iegelski (2017) apontam-nos os motivos que os levaram à tradução, à organização e à publicação de Historicidade e objetividade. Os autores esclarecem-nos que a execução desse projeto tem dois objetivos: o primeiro é de colocar o público brasileiro em contato com os debates mais fecundos da historiografia das ciências; e o segundo é de discutir o já consolidado “programa historiográfico” ou a “epistemologia histórica” de Lorraine Daston para a história das ciências. Os autores evidenciam igualmente que o programa ou a epistemologia histórica de Lorraine Daston se distingue dos programas historiográficos anteriores e contemporâneos porque foi capaz de incorporar as contribuições e se desviar dos defeitos das três principais escolas da história das Nas relações que estabeleciam entre o conhecimento e seus objetos, a primeira escola tinha o defeito de ser idealista, a segunda de ser estruturante, e a terceira de se aprisionar ao particular. Desse modo, como frisam os autores, em seu programa ou epistemologia histórica, Daston recusa a ideia, bem acolhida e propagandeada por essas escolas, segundo a qual “historicizar equivaleria a relativizar ou, o que é pior, invalidar” (p. 12), ao mesmo tempo em que recupera o método de comparação entre as ciências, apesar de suas diferentes especialidades. De acordo ainda com os autores, a originalidade da abordagem de Daston para a história das ciências reside no fato de ser um projeto de trabalho conciliador, favorável à reunião de pesquisadores de diversas áreas, dedicado ao estudo de categorias, conceitos, ideias, objetos e práticas basilares da ciência moderna. Além disso, a apresentação retrata que certo número de pesquisadores chegou ao campo da História das Ciências via Teoria e Metodologia da História e História das Ideias e Intelectual, e vice-versa. Tanto o campo da História das Ciências quanto os campos da Teoria e Metodologia da História e História das Ideias e Intelectual se interessam pela historicidade das ciências, pelas relações entre conceitos, ideias, discursos, textos e contextos, e pelas temporalidades e escritas da história. Assim, o fascínio por esses temas acabou por aproximar essas áreas de conhecimento e por favorecer o contato dos historiadores da história com os historiadores da ciência, além de familiarizar os primeiros com os trabalhos de Daston, principalmente aqueles textos que versam sobre a objetividade e seus significados e múltiplas formas de manifestação.

No artigo 1 da obra Historicidade e objetividade, intitulado “Objetividade e fuga da perspectiva”, Daston esforça-se por traçar uma história não linear e contingente da objetividade científica, história essa que vai do fim do século XVIII ao início do século XIX3. O texto inicia com uma explanação concernente aos múltiplos sentidos da palavra objetividade e suas variantes nos idiomas francês (objectivité) e alemão (Objektivität). Nessas duas línguas, a autora explica que a palavra é confusa e refere-se a um só tempo à metafísica, aos métodos e à moral. A primeira referência diz respeito à busca dos cientistas por uma verdade objetiva no conhecimento, a segunda diz respeito aos procedimentos objetivos que sustentam toda pesquisa científica, e a terceira diz respeito à conduta objetiva, imparcial e desapaixonada do investigador. Daston assinala, na continuação do debate do texto 1, que os pesquisadores dos Science Studies têm se interessado bastante pelo conceito de objetividade na atualidade, mas eles continuam focando nos problemas de existência e legitimidade, em vez de problemas históricos. De maneira efetiva, como a autora argumenta, a objetividade tem uma história, e um dos episódios que lhe permite falar de tal história é a emergência, no século XIX, do que ela chama de ideal de “objetividade aperspectivística”, isto é, a tentativa de eliminação de características individuais do conhecimento científico. Assim, é no esforço de compreender o ideal de objetividade aperspectivística que a autora tece uma história crítica desse conceito no primeiro texto. Lorraine Daston sugere também que é possível visualizar o desenvolvimento desse conceito na literatura estética e moral do século XVIII, como no caso dos autores Shaftesbury, Hume e Adam Smith. A autora nos diz que as discussões a respeito da “perspectiva” no século XVIII e XIX procuram a supressão e o distanciamento emocional do indivíduo e colocam afirmações morais e estéticas em lado oposto às afirmações científicas, a exemplo dos pensadores mencionados. Seguindo o seu raciocínio, a autora também procura investigar a situação do conceito nas ciências naturais, opondo as tentativas dos homens de ciência do século XIX de sacrificar os traços pessoais a práticas precedentes. A autora esclarece que as investidas desses homens de ciência de supressão de traços individuais eram como que uma precondição para a criação de uma comunidade científica justa, harmoniosa e coerente, assim como uma garantia de alcançar a verdade científica.

Finalmente, a autora conclui o texto 1 com uma breve reflexão sobre como e por que a história do conceito de objetividade aperspectivística ganhou uma camada moral. Segundo a autora, a objetividade aperspectivística prescrevia certa indiferença e desapego por tudo o que é pessoal. Os cientistas deveriam não apenas abandonar tudo o que lhes é próprio, mas também esquecer todo e qualquer reconhecimento de si mesmos. Ademais, os valores da objetividade aperspectivística contribuíram para que os cientistas pautassem a sua conduta em métodos mecânicos e observações morais. A par dessas informações, o primeiro artigo do livro diz-nos que a objetividade que Lorraine Daston nos apresenta como tendo uma história tem como base as seguintes críticas: em primeiro lugar, a objetividade nas ciências não é um “dado trans-histórico” (p. 16) e que busca “a estrutura última da realidade” (p. 17); e, em segundo lugar, a objetividade não é mecânica e que visa suprimir “a propensão universal humana de julgar e estetizar” (p. 17).

O artigo 2 da obra Historicidade e objetividade, intitulado “A economia moral da ciência”, procura avaliar e desbancar uma antiga tradição que opõe fatos a valores. A espinha dorsal do presente texto é a ideia de que a ciência tem o que Lorraine Daston chama de “economia moral” e esta economia moral constitui o modo de conhecimento científico. Mais especificamente, a autora assevera que a ciência tem “certas formas de empirismo, quantificação e objetividade que não apenas são compatíveis com economias morais, elas exigem economias morais” (p. 38).

Segundo Daston, muito embora a ciência seja um exemplo de racionalidade e facticidade, ela não está isenta de afetos e emoções, valores, ideologias, normas e regularidades institucionais. Consoante a autora, “economias morais, ao contrário, são partes integrais da ciência: de suas fontes de inspiração, suas escolhas de temas e procedimentos, a peneira da evidência e seus padrões de explicação” (p. 42).

Embora as economias morais existam na ciência, para que elas servem e como elas estruturam as ideias-força de como os cientistas vêm a conhecer? Acerca dessas questões, Daston explica que uma economia moral é boa para a quantificação, o empirismo e a própria objetividade. As várias formas de quantificação têm economias morais. Os historiadores da ciência quantificam cientificamente, mas nem todos aspiram à exatidão matemática de suas mensurações, embora a precisão seja uma das virtudes mais observadas e louvadas entre eles. O empirismo também é um elemento fecundo em economias morais. Os três principais aspectos do empirismo da filosofia natural do século XVII, o testemunho, a facticidade e a novidade, apoiam-se e entrelaçam-se em valores e afetos. A objetividade, entretanto, é já uma economia moral. De acordo com Daston, duas de suas variantes mais importantes, ambas oriundas do século XIX, são: a “objetividade mecânica” e a “objetividade aperspectivística” (p. 59). A objetividade mecânica fundamenta-se em uma epistemologia da autenticidade e exige a eliminação de qualquer interferência pessoal no conjunto de observações da natureza. Já a objetividade aperspectivística assenta-se no lema “a visão a partir de lugar nenhum” de Thomas Nagel e combate as idiossincrasias de indivíduos e até de coletivos de pesquisadores em prol da verdade científica. Portanto, o elemento fundamental da discussão de Daston sobre as economias morais do conhecimento científico baseia-se na ideia de que o núcleo da ciência é moral e ressoa a voz do dever moral.

No artigo 3 da obra Historicidade e objetividade, intitulado “Uma história da objetividade”, Daston começa pontuando aspectos das três escolas que dominaram a história das ciências, a saber: a escola filosófica, a escola sociológica e a escola histórica. A escola filosófica é idealista e pensa a história das ciências como “a história da emergência e desaparecimento dos conceitos de natureza, dos sistemas metafísicos e dos quadros epistemológicos” (p. 69). Os historiadores filósofos da ciência associados a essa forma de pensar direcionam sua atenção para as teorias científicas e para a interlocução dessas teorias com outras áreas do conhecimento, como a filosofia e a teologia.

A escola sociológica concentra seu olhar sobre as estruturas sociais (tanto as microscópicas quanto as macroscópicas) da pesquisa científica. Os historiadores sociólogos da ciência que compartilham dessa tendência enxergam a ciência como uma instituição importante inserida na sociedade e que espelha a divisão dos poderes e a produção dos significados culturais. Já a escola histórica foca no local e no singular, aspectos que as outras duas escolas deixaram de lado. Os historiadores aliados a essa forma de pensar a ciência primam não apenas pelas teorias, mas também pelas práticas científicas e pelo trabalho nos arquivos. Outro aspecto basilar desse texto 3 é a apresentação do novo programa de Daston para a história das ciências. A autora finalmente explica o que entende por “epistemologia histórica” (Historical Epistemology): “a história das categorias que estruturam o nosso pensamento, que modelam nossa concepção da argumentação e da prova, que organizam nossas práticas, que validam nossas formas de explicação e que dotam cada uma dessas atividades de um significado simbólico e de valor efetivo” (p. 71). A singularidade da epistemologia histórica de Daston é que ela se relaciona à história das ideias, das práticas, dos afetos e emoções, dos valores e significados que organizam as economias morais das ciências. Daston estabelece novas perguntas para velhas questões. É principalmente nesse aspecto que a abordagem da autora se diferencia das demais que ordinariamente tomam a objetividade científica como desprovida de história.

No artigo 4 da obra Historicidade e Objetividade, intitulado “O que pode ser um objeto científico? Reflexões sobre monstros e meteoros”, Daston explica o que é e o que pode se tornar um objeto de pesquisa científica. A resposta da autora para esse questionamento é uma crítica construída com base na afirmação de Aristóteles de que as ciências se fazem a partir de regularidades: “daquilo que é sempre ou pelo maior período de tempo” (p. 79). Para Daston, porém, somente a regularidade não é suficiente para destacar um item do cotidiano ordinário e torná-lo objeto de investigação científica. É necessário ir além e observar “se uma classe de fenômenos é quantificável, manipulável, bela, experimentalmente repetível, universal, útil, publicamente observável, explicável, previsível, culturalmente significativa ou metafisicamente fundamental” (p. 79). Segundo Daston, esses critérios se justapõem e demonstram que a escolha dos objetos científicos vai além do simples critério de regularidade. Assim, um estudo sério do que é e do que não é objeto para a ciência deve levar em consideração esses critérios e como eles se sobrepõem à experiência normal do cotidiano e destacam alguns fenômenos como objeto de investigação e outros não. O objetivo de Daston nesse texto 4 é exatamente examinar, por meio de exemplos históricos, como e por que os objetos da filosofia preternatural se tornaram objetos de investigação da ciência em meados do século XVI e foram esquecidos no século XVIII. Segundo a autora, os objetos da categoria preternatural/além da natureza (sintetizados em dois grupos, monstros e meteoros) continuaram a existir nesse período, mas não despertaram mais interesse dos cientistas, porque os três princípios (ontológico, epistemológico e sensitivo) que mantinham tal categoria unida e em evidência foram desvelados. Daston defende que os objetos preternaturais foram escolhidos, em primeiro lugar, pelo princípio ontológico, que significa coisas e eventos fora da ordem cotidiana da natureza. Em segundo lugar, eles foram escolhidos pelo princípio epistemológico, que exige um trabalho mais pesado de coleta, explicação e fundamentação.

Em terceiro lugar, eles foram escolhidos pelo princípio da sensibilidade, que dá conta das maravilhas e, até mesmo, dos milagres e prodígios. De acordo com a autora, no entanto, a filosofia preternatural não teve morte espontânea. Os três princípios que a fundamentavam foram incorporados pela filosofia natural do final do século XVII e início do século XVIII. Além disso, a emergência de uma nova metafísica e uma nova sensibilidade dissolveu sua lógica, embora sem eliminar seus componentes, tornando-a irrelevante para os estudos científicos.

No artigo 5 da obra Historicidade e objetividade, intitulado “Sobre a observação científica”, Daston apresenta-nos a observação científica como um gênero epistêmico dotado de historicidade. A autora explica-nos que a observação é a prática científica basilar das ciências humanas e naturais. Embora tal prática não desperte o interesse das ciências enquanto objeto de investigação, alguns filósofos e positivistas lógicos se dedicaram a examiná-la no século XX, mais precisamente com intuito de fortalecer “a visão científica da observação como primitiva e passiva” (p. 91). Já os críticos da postura adotada por tais filósofos e positivistas lógicos defendiam a ideia de que as observações eram inevitavelmente entremeadas de juízos de valor e, por isso, não poderiam oferecer um julgamento imparcial quando entrassem em conflito. Segundo a autora, nas duas situações, a preocupação dos filósofos da ciência era epistemológica e estava assentada na filosofia de Kant, a saber: “haveria ou não haveria algo como uma observação científica não contaminada pela teoria?” (p. 91). No fundo, a preocupação desses filósofos era como higienizar a observação, evitando que ela fantasiasse e distorcesse os dados objetivos. Nesse texto 5, o objetivo de Daston é discutir as bases ontológicas da observação científica especializada, especialmente como esta reconhece e seleciona objetos para uma comunidade de cientistas.

Com efeito, como nos diz a autora, esta discussão ocupa algum espaço “entre epistemologia (que estuda como observadores científicos adquirem conhecimento acerca dos objetos por eles escolhidos) e metafísica (que investiga a realidade última das entidades observadas)” (p. 92). Assim, na perspectiva de Daston, a ontologia é algo como os cientistas preenchem o universo com percepções, retirando objetos do cotidiano comum, classificando-os e tornando-os objetos de investigação científica, e traduzindo- os em formas (textos-imagens-tabelas) ou numa linguagem popular a um coletivo ou a uma comunidade. De acordo com a autora, uma tentativa de historicização da observação científica pode ajudar a trazer à superfície práticas científicas tomadas até então como a-históricas e autoevidentes e conectar a história das ciências à história das sensibilidades e do eu, como também expandir o espaço das experiências científicas. Nesse sentido, o que constitui o mote desse texto 5 é a ideia que assim pode ser sintetizada: não existe ciência sem a prática da observação, e tampouco mundo articulado visível, audível ou táctil.

O artigo 6 da obra Historicidade e objetividade, intitulado “Science Studies e História das Ciências”, constitui-se como um desvio nessa coletânea, como afirma Lorraine Daston no Prefácio. Esse capítulo não explora episódios históricos, mas a situação de aproximação e estranhamento entre duas disciplinas que abordam o mesmo tema, neste caso, “ciência e tecnologia” (p. 109). O objetivo de Daston, nesse texto, é rastrear a situação de interdisciplinaridade e intercâmbio entre os Science Studies e a História das Ciências, bem como o presente e o futuro de ambos os campos. Assim, o texto divide-se em duas partes. A primeira parte traz um curto relato das conexões entre Science Studies e História das Ciências desde 1970. A segunda parte examina como seus caminhos se separaram na década de 1990 à medida que a História das Ciências se aproximava da História e os Science Studies se afastavam. A partir do relato sucinto da conexão entre os dois campos, com foco nos Science Studies, Daston destaca que os objetivos deste último campo se sintetizavam em “humanizar a ciência tornando-a mais social (ou pelo menos sociável) ou domesticá-la, também tornando-a mais sociável (ou pelo menos sociológica)” (p. 111), e se afastar de tudo o que “cheirasse a psicologia” (p. 111). De acordo com a autora, esses objetivos se apoiavam em dois princípios: em primeiro lugar, “a ênfase nas instituições e estruturas, não nos indivíduos e ações” (p. 111); e, em segundo lugar, o destaque de que “o social se baseava fortemente nas estratégias marxistas desmistificadoras da ideologia” (p. 112). Esses dois princípios sugerem, segundo Daston, que os Science Studies seguiram correntes distintas de pensamento: Karl Marx e Émile Durkheim, mas também a sociologia do conhecimento de Karl Mannhein, a filosofia-sociologia de Fleck, entre outras. Mas o componente-chave que estabeleceu o afastamento entre os Science Studies e a História das Ciências foi a leitura da obra A estrutura das revoluções científicas, de Thomas S. Kuhn, lançada em 1962. Assim, enquanto os Science Studies interpretaram a obra de Kuhn como uma exposição do relativismo, os historiadores das ciências, em contrapartida, extraíram lições diferentes e mais próximas da argumentação de Kuhn, a saber, que a História das Ciências não poderia mais ser entendida como progresso constante em busca de um télos e uma verdade última, mas deveria afastar-se das narrativas teleológicas. O ponto de aproximação entre os dois campos seria a crítica a uma visão positivista da história, que se definia por um método mecânico e apartado do social.

A outra metade do artigo 6 é dedicada à exposição dos motivos que levaram ao distanciamento entre os Sciences Studies e a História das Ciências. A começar com o esclarecimento do que é ciência e de como estudá-la, essa segunda parte prolonga a discussão a respeito do estranhamento entre os dois campos. Segundo Daston, os Science Studies se recusavam a aceitar a doutrina científica atual e concebiam as ideias de verdade e falsidade das proposições como insuficientes para sua aceitação. Além disso, eles achavam que uma explicação para ser completa deveria levar em consideração aspectos sociais, políticos e cognitivos. O motivo do distanciamento dos Sciences Studies com relação à História das Ciências foi a transparência dos relatos dos cientistas. Por meio de uma discussão pormenorizada sobre como os historiadores da ciência viam a ciência atual, Daston evidencia que eles eram menos desconfiados no que diz respeito às verdades e às falsidades das proposições, embora fossem extremamente descrentes quanto às narrativas da ciência do passado em relação à ciência presente. De acordo com Daston, talvez o principal motivo que levou ao distanciamento dos Science Studies da História das Ciências na década de 1990 tenha sido o debate acerca da “contextualização da ciência”. Enquanto o primeiro campo levantava a bandeira da “ciência em contexto” e contribuía para o fim da autonomia da ciência no que concerne à sociedade, o segundo campo também hasteava essa bandeira, mas explorava de forma mais detida o contexto histórico e trabalhava para sua ampliação e aprofundamento, incorporando novos conceitos, categorias e práticas das ciências sociais e, principalmente, da história.

No artigo 7 da obra Historicidade e objetividade, intitulado “Objetividade e imparcialidade: virtudes epistêmicas nas humanidades”, encontramos a desmistificação das relações entre as humanidades e as ciências que, por mais de um século, foram marcadas pelas oposições “Geistes versus Naturwissenschaften, ideográficas versus nomotéticas, interpretativas versus exploratórias, orientadas para o passado versus orientadas para o futuro” (p. 127). De acordo com Daston, desde pelo menos o século XVI, as humanidades e as ciências compartilham “métodos, instituições, ideias e virtudes epistêmicas” (p. 127). Imparcialidade e objetividade são duas das virtudes epistêmicas amplamente compartilhadas no século XIX2. Começando com uma sentença lapidar do jovem Nietzsche em sua II Consideração extemporânea: “Objetividade e justiça não tem nada a ver uma com a outra” (Nietzsche, 2017, p. 90), Daston apresenta-nos a crítica que o filósofo fez aos valores da imparcialidade e da objetividade, assim como aos estabelecimentos de ensino de seu tempo que supervalorizaram tais virtudes epistêmicas e as trouxeram para as humanidades. Segundo a autora, quando a história se tornou uma ciência empírica no século XIX, esses valores entraram em concussão e Nietzsche foi quem melhor percebeu os choques. O objetivo de Daston, nesse texto, é mostrar que os valores da imparcialidade e objetividade têm histórias próprias e precisam ser problematizadas.

Assim, Daston faz um esboço dos objetivos da imparcialidade e da objetividade na história, evidenciando como a imparcialidade foi difundida e praticada por historiadores ao longo dos séculos XVIII e XIX, especialmente em favor de uma história dos estados-nação. A autora assinala que, no século XVIII, a história consistia em narrativas dos eventos e das vidas dos grandes homens apresentadas como exemplos para formação do julgamento e do caráter do leitor. Nesse modelo de história, a imparcialidade não significava neutralidade de valor por parte do historiador, mas sim não tomada de partido de nenhuma das partes envolvidas na história – não engajamento político –, com objetivo de alcançar conclusões sólidas acerca de guerras e conflitos políticos do passado. Assim, por exemplo, Leopold von Ranke é um dos mais importantes historiadores associados a essa doutrina da imparcialidade. Heinrich von Sybel e Georg Gervinius, posteriormente, criticaram Ranke por sua imparcialidade e neutralidade. O jovem Nietzsche também teceu duras críticas ao historiador prussiano por sua imparcialidade e autoimposta “objetividade de eunuco”.

A sequência do texto 7 apresenta as técnicas da objetividade aplicadas à história, bem como certos aspectos do historiador objetivo. No centro do sentido de objetividade dos historiadores do século XIX está “o forte sentimento de restrição científica” (p. 133), que julgava até que ponto a evidência em mãos poderia ir. Daston constata que tanto os métodos e as técnicas da crítica histórica quanto certas atitudes objetivas do historiador diante de seu objeto assentam- se na polêmica entre filólogos clássicos e historiadores da antiguidade a respeito das declarações metodológicas de Tucídides em seus discursos. Segundo Daston, as duas principais questões que mobilizaram os estudos acadêmicos sobre Tucídides foram estas: “primeiro, em que medida o próprio Tucídides estava conscientemente aspirando ao padrão de história objetiva?; segundo, ele se manteve fiel a esse padrão, especialmente ao relatar discursos?” (p. 136). A autora explica que as palavras objetividade e subjetividade são produtos de meados do século XIX, logo a importação desses termos para as análises da obra e do método histórico de Tucídides é um equívoco. Daston recupera ainda a crítica de Nietzsche à religião ascética da objetividade que dominou e formatou os historiadores no século XIX. A autora está preocupada em entender como, em tão pouco tempo, o valor da objetividade se tornou uma virtude superestimada entre os historiadores. Nietzsche é a chave interpretativa para essa questão. O filósofo alemão farejou no culto da objetividade um ar de “autoengano”, “superstição” e “mitologia”, uma falsa religião e uma falsa fé. Nietzsche encarava a religião da objetividade e seus sectários como um verdadeiro problema, porque tal religião pregava a autorrestrição, o autossacrifício e exalava um odor desagradável de ascetismo que rapidamente se espalhara pelas instituições de ensino da Alemanha de seu tempo.

Por meio da exposição sistemática dos sete artigos que integram a obra Historicidade e objetividade, concluímos que Lorraine Daston compreende a objetividade de forma distinta daquela comumente compartilhada pelas doutrinas objetivistas, que associam à postura objetivista a ideia de que é possível “ver os fatos como eles realmente são”, isto é, conhecer a realidade em si e por si mesma. Daston consegue distanciar-se dessa tendência ao inserir a objetividade em uma perspectiva histórica, em um modo por meio do qual a objetividade não pode ser vista desvinculada de uma interpretação pluralista e multiforme da realidade. Nos sete artigos que constam nessa coletânea, interessa a Daston principalmente dissociar a objetividade – na área da História das Ciências, em particular – de concepções que a tomam como um dado a-histórico. Nesse sentido, no programa epistemológico dastoniano, à noção de objetividade é adicionada uma faceta interpretativa, já que a sua epistemologia histórica se relaciona à história das ideias e das práticas, dos afetos e das emoções, da moral e dos valores. Assim, Daston demonstra que a objetividade da ciência é tanto mais histórica quanto mais ela se mostrar relacionada aos muitos pontos de vista e às interpretações humanas.

Dessa maneira, consideramos essa obra como uma importante contribuição não só para os estudos pertinentes à historiografia, história, filosofia e sociologia das ciências e relacionados à historiografia, filosofia e teoria da história, mas também para clareamento de questões que envolvem o complexo e multifacetado conceito de objetividade científica, abrindo e iluminando o caminho para outras pesquisas, discussões e questionamentos sobre esse tema.

Referências

ALMEIDA, T.; IEGELSKI, F. 2017. História das Ciências, Teoria da História e História Intelectual. In: L. DASTON. Historicidade e objetividade. Tradução: Derley Menezes Alves e Francine Iegelski (org. Tiago Santos Almeida). São Paulo, LiberArs, p. 11-14.

DASTON, L.; GALISON, P. 2007. Objectivity. New York, Zone Books, 501 p.

DASTON, L. 2016. The Truth in the Leaves. Max Planck Research.

ViewPoint_History of Science. Berlin, 26 Apr., p. 10-15. Disponível em: https://www.mpiwg-berlin.mpg.de/content/daston. Acesso em: 18/05/2018.

NIETZSCHE, F. 2017. Segunda consideração extemporânea: Sobre a utilidade e a desvantagem da História para a vida. Organização e tradução: André Itaparica. São Paulo, Hedra, p. 29-146.

Notas

2 A título de esclarecimento, a escolha dos sete artigos que integram a obra em análise não foi feita por Lorraine Daston, mas pelo historiador brasileiro Tiago Santos Almeida. No prefácio, Daston explica que os sete títulos agrupados na coletânea foram escritos em diferentes momentos de sua trajetória intelectual e profissional e que alguns deles não trazem respostas satisfatórias a uma série de desconfortos teóricos e interpretativos suscitados pelo problema da objetividade nas ciências. No entanto, exatamente por essa razão, ela espera que os leitores brasileiros compreendam cada artigo como evidência de uma mente em ação, que se esforça para entender aspectos da história do conceito de objetividade científica.

2 Sobre a certeza, a precisão, a verdade e a objetividade como virtudes epistêmicas fundamentais da ciência, como características particulares que definem a identidade da ciência e a prática científica, ver também Daston (2016).

Raylane Marques Sousa  – Universidade de Brasília. Programa de Pós-Graduação em História. Campus Darcy Ribeiro, Instituto Central de Ciências, Norte, Bloco A, Subsolo (ASS 679-690), 70910-900, Brasília, DF, Brasil.

Um papel para a história: O problema da historicidade da ciência – CONDÉ (PH)

CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão. Um papel para a história: O problema da historicidade da ciência. Curitiba: ED. UFPR, 2017. 171 pg. Resenha de: SILVA, Luiz Cambraia Karat Gouvêa da. Internalismo versus externalismo em história da ciência: uma proposta de integração. Projeto História, São Paulo, v.62, Mai-Ago, pp. 388-395, 2018.

Mais do que uma análise histórica sobre uma das maiores controvérsias existentes na História da Ciência, entre as escolas internalista e externalista de teoria científica, o livro Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência, do Professor Titular de História da Ciência na UFMG Mauro Lúcio Leitão Condé, desenvolve a ideia de superação da dicotomia entre essas duas perspectivas metodológicas. O objetivo da obra é construir a categoria epistemológica “historicidade da ciência”, uma proposta que promoveria a articulação entre os elementos sociais com as dimensões empíricas do real.

O livro é resultado do minicurso ministrado em setembro de 2013, por Condé, na Escola Paranaense de História e Filosofia da Ciência – ligada ao Departamento de Filosofia da UFPR. Observada a trajetória acadêmica do autor, podemos concluir que esse estudo apresenta uma síntese de investigações que Condé vem desenvolvendo há quase três décadas. Em Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência o autor faz uso tanto de autores com os quais trabalha desde o início da carreira, como Wittgenstein e Thomas Kuhn, quanto de pensadores que começou a discutir com mais frequência nos últimos tempos, como Alexandre Koyré, Ludwik Fleck e Edgar Zilsel.

Como o problema da historicidade da ciência é de natureza epistemológica, esse estudo deve ser visto em um contexto disciplinar mais amplo. Para além das fronteiras da História da Ciência, o livro se alinha com outras áreas que investigam os pressupostos metateóricos que fundamentam a produção do conhecimento científico, tais como a Sociologia, a Filosofia e a Antropologia. Embora o texto atinja uma notória profundidade teórica, é desenvolvido em uma linguagem simples e inteligível, sendo sua leitura indicada tanto aos iniciantes interessados em compreender a dicotomia externalismo versus internalismo, quanto aos iniciados que buscam aprofundar-se na temática.

Para operacionalizar sua análise, ou seja, para inter-relacionar as duas perspectivas metodológicas, Condé se utiliza do método comparativo. Em um primeiro momento, o autor elege representantes de cada uma dessas linhas teóricas – Koyré e Zilsel – e lança luz sobre seus principais pontos de divergência. Constatada a querela, Condé passa a analisar como a proposta externalista ganhou, a partir de Kuhn, proporções inimagináveis, ofuscando, inclusive, o que há de meritório na análise internalista. Por fim, o autor, resgatando ideias de Fleck e fazendo uso da filosofia da linguagem de Wittgenstein, procura desenvolver uma proposta de integração na qual tanto o internalismo como o externalismo são utilizados na confecção de uma epistemologia que analisa as influências socioculturais do cientista sem negligenciar o papel da natureza, a historicidade da ciência.

O livro se divide em prefácio, introdução, quatro capítulos e uma conclusão. O prefácio, escrito pelo professor da UFPR Eduardo Salles de O. Barra, busca introduzir o conceito de historicidade da ciência. Para Barra, o esforço de Condé se dá em compreender como o conhecimento científico é produzido por um profissional que está inserido em um determinado contexto. O que Condé, aos olhos de Barra, quer dizer é que o cientista não se encontra em uma ilha isolada quando pratica seus experimentos. Na realidade, existe um conjunto de valores sociais, de pressupostos, de imaginários, que, mesmo não intencionalmente, condicionam o cientista em suas atividades. A “esterilização” laboratorial não levaria em conta que o próprio cientista, na prática da ciência, já estaria partindo de pressupostos, tradições, consensos acadêmicos, refutando, assim, a possibilidade de se atingir um conhecimento pretensamente positivo.

Mas essa forma de analisar a ciência como uma prática social observando seus condicionantes externos – ou seja, a visão externalista – teria se radicalizado em estudos do final do século XX, valorizando em demasia a abordagem sociológica da ciência e atingindo nuances próprias ao relativismo (p. 16). Estudos sobre a teoria científica desenvolvidos pelo Programa Forte da escola de Edimburgo acabariam por retirar a importância da natureza na prática científica, dando, assim, excessivo valor às dimensões sociais presentes no “fazer ciência”. Para Barra, o grande  mérito do livro de Condé está, justamente, em propor uma epistemologia ligada aos estudos sobre a teoria da ciência que, como veremos, pense a atividade científica como um produto da interação linguística entre o aspecto social, próprio do contexto do cientista, que não negligencia o papel do dado empírico proveniente da investigação do mundo natural.

Na Introdução, denominada A ciência tem uma história, Condé anuncia uma de suas teses centrais: a de que, para além da conclusão óbvia de que as ciências têm uma história, a forma como essas histórias são construídas também influenciam o próprio processo de produção científica. Isto é, constatada que a visão dos homens é condicionada historicamente, essa premissa é estendida aos cientistas e às atividades laboratoriais: “Todo conhecimento da natureza é tecido a partir de sua historicidade social e linguística” (p. 28). Mais do que história, as ciências possuem historicidade.

O Capítulo 1, intitulado O filósofo e as máquinas: Koyré, Zilsel e o debate internalismo versus externalismo, tem como objetivo mostrar que as origens desse debate remontam à controvérsia sobre as origens da ciência moderna. Os internalistas, representados na figura de Alexandre Koyré, defendem que a Revolução Científica aconteceu por conta de uma mudança na “atitude metafísica” (p. 32), uma alteração de pensamento no plano teórico, que desbancou a escolástica medieval e instaurou um novo cenário intelectual que possibilitou o desenvolvimento da ciência moderna e, consequentemente, das novas tecnologias. Do lado oposto, os externalistas, representados por Edgar Zilsel, advogam que a Revolução Científica foi protagonizada pelas mudanças oriundas da união do saber prático dos artesãos-engenheiros (o “saber-fazer”) com a racionalidade e o saber teórico da tradição filosófica (o “saber-pensar”), gerando o método experimental que caracterizou a ciência moderna. A emergência do capitalismo e a valorização da tecnologia e da mercadoria teriam influenciado esse processo. Assim, enquanto Koyré e os internalistas entendem a Revolução Científica como uma mudança de “atitude metafísica”, Zilsel e os externalistas a compreendem como uma consequência do novo contexto social e econômico que caracterizou a Modernidade.

Condé argumenta que, embora Koyré e Zilsel tenham lançado duas importantes perspectivas metodológicas para os historiadores da ciência, seus modelos continham imprecisões. O internalismo koyreniano, amplamente baseado no realismo matemático de perfil platônico e cartesiano, desconsiderava a influência do contexto na atividade dos cientistas. Já o externalismo, na forma como apresentada por Zilsel, além de não produzir o conceito de historicidade, já que não desenvolveu a ideia de que a história de uma ciência afeta o seu resultado, dava excessiva importância à tese de que a ciência moderna surgiu da união do “saber-fazer” com o “saber-pensar”. Este argumento foi questionado pelos internalistas que observaram que os antigos romanos também contavam com essas duas práticas em sua sociedade e não produziram a ciência moderna. Assim, mais do que desenvolvimento técnico, os internalistas defendiam que as mudanças trazidas pela Revolução Científica se davam na “atitude metafísica”.

No Capítulo 2, O elo perdido: Fleck e a emergência da historicidade da ciência, Condé mostra como a ideia de historicidade da ciência, amplamente divulgada por Kuhn na década de 1960, já existia desde a década de 1930, desenvolvida pelo médico e filósofo Ludwik Fleck. Este pensador teria sido o primeiro a refletir sobre as conexões que se estabelecem entre a ciência e a sociedade. Segundo Condé, Fleck inaugura uma nova epistemologia para se pensar a prática científica na qual a ciência não pode ser vista separada de seu contexto histórico e social. O conhecimento científico não seria apenas fruto do “estilo de pensamento” de um determinado coletivo de cientistas, mas de toda a sociedade na qual o praticante da ciência está inserido. A partir dessa constatação, Condé conclui que não existe conhecimento fora do social e, consequentemente, fora do tempo. Essa seria a noção de historicidade da ciência que Fleck chamaria, na década de 1930, de “ciência das ciências”. Essas ideias entrariam em conflito com o objetivismo característico do neopositivismo do Círculo de Viena, vertente epistemológica hegemônica da época, o que acabou por relegar Fleck ao ostracismo.

No Capítulo 3, “Um papel para a História”: historicidade versus relativismo em Thomas Kuhn, Condé analisa Kuhn em dois momentos. No primeiro, quando, na década de 1960, publica A Estrutura das Revoluções Científicas, afirmando a importância do contexto histórico no “fazer científico” – premissa que foi de encontro às pretensões de objetividade do “racionalismo crítico” de Popper. E, em um segundo momento, a partir da década de 1970, quando alguns de seus seguidores conduziram o estudo da dimensão social da prática científica às últimas consequências, o que acabou por ocasionar o surgimento de grupos de pesquisas que desabilitavam qualquer pretensão objetiva de investigação da natureza – o Programa Forte de David Bloor seria um exemplo. Estes grupos, chamados socioconstrutivistas, foram considerados por Kuhn como relativistas. Segundo Condé, o autor da A Estrutura das Revoluções Científicas passaria o resto da carreira tentando desenvolver uma teoria que conciliasse a dimensão social com a natural. Entretanto, teria morrido antes de terminar esse projeto. Assim, a “tensão essencial” para Kuhn seria o paradoxo insolúvel no qual “sociedade” e “natureza” são, supostamente, inconciliáveis. Mas Kuhn teria deixado algumas pistas que apontavam para uma possibilidade de inter-relação linguística entre esses dois mundos. Abandonando a noção dos paradigmas, Kuhn passaria a estudar o diálogo entre os diferentes grupos científicos a partir da teoria da linguagem e da tradução dos seus respectivos “campos léxicos”.

Entretanto, segundo Condé, a teoria da linguagem científica desenvolvida por Kuhn defendia a “coisa em si” kantiana, o que o teria impedido de levar a análise linguística às últimas consequências. E é a partir desse horizonte que Condé, no Capítulo 4, Wittgenstein e a gramática da ciência: linguagem e práticas sociais no conhecimento científico, utiliza a filosofia da linguagem desenvolvida por Wittgenstein para estudar uma possibilidade de congregar os três conceitos: a sociedade, a linguagem e a natureza. A partir da ideia de “gramática da ciência” o autor propõe que a “historicidade do conhecimento” é feita pela linguagem, a partir da “tessitura”, ou entrelaçamento, dos aspectos sociais e dos dados empíricos obtidos do mundo natural.

Condé nega qualquer tipo de essência transcendental na linguagem, assumindo, por meio de Wittgenstein, que seu uso nos diferentes contextos é regido por regras – as “gramáticas” –, e que essas categorias de linguagem estão em permanente construção, sendo, portanto, produto da “práxis social”. O que Condé está defendendo é que a “coisa em si” kantiana é questionável nessa abordagem linguística e que a própria cultura científica estabelece, em um movimento permanente, as regras que normatizam as práticas científicas. Diferente do relativismo socioconstrutivista do Programa Forte, Condé admite que essa construção linguística da prática científica é feita, também, em diálogo com a natureza, compreendida como “objetos, fatos, ações” (p. 150). Assim, o autor argumenta que a epistemologia sugerida pela historicidade da ciência reconhece na linguagem a possibilidade de articulação da dimensão social com a natural e empírica do trabalho científico.

Na Conclusão do livro, Condé, além de desenvolver uma síntese das discussões dos capítulos anteriores, afirma que a historicidade da ciência pode ser um horizonte epistemológico produtivo para os analistas interessados em compreender a prática científica como um fenômeno de linguagem que congrega tanto a dimensão social quanto a natural.

O livro Um papel para a história: o problema da historicidade da ciência, mais do que apresentar de forma relevante uma possibilidade de superação do problema internalismo versus externalismo, fornece, com agudeza, novas diretrizes epistemológicas para o estudioso da teoria da ciência interessado em refletir sobre as historicidades possíveis na relação entre o “sujeito” e o “objeto” a partir de uma perspectiva linguística.

Luiz Cambraia Karat Gouvêa da Silva – Bacharel em História pela Universidade de São Paulo, é aluno do Programa de Pós-graduação em História da UNESP/Assis. Tem experiência na área de História da Ciência. Número ORCID: 0000-0001-8697-2799. E-mail: luiz.cambraia.silva@usp.br.

O retorno do real – HAL (NE-C)

HAL, Foster. O retorno do real. Trad. Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2014. Resenha de: LEONÍCIO, Otavio. O real e a História. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n.101, Jan/Mar, 2015.

Os problemas em torno dos quais O retorno do real se constitui são imensos. Eles têm pautado o pensamento e a prática de críticos e artistas desde meados dos anos 1960 – ou seja, há exatamente meio século; de um modo ou de outro, e sobretudo no que concerne à questão do significado da arte dita contemporânea, dizem respeito a uma questão crucial: a crise da concepção de história sobre a qual a arte vinha sendo (e,parcialmente pelo menos,ainda vem sendo) produzida desde o romantismo. Mais especificamente, a questão central de O retorno do real é a eventual superação de um “historicismo persistente que julga a arte contemporânea atrasada, redundante e repetitiva” (p. 30). Em certo sentido, portanto, Foster se vê aqui às voltas com os mesmos desafios e dilemas de uma geração de artistas e críticos que, como afirmou um de seus maiores expoentes, Robert Smithson, percebeu que “uma consciência transistórica emergiu nos anos sessenta”1.

A agenda de Foster não coincide, todavia, com a dos artistas sessentistas. Pois o que está em jogo para ele é também, e talvez sobretudo, a viabilidade de uma modalidade discursiva (a crítica de arte) que, desde o romantismo, busca o significado das obras de arte na interseção entre qualidade estética (vinculada à noção transcendental de experiência estética) e pertinência histórica (vinculada à situação das obras de arte no quadro geral da História da Arte). Ou seja, o que está em jogo para Foster são as condições de possibilidade de um discurso crítico cujos fundamentos em larga medida coincidem com o próprio advento (em fins do século XVIII) do historicismo – precisamente os fundamentos que a arte dos anos 1960 pôs em xeque. Quer dizer, diferentemente do que ocorre com boa parte da práxis artística dos anos 1960 e 1970, Foster pretende salvaguardar a prática crítica tradicional. Como? Dotando-a de um vocabulário conceitual “pós-histórico” (p. 25) não apenas operativo mas igualmente legitimável num ambiente de crescente desprestígio das “grandes narrativas” – as históricas, sobretudo2.

A solução encontrada por Foster lança mão do conceito de “neovanguarda”, compreendido aqui de modo idiossincrático, i.e., em termos da noção de “Nachträglichkeit” (“efeito a posteriori” ou, literalmente, “ação retardada”). Tomada de empréstimo à teoria psicanalítica, a noção supõe que “um evento só é registrado por meio de outro que o recodifica; só chegamos a ser quem somos no efeito a posteriori(Nachträglichkeit)”. Toda a argumentação de Foster parte pois da hipótese de que “a vanguarda histórica e a neovanguarda são constituídas de maneira semelhante, como um processo contínuo de protensão e retenção, uma complexa alternância de futuros antecipados e passados reconstruídos” (p. 46). Nessa perspectiva, supostamente cairia por terra o argumento (levantado por Peter Bürger em Teoria da vanguarda, contra o qual O retorno do realexplicitamente se volta)3 de que a arte dos anos 1960 se restringiria a uma repetição farsesca e acrítica das ações empreendidas pelas chamadas vanguardas históricas. Para Foster,ao contrário,a neovanguarda dos anos 1960 consistiria na plena efetivação daquilo que apenas de modo incompleto ou inacabado foi empreendido no início do século XX por movimentos como construtivismo, dadaísmo e surrealismo.

Obviamente, pode-se arguir o rendimento heurístico do modelo psicanalítico proposto por Foster, quer dizer, questionar em que medida ele constitui de fato um ganho de conhecimento sobre a arte dos anos 1960.Significativamente,a questão é levantada pelo próprio autor, o qual, numa nota de pé de página desconcertante, admite que “[a]inda que eu combine o desenvolvimento com o efeito a posteriori, minha extensão da (re)construção do sujeito individual até a (re) construção de um sujeito histórico é problemática”. Donde a dúvida: “Será que posso abordar historicamente a lógica do sujeito se meu modelo da história pressupõe essa lógica? Esse vínculo duplo seria produtivo ou paralisante”.

O fato de Foster ter ido adiante com seu modelo psicanalítico (sem o qual este livro não existiria) não dá por encerrada a questão. De fato, em termos epistemológicos, o livro apenas explicita os dilemas de uma geração de intelectuais progressistas que, tendo sido formada num ambiente francamente desconstrutivista, viu-se nos anos 1980 (ou seja, num contexto em que grassavam sem resistência institucional tanto Aids quanto Reaganomics) à procura de um aparato teórico porventura menos irrealista que o desconstrutivismo. A advertência de Foster acerca dos limites de sua própria empreitada intelectual, voluntariamente destinada a resgatar não todo e qualquer real, mas apenas a uma reconstrução subjetiva sua4, soa nesse sentido duplamente sintomática: por um lado, evidencia um incontido desejo de realidade; por outro, denuncia o mal-estar para com a própria noção de realidade – ao menos com relação àquelas noções de realidade que, advertidamente ou não, possam evocar uma referencialidade minimamente estável. Mais do que um dilema, a posição de Foster expõe a condição porventura aporética do projeto pós-pós-modernista, do qual Foster é um avatar. Significativamente, no capítulo final de O retorno do real, Foster se pergunta acerca das desconstruções operadas por Foucault e Derrida: “Esses pós-estruturalismos reelaboram os acontecimentos do pós-colonial e do pós-moderno criticamente? Ou servem de ardis por meio dos quais esses acontecimentos são sublimados, deslocados ou, ao contrário, desativados?” (p. 199). Enredado numa espécie de limbo epistemológico, Foster – como muitos de nós, aliás – procura abrigo num mundo pós-transcendental particularmente inóspito a desconstrutivistas não irrealistas e sobretudo não pluralistas (avessos portanto ao “falso pluralismo do museu, do mercado e da academia pós-históricos” [p. 7]).

O que a solução proposta por Foster revela, no entanto, é um vício de origem – qual seja, a suposição de que, como queria Bürger, a arte dos anos 1960 caracterizar-se-ia por um resgate (aos olhos de Bürger, acrítico e anacrônico, aos de Foster, deliberado e pertinente, porquanto produto de uma inusitada e lúcida “consciência histórica”) de práticas próprias às “vanguardas históricas”. De fato, nas palavras de Foster, “os artistas da década de 1960 tiveram de elaborar [os procedimentos da vanguarda histórica] criticamente; a pressão da consciência histórica não permitia nada menos do que isso” (p. 25). Este, de fato, o pressuposto não problematizado de O retorno do real: dar por suposto (contra inúmeras evidências de que o que de fato caracteriza a arte dos anos 1960 não é em absoluto o predomínio de uma consciência histórica, senão a emergência e disseminação de uma consciência meta ou anti-histórica) que a questão crucial para a neovanguarda seria “remodela[r] procedimentos da vanguarda para fins contemporâneos” (p. 8). Como se vê, a divergência de Bürger é apenas parcial, a diferença residindo no modo como um e outro interpretam um mesmo fenômeno, Bürger condenando-o, Foster exaltando-o.

Os limites insuperáveis de O retorno do real vêm daí. A começar pela evidente dificuldade do autor de dar conta da arte com a qual, aparentemente, tem maior empatia – o minimalismo. Pois se de um modo ou de outro o minimalismo (mas também uma parte importante da arte produzida em sua esteira) põe em xeque a ideia de vanguarda (em função justamente da consciência de seus vínculos com a visão de mundo historicista), Foster se revela incapaz de conceber quaisquer práticas artísticas “ambiciosas” que não sejam igualmente “avançadas” ou “inovadoras” (passim), ou seja, que não suponham a noção de “desenvolvimento histórico”. Dito de outro modo, o que Foster não parece estar pronto a conceber (a exemplo de Bürger) e mais ainda aceitar é – parafraseando T.J. Clark – uma arte sem futuro5. Donde o descompasso: ali onde uma parte significativa da arte dos anos 1960 e 1970 buscava conjurar uma experiência temporal meta-histórica (em cujo contexto o conceito de vanguarda simplesmente não faz sentido), Foster se empenha a todo custo em preservar a ideia e o valor não apenas da vanguarda, mas acima de tudo de uma historicidade supostamente inerente à arte – em suas palavras, a “historicidade de todas as artes, incluindo a contemporânea” (p. 33). De par com essa historicidade essencial, o que Foster pretende salvaguardar é a criticalidade da arte – mais especificamente, a criticalidade histórica da arte. Uma vez mais, estamos diante de uma posição axiomática. Pois, aos olhos de Foster, simplesmente não há criticalidade num ambiente em que predomina a “desatenção à historicidade” e no qual, portanto, a crítica resulta marcada pela “perda de influência histórica” (p. 13).

Os pressupostos modernistas dessa salvaguarda da historicidade da arte (e com ela de uma crítica baseada num conceito supostamente renovado de “desenvolvimento histórico”, não mais progressista e teleológico) são evidentes: com a noção de neovanguarda o que se quer preservar é uma tradição: a tradição do novo, i.e., de uma ideia de arte segundo a qual,como afirmou um de seus mais influentes praticantes – Harold Rosenberg –, “ter um lugar na história da arte é o valor”6.

Obviamente, Foster não há de concordar com essa leitura; de toda evidência, ele está convencido de que seu modelo alternativo de desenvolvimento histórico foi de fato capaz de complexificar categorias fundamentais como “causalidade”, “temporalidade” e “narratividade” (cap. 1, passim), e, assim, superar o modelo historicista de desenvolvimento, na qual a narrativa modernista se baseia. Até onde percebo, no entanto, o que Foster logrou superar não foi propriamente o modelo historicista, mas uma versão bastante simplória deste.

Não que Foster ignore a complexidade dos problemas teóricos com os quais está lidando aqui. Notadamente, o autor está a par da centralidade que aqui adquire a noção de evento – o fato de que, como adverte Zizek, uma das referências teóricas de O retorno do real, “o ponto crucial aqui é o status modificado do evento”7. Mas aqui também fica claro como o diálogo com Bürger resultou pouco produtivo. Pois a noção de evento que Foster pretende complexificar, tomada emprestada de Bürger, não vai muito além daquela que subjaz à boutade marxiana de que “todos os grandes acontecimentos da história mundial ocorrem duas vezes, a primeira como tragédia, a segunda como farsa” (p. 32). A escolha de Foster é curiosa – mesmo de parte um intelectual marxista; surpreende sobretudo que Foster tome como contramodelo uma noção tão estereotipada de evento histórico – noção que ignora a evidência de que o traço principal da noção de evento no contexto do historicismo não é nem a originalidade nem a autonomia, senão, conforme a formulação de Reinhart Koselleck, o fato de estar sempre pronto a “alterar sua identidade em função do status cambiante que adquire no progresso da história”8. Nessa perspectiva, fica claro como a noção de evento que Foster deriva de Marx (na qual, em parte pelo menos, se baseiam os realismos de um e de outro) deixa de lado a questão central do significado dos eventos num contexto epistemológico (o historicismo) comandado pela noção de “processo” – mais especificamente, por um processo que, como percebeu Hannah Arendt, “torna por si só significativo o que quer que porventura carregue consigo, adquirindo assim um monopólio de universalidade e significação”9. A suposição de que Foster logrou complexificar as noções de evento e, por conseguinte, de desenvolvimento histórico é, como se vê, enganosa. O que Foster complexificou foi um par de estereótipos.

A opção de Foster por operar a partir de tal contramodelo não é injustificada, contudo; ela se adéqua à perfeição a uma argumentação que pretende requalificar historicamente as neovanguardas, vistas não mais como repetição farsesca mas, alternativamente, como plena realização histórica. Uma vez mais, fica claro quão limitada é a divergência de Bürger. Pois a leitura de Foster permanece atravessada pelas noções – e, além dessas, pelos valores – tipicamente modernistas de autenticidade e originalidade. Afinal, o que Foster pretende sustentar por meio de seu modelo alternativo de desenvolvimento senão a tese de que as neovanguardas não são farsescas e espúrias? A argumentação de Foster é, de fato, sem ambiguidade: se as neovanguardas repetem eventos históricos, isso se deve ao fato de que, de acordo com o conceito de “efeito a posteriori”, sua primeira manifestação/ocorrência se restringiria apenas a uma dimensão incompleta, reprimida. Em vez de mera repetição, sua segunda ocorrência nos anos 1960 seria portanto da ordem do desrecalque de algo que por trinta, quarenta anos havia permanecido reprimido. O que a teoria de Foster sustenta, portanto, é a ideia de que, em sua integridade e plenitude, as ações retardadas da neovanguarda constituem um evento histórico autêntico, original, verdadeiramente vanguardista. Ora, mas uma posição de fato meta-historicista não deveria, ao contrário, simplesmente descuidar das noções de autenticidade e originalidade, não obstante os enormes problemas que esse deslocamento coloca para um sistema de arte dependente – hoje como ontem – da ideia de vanguarda?

O que Foster não é capaz de conceber, em revanche, é uma história que não seja desenvolvimental, isto é, que não se oriente naturalmente em direção ao futuro – mais especificamente, a um futuro entendido como “horizonte de expectativa”, i.e., como campo aberto a transformações mais ou menos utópicas. Dito de outro modo, desenvolvimento é compreendido aqui não como categoria adstrita a um regime de historicidade específico (o historicismo), senão como condição antropológica e transistórica,e nesse sentido insuperável, da experiência temporal humana. Como se vê, o argumento em favor de uma “historicidade de todas as artes” tem uma origem definida.

Que a defesa de um marxismo renovado (em contraste com o marxismo alegadamente ossificado de Bürger) esteja no centro da reflexão de Foster não é, como se vê, fortuito: é sempre preservar a ação historicamente empenhada – isto é, a ação empreendida na e para a “História” – aquilo que está em jogo aqui. Para Foster, afinal, prática artística ambiciosa é também, necessariamente, prática engajada. Dito de outro modo, aos olhos de Foster o que cabe à práxis artística não diverge muito do que cabe à ação política: viver no front da História, fazer com que esta avance, combater a ameaça de estagnação. O pressuposto tem, é claro, um desdobramento no âmbito da crítica: se não se faz arte ambiciosa fora da História, o mesmo se dá com respeito à crítica. Esta, de fato, a função precípua, e a decorrente legitimidade, da crítica modernista (mas também, como se vê, da crítica supostamente pós-modernista de Foster), cuja principal incumbência, na prática, é de fato a atribuição da situação histórica das obras, quer dizer, a definição do lugar preciso ocupado pelas obras de fato avançadas e inovadoras em cada etapa do “desenvolvimento histórico”. Tanto quanto a práxis artística, a atividade crítica deve pois obedecer ao preceito de que “a compreensão histórica não depende do apoio contemporâneo, mas um engajamento no presente, seja artístico, teórico e/ou político, é indispensável” (p. 11).

Mas, repare-se: tanto quanto o “engajamento no presente”, o argumento supõe um “presente” definido essencialmente como tempo e espaço de “engajamento”, quer dizer, como tempo e espaço de uma ação historicamente engajada e transformadora. Ora, como destacou Hans U. Gumbrecht, tal concepção do presente é um dos pressupostos mais básicos, ainda que tácitos, do historicismo. Segundo Gumbrecht, é de fato apenas no contexto do regime temporal historicista que “em cada momento presente, o sujeito deve imaginar uma gama de situações futuras que têm de ser diferentes do passado e do presente e dentre as quais ele escolhe um futuro de sua preferência”; é apenas nesse contexto que a “subjetividade pode integrar o componente de ação na autoimagem que ela oferece à humanidade. E é essa inter-relação entre tempo e ação que cria a impressão de que a humanidade é capaz de ‘fazer’ sua própria história”. Coerentemente, é também apenas nesse contexto que o tempo, compreendido como agente absoluto de mudança, “dá à inovação o rigor de uma lei compulsória”10. Como fica claro, modernismo e consciência histórica (mas também marxismo) são astros de uma mesma constelação epistemológica, em cujo centro jaz o regime de historicidade historicista. O que tal evidência expõe é o tamanho dos desafios que a crise do historicismo coloca para a crítica “progressista”. Pois o que está em jogo neste caso é nada menos do que a viabilidade não apenas de uma esquerda sem futuro (nas palavras de Clark, uma esquerda apta a “não ver uma forma ou uma lógica – um desenvolvimento desde o passado até o futuro”, e que portanto diz adeus às “reflexões [afterthoughts] e imagens da vanguarda”)11, mas de uma esquerda historicamente desengajada, ou pelo menos eventualmente disposta a engajar-se numa concepção alternativa de história. Não por acaso, Foster conclui O retorno do real indagando-se em que medida um sujeito pós-moderno disfuncional (o sujeito “suspenso entre a proximidade obscena e a separação espetacular”) não se limitaria a obedecer à lógica de “uma razão cínica [que] não elimina mas renuncia ao poder de ação [agency]” (p. 206).

Que o apego de Foster à episteme modernista/historicista constitui tanto a marca registrada quanto os limites de O retorno do real fica evidente na afirmação de que Michael Fried (como se sabe, o grande detrator do minimalismo)12 “é um excelente crítico do minimalismo não porque tem razão em condená-lo, mas porque, para ser persuasivo, tem de entendê-lo, e isso significa entender sua ameaça ao modernismo tardio” (p. 66). A tese é absurda; Fried jamais compreendeu o minimalismo, fenômeno que ele – como tantos outros depois dele, aliás – se restringia a ver do ponto de vista de sua suposta objetidade literal, uma visão que, como destacou Anne M. Wagner, é francamente reducionista13. O que tal afirmação deixa claro, no entanto, é a afinidade entre os fundamentos vanguardistas (e portanto modernistas/ historicistas) das práticas críticas de Fried e Foster.

Não surpreende, nesse sentido, que, não obstante a ressalva que faz à ênfase excessivamente fenomenológica que Rosalind Krauss dá ao minimalismo14, Foster tenda sempre a ver o minimalismo como expressão essencialmente fenomenológica e de tipo site specific (específico do lugar) – em suas palavras, como uma arte na qual o espectador “é instigado a explorar as consequências perceptivas de uma intervenção particular num determinado local [site]. É esta reorientação fundamental que o minimalismo inaugura” (p. 53). Que tal definição (afeita à obra tipicamente antiminimalista do segundo Robert Morris, mas também aos objetos e operações fenomenológicos de um Richard Serra) implica uma redução absurda do significado da obra crucial de Donald Judd é uma das consequências do enviesamento conceitual/ ideológico de Foster. Que ela não acomode, ou acomode de modo canhestro, no espaço minimalista a obra essencialmente antifenomenológica e anti-site specific de Robert Smithson, é outro. Numa chave psicanalítica, pode-se dizer que, em sua busca pelo desrecalque do real, Foster acabou reprimindo o real minimalista – algo, aliás, que Joseph Kosuth já havia destacado com respeito às construções historiográficas perpetradas ainda nos anos 1970 pelo grupo de críticos ao qual Foster está ligado, a começar por Krauss. De fato, como afirmou Kosuth, “a fácil assimilação do minimalismo no mainstream como mais um tipo de forma na história da escultura constitui basicamente a limpeza [cleansing] de seu peso filosófico”15.

Nada disso diminui a importância de O retorno do real. Publicado originalmente em 1996, mas contendo partes fundamentais apresentadas ainda em meados dos anos 1980, o livro deixa claro como as questões levantadas pela arte dos anos 1960 ainda pautam, e em grande medida assombram, a arte e a crítica atuais. Nesse sentido, a importância do livro está menos em seus achados que no modo como revela, ainda que involuntariamente, os desafios e dilemas que a crise do conceito moderno de história coloca para o pensamento crítico (ou metacrítico) contemporâneo, o de Hal Foster inclusive. Em tempo: a presente edição conta com tradução de Célia Euvaldo, especialmente eficaz na manutenção da fluidez da leitura16.

Notas

1 SMITHSON, Robert. “Ultramodern”. Arts Magazine, v. 42, nº 1, set.- out. 1967, p. 31. Minha tradução.

2 LYOTARD, JF. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.

3 BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: CosacNaify, 2008.

4 “Reprimido por numerosos pós-estruturalismos, o real retornou, mas como real traumático” (p. 46, n. 38). Em sua formulação original, tal restrição era ainda mais rigorosa: “Reprimido por vários pósestruturalismos, o real retornou – mas não um real qualquer, apenas o real traumático”. Foster, Hal. “What’s new about the neoavantgarde?”October, v. 70, outono 1994, p. 29. Minha tradução.

5 CLARK, T.J. Por uma esquerda sem futuro. São Paulo: Ed. 34, 2013.

6 ROSENBERG , Harold. “O novo como valor”. In: ___. Objeto ansioso. São Paulo: CosacNaify, 2004.

7 ZIZEK, Slavoj, apud Foster, p. 46, n. 42. Minha tradução.

8 KOSELLECK, ReinhartFuturo passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Contraponto, 2006.

9 ARENDT, Hannah. “O conceito de história: antigo e moderno”. In: ____. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 96.

10 GUMBRECHT, Hans U. “Cascatas de modernidade”, In: ___. Modernização dos sentidos. São Paulo: Ed. 34, pp. 15-16.

11 CLARK, T.J., op. cit. Minha tradução.

12 Cf. FRIED, Michael. “Arte e objetidade”. A/E Revista da Pós-Graduação em Artes Visuais, Rio de Janeiro, EBA-UFRJ, 2002, pp. 130-147.

13 WAGNER, Anne M. “Reading minimal art”. In: BATTCOCK, GregoryMinimal art: a critical anthology. Berkeley: University of California Press, 1995.

14 Ver, em especial KRAUSS, Rosalind. “Sense and sensibility: reflection on post ‘60s sculpture. Artforum, v. 12, nº 3, nov. 1973, pp. 43-53.

15 KOSUTH, Joseph, “History for”. Flash Art, Milão, nº 143, nov.-dez. 1988, p. 101. Minha tradução.

16 Agradeço a leitura e os comentários de Marcelo G. Jasmin, Felipe Charbel e Henrique Estrada.

Otavio Leonidio – Arquiteto, doutor em História, professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio.

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Mímesis e a reflexão contemporânea – COSTA LIMA (HH)

COSTA LIMA, Luiz (org.). Mímesis e a reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010, 260 p. Resenha de: ARAÚJO, Nabil. Teorizar a mímesis contemporaneamente. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 6, p.204-212,  março 2011.

Tomado como aquilo que mais imediatamente se propõe a ser – uma coletânea de textos contemporâneos sobre a mímesis –, o livro Mímesis e a reflexão contemporânea, ou, antes, os quatro textos de autores diversos que compõem o volume deveriam ser avaliados no que concerne (a) seja à sua conformação ao objeto de reflexão então em foco: o fenômeno ou a problemática da mímesis, (b) seja à “contemporaneidade” da abordagem que empreendem de um tal objeto (a menos, é claro, que se tome por contemporânea simplesmente toda e qualquer abordagem temporalmente próxima a nós).

Isso posto, seria preciso reconhecer que, se os três primeiros textos da coletânea – “Nascimento de imagens” (1979), de Jean-Pierre Vernant; “‘Imitação da natureza’: contribuição à pré-história da ideia do homem criador” (1957/ 1981), de Hans Blumenberg; “Mímesis em Aristóteles e nos comentários da Poética no Renascimento: da mudança do pensamento sobre a imitação da natureza no começo dos tempos modernos” (1998), de Arbogast Schmitt – colocam, inequivocamente, a problemática da mímesis no centro de suas preocupações, o fazem não de uma perspectiva eminentemente teórica (isto é, de alguém que buscasse, se não erigir uma nova teoria, ao menos formular um posicionamento teórico próprio e, nesse sentido, contemporâneo da problemática da mímesis), mas de uma perspectiva muito próxima à da tradicional história das ideias (isto é, com a objetividade e o distanciamento típicos do pesquisador que pretende reconstituir fidedignamente um certo pensamento ou percurso conceitual) – ainda que, nos três casos, com uma admirável competência filológica aliada a um consistente background filosófico.

Por sua vez, o quarto e último texto – “O processo de dissimulação: ‘O silêncio das sereias’, de Kafka” (1993), de David Wellbery – apenas tangencia a problemática da mímesis ao enunciar, no âmbito da leitura que empreende do texto de Kafka, a formulação de uma “mímesis apotropaica da diferença, no texto inscrita” (WELLBERY 2010, p. 211). Por outro lado, em nenhum dos textos da coletânea mais do que nesse a contemporaneidade da abordagem se faz sentir, sobretudo no modo como o autor, na articulação de sua leitura do texto kafkiano, mobiliza um certo vocabulário teórico-crítico – “autorreferência”, “indeterminabilidade”, “paradoxo”, “figura paradoxal do texto”, “indecidibilidade”, “diferença”, etc. – facilmente identificável ao que se convencionou chamar, a partir dos anos 1980, nos EUA, de crítica “desconstrucionista”. Descontado, portanto, o texto de Wellbery em função de sua especificidade, a relevância da coletânea residiria no amplo painel histórico por ela oferecido do desenvolvimento da teoria mimética no mundo ocidental, de sua emergência, na Grécia clássica, ao limiar de sua suplantação, na modernidade.

No primeiro texto da coletânea, Vernant deixa-se guiar pela seguinte questão de fundo histórico-psicológico: “Em que medida os gregos antigos conheceram uma ordem de realidade correspondente ao que chamamos de imagem, imaginação, mundo do imaginário?” (VERNANT 2010, p. 51). Em seu esforço de elucidação, Vernant elege a obra de Platão como corpus privilegiado de investigação, vendo nela um ponto de inflexão decisivo na cultura grega antiga, posto ser Platão o autor que, pela primeira vez, reúne “em um mesmo grupo os mais diversos tipos de produções imagéticas para apresentar uma teoria geral unificada, organizando-os em conjunto no quadro de uma mesma categoria de fenômenos, aqueles que se vinculam, quaisquer que sejam suas diferenças, à mímesis, à imitação” (VERNANT 2010, p. 52) A conclusão a que chegará Vernant é a de que, por mais que a obra de Platão, signo maior do “momento em que o mundo das aparências toma corpo”, parecesse abrir caminho para o “desenvolvimento psicológico da imagem”, seria preciso esperar por um autor como Flávio Filóstrato (século II d. C.) para a identificação da phantasía como “uma imaginação não mais dependente da mímesis, mas oposta e superior a ela por conta de sua sophía” (VERNANT 2010, p. 86). O percurso investigativo ganha corpo, no texto de Vernant, por meio de uma leitura cerrada de textos-chave de Platão para a problemática da mímesis como República e Sofista, na qual competência filológica, background filosófico e sensibilidade historiográfica convergem no tratamento de certas questões essenciais quer para o filósofo, quer para o crítico ou teórico da literatura, quer para o historiador das ideias.[1] No centro delas, a questão da célebre distinção platônica entre a “boa” e a “má” imitação, em vista da qual o “nascimento de imagens” de que nos fala Vernant, isto é, o estabelecimento, com Platão, de uma teoria geral unificada das produções imagéticas (e de uma hierarquia epistemológica entre elas), acabaria por se confundir com o nascimento do próprio discurso filosófico ocidental.

“Retomada por Aristóteles”, lembra-nos Vernant (2010, p. 63), “a concepção platônica da mímesis, mais ou menos reinterpretada, exercerá, a partir do Renascimento, a influência que todos conhecemos sobre o desenvolvimento e a orientação da arte ocidental”. A expressão “que todos conhecemos” aponta para a existência de um senso comum a respeito da longue durée aí delineada, aquela que faz o predomínio da teoria mimética da arte e da literatura estender-se de sua emergência com Platão e Aristóteles à sua vigência hegemônica na Europa pós-renascentista (até sua derrocada com o colapso do regime neoclássico a partir de fins do século XVIII).

Os dois textos seguintes da coletânea incidem exatamente sobre esse senso comum. O primeiro o endossa e procura rastrear, ao longo do percurso aí descrito, o delineamento de certos posicionamentos que de alguma forma preparariam ou anunciariam a superação da teoria mimética ocidental por um referencial teórico-crítico francamente antimimético, dito moderno. O segundo o questiona e se esforça por mostrar que, na dita “reinterpretação” da concepção platônico-aristotélica da mímesis pelos comentadores renascentistas da Poética, a modificação terá sido tão drástica que melhor seria falar em duas concepções distintas, evitando o erro de subsumir retrospectivamente a concepção clássica (grega) na neoclássica (pós-renascentista).

Comentando a resposta aristotélica à pergunta “sobre o que o homem poderia produzir no mundo e do mundo, por sua força e destreza”: a formulação de que a “arte é imitação da natureza”, Blumenberg (2010, p. 87) observa que o termo grego para “arte” – tékhne – sintetiza “todas as habilidades humanas de operar e configurar […]: tanto o ‘artificial’ como o ‘artístico’”. Ele explica que, nessa perspectiva, natureza e “arte” são estruturalmente equivalentes, os traços imanentes de uma podendo ser conferidos na outra, e conclui que “assim está positivamente fundado que a tradição sintetize a definição aristotélica na fórmula ‘ars imitatur naturam’, como o próprio Aristóteles já o fizera” (BLUMENBERG 2010, p. 88). Blumenberg o afirma para, logo na sequência, constatar o fosso que separa da fórmula aristotélica o horizonte da modernidade, orientado que é pela “medição do espaço livre da liberdade artística”, pela “descoberta da ilimitação do possível contra a finitude do fático”, pela “dissolução da referência à natureza pela autoconcretização histórica do processo artístico, dentro do qual a arte é sempre gerada na e a partir da arte” (BLUMENBERG 2010, p. 89). Perguntando-se por que a “invenção” se torna “o ato significativo no mundo moderno”, por que ela “emerge imageticamente” nas obras de arte da modernidade, Blumenberg observa que a pergunta não pode ser respondida “se não se considera contra que o conceito moderno de homem foi levado a cabo”, e sinaliza: “O páthos veemente com que se atribuiu o caráter de criador ao sujeito foi mobilizado para enfrentar o axioma da ‘imitação da natureza’” (BLUMENBERG 2010, p. 91); ou ainda: “o páthos moderno da autêntica produção humana na arte e na técnica provoca a resistência contra a tradição metafísica da identidade entre ser e natureza, de que a determinação da obra humana como ‘imitação da natureza’ era a exata consequência” (BLUMENBERG 2010, p. 98). Diante dessa tese, torna-se indispensável, diz-nos Blumenberg (2010, p. 98), “uma pesquisa fundamentada da base histórica”; é o que ele buscará oferecer ao longo do texto, determinando, assim, “de modo mais preciso o espaço histórico em que essa oposição ocorre” (BLUMENBERG 2010, p. 91).

Procurando delimitar a concepção platônico-aristotélica da mímesis em sua ênfase na correspondência entre possibilidade e realidade, Blumenberg (2010, p. 105) afirma que ela “não admite que o homem possa atuar mentalmente de maneira originária. Ontologicamente, isso quer dizer: o existente não pode ser ‘enriquecido’ pela obra humana. […] na obra humana, nada essencialmente sucede”. O autor passa, então, em revista diversos momentos da história do pensamento ocidental em busca de modificações ou deslocamentos significativos que apontariam para uma saída desse estado de coisas, rumo a uma visão renovada da arte e de sua relação com o “real” e o “possível”: o helenismo, o estoicismo, o pensamento cristão medieval (Agostinho, Pedro Damian, Alberto Magno, Tomás de Aquino, Boaventura, Guilherme de Ockham, Nicolau de Cusa), desembocando no horizonte da modernidade com Descartes e Leibniz. Com Descartes, afirma Blumenberg (2010, p. 129), “a filosofia se converte na sistemática do possível; a realidade do ser torna-se agora compreendida a partir da possibilidade do ser”. “O homem ‘escolhe’ seu mundo, como Deus escolheu, a partir do possível, o mundo a criar” (BLUMENBERG 2010, p. 130). Blumenberg observa que Leibniz tentará condensar harmonicamente esses mundos possíveis, equilibrando a pressão das possibilidades infinitas. Quando, entretanto, em meados do século XVIII, o otimismo metafísico leibniziano desmorona, resta o horizonte da infinidade dos mundos possíveis, posto em contato com a representação do poeta criador apenas em 1740, por J. J. Breitinger (Critische Dichtkunst) e J. J. Bodmer (Critischen Abhandlung von dem Wunderbaren in der Poesie). Com o aguçamento, no século XIX, de seu caráter factual, a natureza acabará por figurar como “a encarnação dos produtos possíveis da técnica”, e, assim, como a própria antípoda da arte-como-criação, tornando-se odiosa aos olhos do artista moderno. “Só agora se pode apreciar a significação positiva propiciada pela dissolução da identidade entre ser e natureza”, sentencia, com efeito, Blumenberg (2010, p. 134), na conclusão de sua “contribuição à pré-história da ideia do homem criador”.

Arbogast Schmitt abre seu ensaio com um longo trecho do texto de Blumenberg. Ao comentá-lo, critica o autor por reiterar “uma communis opinio, cada vez mais extensa, que vê formar-se, entre Aristóteles e o século XVIII, uma ampla conexão no entendimento da arte e da poesia, contra a qual a modernidade se levantou, pelo desdobramento do conceito de uma subjetividade criadora” (SCHMITT 2010, p. 139) Esse senso comum seria criticável por ignorar a especificidade da teoria poética platônico-aristotélica frente à sua interpretação (deturpação?) renascentista. Reconhece-se, assim, que “a formulação de Aristóteles por Blumenberg deva ao menos deformar algo para que fundamente a tese de que, para Aristóteles, a arte é basicamente imitação da natureza” (SCHMITT 2010, p. 139). Schmitt se esforçará, então, para refutar o referido senso comum, procurando restituir a integridade da concepção aristotélica da mímesis em contraste com a concepção renascentista de imitação poética.

Partindo da análise das “opiniões filosóficas básicas” (SCHMITT 2010, p. 152) subjacentes a cada uma das concepções em questão, Schmitt definirá, nos seguintes termos, a diferença essencial entre ambas no que concerne à problemática da representação e da verossimilhança: O pensamento de Aristóteles é consideravelmente mais universal: o poeta deve apresentar o que, por atos e palavras, decorre de uma certa condição de um homem, com verossimilhança e necessidade; ou melhor, que condição interna de um indivíduo se manifesta quando ele diz ou faz algo. O poeta deve apresentar qual é o universal de um homem, o que subjaz à quantidade imprevisível de suas ações como uma disposição interna dele característica e a ele cabível. A distinção quanto aos “tipos” da poética normativa está em que tais tipos são extraídos da empiria, são articulações típicas de um traço de caráter de uma certa espécie de indivíduo, ao passo que Aristóteles não subordina o poeta a uma “tipificação”. Isso leva a que o número de “tipos” não aumente indefinidamente, enquanto o universal do poeta, para Aristóteles […], sempre pode ter uma nova formulação (SCHMITT 2010, p. 168).

Assim sendo, a excitação contra a frase “a arte imita a natureza” não se dirigiria a Aristóteles, “mas à recepção renascentista do filósofo grego” (SCHMITT 2010, p. 188). Schmitt conclui enfatizando que o objetivo de sua pesquisa foi o de “tornar plausível que a restrição da poesia pelo que está dado não é o resultado da história de dois mil anos do pensamento da imitação, senão que o produto de uma mudança específica do conceito de imitação no início dos tempos modernos” – o que levaria a que o princípio da imitação ainda compreendesse “outras possibilidades muito diversas” (SCHMITT 2010, p. 189).

*** Do texto introdutório a um livro dessa natureza não se esperaria muito mais do que uma apresentação sumária dos autores então contemplados (sobretudo por se tratar de nomes estrangeiros, em sua maioria pouco difundidos no Brasil) e algum tipo de resumo do conteúdo dos textos, a funcionar como convite à leitura dos mesmos. Isso, é claro, se o organizador do livro e autor de sua “Introdução geral” não fosse ninguém menos do que Luiz Costa Lima, nome maior da teoria da literatura no Brasil, conhecido sobretudo por seu esforço pessoal de repensar a mímesis como fenômeno constitutivo da experiência estética, empreendimento que se estende já por três décadas de pesquisa, ensino e publicações. Costa Lima não deixa de fornecer, é certo, uma justificativa plausível para seu projeto de uma coletânea sobre a mímesis nem uma apresentação mínima dos autores e dos textos por ele então editados (todos, aliás, com exceção de um, traduzidos pelo próprio Costa Lima); mas o grande diferencial da introdução que nos oferece é o modo como ela logra reconfigurar a coletânea em função da maior ou menor relevância de cada um dos textos em vista do empreendimento teórico do próprio Costa Lima. Nesse sentido, autores ausentes, que deveriam ter sido incluídos na coletânea mas não foram – caso de Theodor Adorno e de Jacques Derrida –, acabam mesmo por adquirir um peso maior do que autores efetivamente incluídos na coletânea, como Vernant ou Wellbery. A parte da introdução referente a Vernant (COSTA LIMA 2010, p. 11-12) sequer é do próprio Costa Lima (mas do professor José Otávio Nogueira Guimarães, tradutor de “Nascimento de imagens”); ao ensaio de Wellbery sobre Kafka, Costa Lima reserva apenas o último parágrafo da longa introdução, remetendo o leitor interessado ao capítulo de um livro seu em que se ocupa criticamente do referido ensaio. O texto de A. Schimitt justificarse- ia por preencher a “lacuna de, entre nós, quase se desconhecer a poetologia renascentista” (COSTA LIMA 2010, p. 23). Blumenberg, por sua vez, é o autor em que recai o maior interesse de Costa Lima. A Adorno e a Derrida, “os autores que havíamos pensado em incluir nesta coletânea e dela terminaram excluídos”, autores de cujas contribuições “uma reflexão sobre a questão da mímesis no pensamento contemporâneo não poderia prescindir” (COSTA LIMA, 2010, p. 23), Costa Lima dedica uma “síntese introdutória” de vinte páginas, que ocupa metade de toda a introdução.

Atendo-se à declarada finalidade maior do texto de Costa Lima, a saber: “assinalar como a questão da mímesis adere ao próprio questionamento epistemológico contemporâneo” (COSTA LIMA 2010, p. 10-11), pode-se divisar aí o delineamento de uma dicotomia entre posicionamentos diametralmente opostos, epitomados, no caso, em Blumenberg, o primeiro, e em Derrida, o segundo (com Adorno ocupando uma posição intermediária entre os dois, ainda que, ao lado da de Derrida, igualmente insatisfatória para Costa Lima). Um ponto de contato possível entre Blumenberg e Derrida, e aquilo mesmo que pareceria opô-los radicalmente, é o interesse pela questão da metáfora: “em Derrida, a metaforicidade incessante, provocadora do privilégio da experiência estética, por ser ela a única que não escamoteia a différance – isto é, o postergar incessante da conclusão de um enunciado qualquer –, não se confunde com a posição de Blumenberg” (COSTA LIMA 2010, p. 21). E ainda: Se este propõe uma metaforologia, que, de fato, rompe com a sinonímia entre razão e conceito e, daí, com a epistemologia piramidal dos tempos modernos, tendo a ciência em seu ápice, por outro lado, […] se interessava pela questão da mímesis enquanto parte de uma área desprezada pela especulação clássica grega, a área da tékhne. […] ao passo que Derrida permanece filiado a uma espistemologia piramidal, a que desconstrói sem a perda de sua forma geométrica – a pirâmide deixa de ter como cume o conceito, o enunciado unívoco, para que tenha a disseminação incessante de um metafórico interminável –, temos em Blumenberg uma reflexão sobre as diferentes formas de linguagem, em que se reconhece a igual legitimidade de funções diferentes cumpridas pelos mais diferentes discursos. A crítica da posição oferecida ao conceito não significa que seu lugar venha a ser ocupado por seu oposto (COSTA LIMA 2010, p. 21-22).

Como se vê, na dicotomia postulada por Costa Lima, o posicionamento blumenberguiano de ruptura com a “epistemologia piramidal dos tempos modernos”, de reconhecimento da legitimidade das diferentes formas de linguagem e das diferentes funções por elas desempenhadas – encontrandose, nesse sentido, o discurso mimético lado a lado (e não abaixo ou acima) do discurso conceitual – seria claramente preferível ao suposto posicionamento derridiano de mera inversão da hierarquia piramidal moderna, pela qual o cume deixa de ser ocupado pelo conceito, ora rebaixado, para ser ocupado pela metáfora (ou pela “metaforicidade incessante”), outrora rebaixada. Essa alegada inversão hierárquica em Derrida, a metaforicidade passando a vigorar sobre a conceitualidade, não deixaria de implicar a própria dissolução da diferença entre os discursos, ou, para citar Costa Lima (2010, p. 41): “a desconstrução da concepção clássica de metáfora provoca a quebra da separação entre o filosófico e o poético”.2 Costa Lima se contrapõe, em suma, “à identificação derridiana 2 Adorno ocuparia, nesse sentido, uma posição intermediária, em que o privilégio concedido ao “artístico” como portador de uma dimensão crítica frente ao “ideológico” não exclui, antes demanda, o trabalho interpretativo da filosofia, com o qual, contudo, não se confunde.

entre as funções filosófica e poética do uso da palavra”, declarando “a impropriedade de se igualarem uso filosófico e uso poético, pois pertencentes a formas discursivas distintas […]” (COSTA LIMA 2010, p. 40).

Costa Lima não terá sido o primeiro, é certo, a imputar a Derrida uma suposta inversão da hierarquia entre conceitualidade e metaforicidade – ou entre lógica e retórica –, cujo corolário principal seria a dissolução da diferença entre discursos, a equiparação entre filosofia e poesia. O que já não parece mais admissível, sob o risco de uma reencenação involuntária de equívocos passados, é ignorar o corpus considerável de declarações do próprio Derrida em sentido contrário àquilo que se lhe quer então atribuir, sobretudo a partir de sua célebre polêmica com Habermas na década de 1980, motivada justamente pela acusação habermasiana a Derrida de “nivelamento da diferença de gênero entre filosofia e literatura”.

Para retomar a imagem da pirâmide epistemológica moderna empregada por Costa Lima, seria preciso reconhecer, em função de uma visão de conjunto do vasto corpus textual que nos legou Derrida, de suas deliberadas manifestações de repúdio à acusação de “nivelamento” das diferenças discursivas, que o empreendimento desconstrutivo, longe de meramente inverter hierarquias epistemológicas, incidiria, antes, justamente sobre o que se poderia chamar a “lógica piramidal” em seu funcionamento. Se, de fato, é ainda no interior da pirâmide que o trabalho da desconstrução tem lugar (e não foi, aliás, esse trabalho, mais do que qualquer outro em nosso tempo, o que nos ensinou a desconfiar de toda declarada “ruptura”, de toda declarada “superação” do que quer que seja?), um tal trabalho não pressupõe muito menos procura promover nenhum tipo de estabilidade piramidal, seja a que um certo status quo filosófico procuraria resguardar em vista da manutenção de sua hegemonia epistemológica e institucional, seja a vislumbrada por alguma suposta tentativa de inversão hierárquica a destituir o discurso dito conceitual de sua posição hegemônica; um tal trabalho procurará revelar, na verdade, a dinâmica intrínseca à própria disputa pelo topo da hierarquia piramidal, pela hegemonia epistemológica e institucional. Não há, em suma, hierarquia piramidal sem conflito hierárquico, ainda que latente. Em vista da aparente estabilidade piramidal, a desconstrução se pergunta pela escalada da pirâmide, pelo que teria permitido, enfim, àquela configuração hierárquica que se quer fazer passar por natural instituir-se em sua pretensa naturalidade. Por mais monolítica que pareça uma pirâmide, a hierarquia piramidal tem sempre uma história, e é pela historicidade da hierarquia epistemológica que se pergunta sempre a descontrução, o acontecimento desconstrutivo confundindo-se mesmo com um tal questionamento.

A bem da verdade, não há saída simples da pirâmide: é preciso aprender a se deslocar dentro dela, deslocando-a. Não se pode, pois, simplesmente reconhecer “a igual legitimidade de funções diferentes cumpridas pelos mais diferentes discursos”, como se, por um ato de vontade filosófica, o regime moderno de hierarquização epistemológica se visse definitivamente superado: não se superam as hierarquias simplesmente ignorando sua existência, simplesmente postulando a ruptura com a “epistemologia piramidal dos tempos modernos”. E o próprio gesto de atribuir legitimidade ao que quer que seja não pareceria pressupor, ele mesmo, algum tipo de hierarquia epistemológica? (A quem cabe, afinal, legitimar as “formas de linguagem”, as “funções discursivas”, e por quê? De que instância de legitimação se trata?) Uma teoria da mímesis, qualquer que seja ela, mesmo que venha a postular um regime discursivo-epistemológico “pós-piramidal” no qual os diferentes discursos e funções discursivas conviveriam lado a lado, não pode deixar de estar submetida, ela própria, como gesto teórico, ao tipo de disputa ou de conflito hierárquico para o qual aponta a desconstrução. Isso posto, não pareceria equivocado tomar como indicador principal da contemporaneidade de uma reflexão teórica o seu maior ou menor esforço em refletir, em si mesma, suas próprias condições (conflituais) de possibilidade.

Referências

BLUMENBERG, H. “Imitação da natureza”: contribuição à pré-história da ideia do homem criador. In: COSTA LIMA, L. (Org.) Mímesis e a reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. p. 87-135.

COSTA LIMA, L. Introdução geral. In: COSTA LIMA, L. (Org.) Mímesis e a reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. p. 7-49.

SCHMITT, A. Mímesis em Aristóteles e nos comentários da Poética no Renascimento: da mudança do pensamento sobre a imitação da natureza no começo dos tempos modernos. In: COSTA LIMA, L. (Org.) Mímesis e a reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. p. 137- 189.

VERNANT, J. P. Nascimento das imagens. In: COSTA LIMA, L. (Org.) Mímesis e a reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. p. 51-86.

WELLBERY, D. O processo de dissimulação: “O silêncio das sereias”, de Kafka.

In: COSTA LIMA, L. (Org.) Mímesis e a reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. p. 191-215.

[1] Sobre o modo como a formação acadêmica e as relações intelectuais de Vernant teriam influenciado o tipo de tratamento por ele dispensado a seus objetos de investigação, confira-se a esclarecedora entrevista com o autor realizada pelo professor José Otávio Nogueira Guimarães e que se encontra no final da coletânea, na qual Vernant se manifesta sobre sua relação com três de seus colegas no Collège de France: Dumézil, Lévi-Strauss e Foucault.

Nabil Araújo – Doutorando Universidade Federal de Minas Gerais nabil.araujo@gmail.com Rua Curvelo, 58/15 – Floresta 31015-172 – Belo Horizonte – MG Brasil.

Urdidura do Vivido: Visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque de Holanda nos anos 1950 – NICODEMO (HH)

NICODEMO, Thiago Lima. Urdidura do Vivido: Visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque de Holanda nos anos 1950. São Paulo: EdUSP, 2008, 248 p. Resenha de: MONTEIRO, Pedro Meira. Permanência e mudança: em torno de Sérgio Buarque de Holanda. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 6, p. 221-227, março 2011.

Urdidura do Vivido, de Thiago Lima Nicodemo, é uma contribuição fundamental à fortuna crítica de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982). Tratase do primeiro livro dedicado, inteiramente, a Visão do Paraíso, obra-prima do historiador, publicada como tese, em 1958, e, no ano seguinte, na forma de livro.

A escolha de uma palavra rara no título (“urdidura”) revela, inicialmente, um leitor atento às sugestões da obra buarquiana: aquilo que se urde é o reflexo de uma imaginação voltada para os espaços móveis e cambiantes, indefinidos e porosos, que constituem o centro das preocupações de Sérgio Buarque. Assim, indica-se o leque metafórico aberto pelos títulos de seus livros e ensaios produzidos depois de Raízes do Brasil, a partir da década de 1940: caminhos, fronteiras, veredas, redes, todos evocando a fluidez de territórios refratários à cristalização, através dos quais ideias e técnicas conjugam-se, confrontam-se e adaptam-se “com a consistência do couro, não a do bronze”, para lembrar uma passagem célebre de Monções, de 1945.

A ideia de um espaço em que o vivido é urdido, tramado, submetido a uma amarração singular e sempre passível de novas combinações, sugere também que Thiago Nicodemo deve muito – como aliás todos os que nos dedicamos ao estudo da obra buarquiana – às reflexões de Maria Odila Dias, para quem o problema da permanência e da mudança é central. Como fixar, com as palavras, um universo que, entregue a um fluxo complexo como os que estão presentes nos estudos históricos, é em si mesmo contrário à fixidez? Essas e outras questões são abordadas pelo livro de Thiago Nicodemo, que revisita, por meio de um criterioso trabalho de pesquisa, o terreno híbrido no qual se pode situar a obra de Sérgio Buarque. Ainda no plano das condições de produção de um estudo como este, vale lembrar que, na década seguinte à morte do autor de Visão do Paraíso, abriram-se as sendas para que os estudiosos prestassem atenção à indissociabilidade entre o historiador e o crítico literário.

A publicação de Capítulos de Literatura Colonial, em 1991, e da crítica literária esparsa, com O Espírito e a Letra, de 1996, por iniciativa, respectivamente, de Antonio Candido e Antonio Arnoni Prado, permitiu sondar a zona em que os dois campos – a análise histórica e a literária – dialogam, constituindo um objeto singular, apontando para os problemas comuns da permanência e da mudança. Em outros termos, trata-se de avaliar aquilo que é irredutível, compreensível apenas em certo tempo e espaço, e aquilo que parece escapar em direção a outros tempos e espaços, reduzindo-se a fórmulas que atravessam as fronteiras para reaparecer aqui e ali, sem que saibamos, num primeiro momento, qual a sua proveniência. A questão fundamental, que constitui o cerne da investigação de Urdidura do Vivido, é o balanço irresolúvel entre a “vida”, de um lado, e a possibilidade de inscrevê-la no corpo de um conhecimento sem reduzi-la a uma fórmula morta e vã, de outro. Não à toa, estes são problemas comuns aos dois campos, e é de uma peculiar combinação entre o crítico e o historiador que nasce a escrita de Visão do Paraíso.

Urdidura do Vivido situa, em um quadro de largo alcance, o problema do rompimento com o passado, do momento em que se torna possível abandonálo.

Ou ainda, nos termos de Goethe, trabalhados por Thiago Nicodemo, tratavase da fantasia de que pudéssemos nos emancipar dele, livrando-nos do seu jugo para prometeicamente (ou fausticamente) avançar em direção ao futuro, finalmente liberados da tralha fantasmática que nos ata ao passado. Esse é o ponto de partida da análise, que recorda que o fazer histórico é, necessariamente, uma intervenção no tempo, conforme a croceana ideia de uma história sempre, inevitavelmente, “contemporânea”.

À medida que se avança na leitura de Urdidura do Vivido, aprende-se como, da escrita de Bloch à refundação moderna do romanismo em Curtius, encontra-se uma questão agônica, incompreensível sem que se considere a Segunda Guerra: a necessidade de não mais permitir que a história fosse um instrumento de manipulação ideológica. Nesse sentido é que o romanismo de Curtius surge como uma maneira de se imaginar um espaço europeu anterior aos nacionalismos mais estritos e restritivos, fundados em equívocas mitologias locais. Para se pensar em termos ainda mais amplos, Urdidura do Vivido permite lembrar que a própria ideia de uma civilização baseada na herança das línguas românicas era uma forma de reagir à atomização pela qual passara a Europa, postulando uma espécie de eixo central que organiza a cultura que viria a ser chamada “ocidental”. Assim, uma senda e uma pergunta abrem-se aos pesquisadores: como avaliar as leituras, fascinações e influências de Sérgio Buarque de Holanda a partir do fim da Segunda Guerra, em contraste àquilo que foram as leituras de sua fase “alemã” (1929-1930), para lembrar expressão de Antonio Candido também recordada por Thiago Nicodemo? O primeiro capítulo, intitulado “O Historiador Encontra o Crítico”, traz algumas pistas interessantes nessa direção, uma vez que se aprende, detalhadamente, como a tópica de Curtius, retrabalhada e “historicizada”, permitiu a Sérgio Buarque rebater o caráter ahistórico que ele repudiava nas análises “formalistas” (os anos 50 foram o tempo de glória do New Criticism), aliando, a um profundo senso de mudança, a possibilidade de pensar fórmulas retóricas e lugares literários que atravessam o tempo – como o serão as tópicas do paraíso terrenal estudadas nos textos de viajantes e cronistas.

Torna-se então fundamental perceber a gestação de Visão do Paraíso não apenas como possibilitada pelos anos que Sérgio Buarque passou em Roma (1952-1954), mas também por esse amplo debate, e pela tentativa de compreender que fórmulas à primeira vista atemporais são, na verdade, utilizadas dentro de quadros históricos específicos. Ademais, como lembra Thiago Nicodemo, as investigações de Sérgio Buarque foram, em certo momento, parte de um esforço coletivo pela compreensão da “história da literatura brasileira”, segundo o projeto capitaneado por Álvaro Lins, que teria Sérgio como responsável pelo segmento de “literatura colonial”. Nas pesquisas do historiador da literatura, portanto, começa a surgir a atenção pelo recorrente tema das delícias da terra, que jamais deveria ser confundido com um sentimento protonacionalista, evitando assim que as fantasias patrióticas do século XIX se imiscuíssem à análise do texto colonial.

Todo o problema da “originalidade” e do quadro retórico e analógico em que se desenvolve a literatura colonial revela-se neste ponto. Teria sido interessante um diálogo entre Thiago Nicodemo e Alcir Pécora, que, em um texto originalmente publicado em 2002, analisou a interpretação buarquiana do padre Vieira e de Tomás Antonio Gonzaga, voltada, segundo o crítico, às “diferenças do passado”. Pécora resolutamente advoga que Sérgio resguarda-se das leituras teleológicas da poesia setecentista e o faz de forma especialmente interessante ao considerar os seus modelos internacionais, sobretudo os italianos, permitindo-lhe adotar uma crítica convincente do vocabulário usualmente empregado no tratamento dos árcades (PÉCORA 2008, p. 26).

A questão é também candente, hoje ainda, no âmbito da teoria literária, sempre que se discute o quanto o crítico pode ou deve reportar-se ao conjunto de verossímeis e de valores que conformam a produção colonial, por exemplo.

Como se tal crítico, em suma, devesse mergulhar em um tempo alheio ao seu próprio. Em outros termos, trata-se de verificar até onde a atenção à teia retórica (onde se situa a crítica de Pécora e de João Adolfo Hansen, para citar apenas dois nomes fundamentais) prende um autor a “seu tempo”, e até onde categorias forjadas a partir do século XIX devem ser simplesmente descartadas na análise de textos coloniais.

Dialogando com as teses maiores de Visão do Paraíso, o capítulo seguinte (“Idade Média, Renascimento e a Escrita da História em Visão do Paraíso”) enfrenta a questão, central para Sérgio Buarque, de uma suposta ausência de ruptura em relação ao mundo medieval, na forma mentis dos portugueses. O desafio era saber como, diante da paisagem do Novo Mundo, ressuscitou-se todo um complexo universo de referências tradicionais e como, no caso específico dos portugueses, as formas do pensar não teriam sido radicalmente alteradas diante da “novidade” da América, que fica assim subsumida a concepções mais “realistas” e “pedestres” do novo. Um dos méritos da investigação de Thiago Nicodemo é o de iluminar a questão por meio da análise dos debates registrados durante defesa de tese na Universidade de São Paulo, quando o então candidato Sérgio Buarque de Holanda retomava seu diálogo com Eduardo D’Oliveira França, membro da banca examinadora que aprovaria Visão do Paraíso e permitiria a Sérgio assumir a cátedra de História da Civilização Brasileira naquela instituição. O debate corria em torno da continuidade ou da quebra de uma visão “medieval” portuguesa, e da possibilidade ou não de se compreender a ação humana por meio de conceitos abrangentes e desencarnados.

Uma vez mais, assoma o problema da “ruptura”, isto é, do momento em que permanência e mudança confrontam-se. A explicação básica de Sérgio Buarque é a de que o caráter prematuro da centralização política em Portugal (o primeiro Estado moderno, por assim dizer) desobrigou as novas classes (aí o caráter “burguês” da Casa de Avis) de se constituir em agentes novos, permitindo que se aferrassem a um “estranho conluio de elementos tradicionais e expressões novas” (NICODEMO 2008, p. 111), como se lê em Visão do Paraíso, que neste ponto explicita os andaimes de uma tese já presente em Raízes do Brasil: a de que o povo português é, em certo sentido, refratário à novidade do Renascimento e ao espírito especulativo da ciência moderna em sua aurora. O caráter prático, chão e pedestre da forma de pensar de portugueses vai marcar, finalmente, sua visão do paraíso, que seria sempre mais crédula e simples (ou antes: pacificamente analógica) que a dos espanhóis.

Retomando cuidadosamente a história da conceituação da “Idade Média”, do humanismo italiano ao idealismo alemão e à periodização romântica de um tempo progressivo, Thiago Nicodemo deslinda o que lhe parece ser uma “flexibilização”, em Visão do Paraíso, da dualidade que contrapõe o medievo à era moderna (idem, p. 117), e nesse aspecto é novamente Curtius quem aparece como principal referência, ao lado de um autor como Panofsky. O pano de fundo desse intrincado debate (especialmente, embora não exclusivamente, alemão) é a questão dos limites entre a Idade Média e o Renascimento (tema que recende a Burckhardt), mas é também a possibilidade de encontrar resquícios de um no outro, ou antes, de buscar, no outro, aquilo que se imagina exclusivo de um dos polos. Aí, o berço dos debates sobre o “dionisíaco”, e da entrada em cena de elementos “irracionais” para o desvendamento da lógica e dos limites do legado “racional” que o senso comum atribui ao corte operado pelo Renascimento. Alinham-se então intelectuais como Huizinga, Bloch e Warburg [que] vivenciaram o ambiente de crítica ao racionalismo e positivismo de antes da Primeira Guerra Mundial e, posteriormente, formularam concepções de história atentas a significados de um mundo pré-industrial no qual as crenças e os mitos tinham papel fundamental. Isso implicava a revisão de certos temas em comum, tais como o da ideia da Idade Média como lugar desinteressante, de trevas e irracionalidade. No outro extremo, foi necessário rever o Renascimento como sinônimo de racionalidade e equilíbrio (NICODEMO 2008, p. 127).

Teria sido interessante, aqui também, ver Thiago Nicodemo reagir à leitura, profundamente cética, de Maria Sylvia Carvalho Franco (citada de passagem nas “Considerações Finais”) a respeito da tese da continuação do medievo no Renascimento, em Visão do Paraíso. Afinal, o encantamento com o mítico e o pré-moderno não seria um ponto em que os debates historiográficos em questão encontram certa potência “regressiva” já presente no modernismo brasileiro? Foi nas águas desse modernismo, encantado por um mundo não cartesiano, que se formara a imaginação do jovem Sérgio Buarque, muito antes de ele se tornar o historiador erudito reconhecido por todos. Além disso, haverá, todavia, um ponto cego a trabalhar em Visão do Paraíso: grande parte da argumentação sobre o senso de “maravilha” que rege a imaginação espanhola, em oposição ao realismo pedestre dos portugueses, está baseada nos relatos de Colombo, cuja visão do mundo é um tema em si complexo, e ainda aberto a investigações. Identificar a imaginação colombina à face “espanhola” da descoberta da América pode ser um rico problema a contraditar, de forma a revisitar e homenagear a grandeza de Visão do Paraíso.

Ainda no segundo capítulo, recupera-se a tensão entre a irredutibilidade e unicidade do fenômeno histórico e o desejo de subsumir tais fenômenos, em seu âmbito individual, a macro-estruturas ou estruturas profundas que regeriam e explicariam o social. Tratava-se do grande debate entre a história e a antropologia de corte estruturalista, o qual, como lembra Thiago Nicodemo, tem no Brasil um momento inaugural, quando os jovens Braudel e Lévi-Strauss ensinavam na USP. Entre a lentidão das mudanças estruturais e o torvelinho das mudanças de superfície, projetava-se, novamente, o tema do movimento e do fluxo, e o problema de onde (e como) encontrar o ponto em que a permanência dá lugar à mudança, ou ainda a zona em que ambas – permanência e mudança – convivem. Esse é o pano de fundo contra o qual se coloca o pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, que se pode compreender como uma alta expressão brasileira do debate historiográfico europeu, em meio ao qual se legitimariam, a partir dos anos 50, as várias matrizes do marxismo acadêmico.

A oscilação entre o ponto pequeno da análise individual, com a atenção voltada para os mínimos detalhes da vida, e as grandes correntes mentais que se deixariam codificar em conceitos e termos abrangentes, forma o núcleo do debate historiográfico moderno, às vezes pensado por meio da tensão entre o conhecimento idiográfico e o saber nomotético. A solução buarquiana para tal problema metodológico seria a busca incessante, nos documentos (aí incluída a literatura), dos “vestígios” de sensibilidades passadas, que caberia ao historiador assumir momentaneamente, sempre que quisesse compreender o ponto em que a ação individual encontra o horizonte coletivo de sensibilidades e expectativas, sendo que apenas tal horizonte permitir-lhe-ia, afinal, pensar a história como algo para além do anedótico.

O terceiro e último capítulo (“Sentidos da Colonização”) evidencia as articulações do pensamento buarquiano, conectando preocupações presentes em Raízes do Brasil (1936) a Visão da Paraíso, passando pela inédita dissertação de mestrado apresentada, ainda em 1958, à Escola de Sociologia e Política: Elementos Formadores da Sociedade Portuguesa na Época dos Descobrimentos.

Trata-se de uma interessante reconstrução da ideia prevalecente de um espírito “aventureiro”, como se lia em Raízes do Brasil, a orientar a exploração lusitana.

Uma espécie de mal de origem – tão fundamental na imaginação negativa do que foi a formação do Brasil contemporâneo – explicita-se na ideia de que a colonização portuguesa funda uma sociedade voltada para fora, incapaz de desenvolver-se com vistas a si mesma.

A interlocução com Caio Prado Jr., bem como a importância das teses principais de Raízes do Brasil, ilumina assim a feitura de Visão do Paraíso. O que não impede Thiago Nicodemo de corroborar a noção corrente – a meu ver redutora – de que entre Raízes do Brasil e os trabalhos históricos posteriores haveria uma espécie de evolução, de um Sérgio Buarque que se profissionaliza e que, portanto, abandona o que, em seu ensaio de estreia, teria sido a “rigidez de conceitos e modelos explicativos” (NICODEMO 2008, p. 182). É amplamente sabido que Sérgio Buarque renegou, até certo ponto, Raízes do Brasil, confrontando-se, em vários momentos de sua vida, com o fantasma daquele livro que durante tanto tempo causou mal-estar (especialmente na USP, há que lembrar), seja pelo seu caráter ensaístico, seja por seu suposto reducionismo sociológico (que facilmente seria identificado como “ideológico”).

O quanto tal reducionismo é fruto de uma leitura pobre de Raízes do Brasil é ainda matéria controversa, assim como a mutação de um Sérgio Buarque “sociólogo” em “historiador”, que pauta não poucas leituras de sua obra, pode também ser questionada.

Embora não se detenha sobre tais aspectos, e por momentos corrobore a visão negativa do próprio Sérgio Buarque sobre Raízes do Brasil, Thiago Nicodemo nota como a centralização precoce do Estado português é o núcleo explicativo do “desleixo” da empresa lusitana nos trópicos, com fortes implicações para a compreensão do “sentido” da colonização. Uma pergunta do presente, portanto, organiza o passado, sem pretensões teleológicas ou messiânicas, mas simplesmente como parte daquela tarefa original do historiador, trabalhada na “Introdução”, de “exorcizar” o fantasma do passado, desencantando-o pelo conhecimento. Nesse ponto, justamente, Urididura do Vivido promove um brilhante curto-circuito entre as reedições de Raízes do Brasil e Visão do Paraíso, notando como a mudança de tom, da primeira para a segunda edição de Raízes, é já o fruto de uma oscilação entre a ideia de um “acerto” português nos trópicos e uma dúvida sobre o mesmo acerto, como se o “taumaturgo” (no primeiro caso) tivesse cedido ao “exorcista” (no segundo momento), de acordo já com os termos do prefácio à segunda edição de Visão do Paraíso.

O nó da questão é, em certo sentido, o futuro do Brasil: com aquelas raízes, que fazer? Tal pergunta faz com que a investigação regresse, inevitavelmente, aos anos modernistas de Sérgio Buarque e à sua insatisfação declarada com a forma final da nacionalidade, isto é, com sua arquitetura ideal.

O livro de Thiago Nicodemo tem o imenso mérito de recordar essas conexões entre o modernista de primeira hora e o pesquisador maduro, mostrando, ao mesmo tempo, que há ainda muito a percorrer no terreno da análise da obra de Sérgio Buarque de Holanda. Entretanto, com a publicação de Urdidura do Vivido, qualquer investigação passa agora a contar com uma compreensão densa e ampla dos caminhos do pensamento buarquiano nos anos 1950. Lastro e muita vela.

Referências

PÉCORA, Alcir. A importância de ser prudente. In: MONTEIRO, Pedro Meira; EUGÊNIO, João Kennedy (org.). Sérgio Buarque de Holanda: perspectivas. Rio de Janeiro/ Campinas: EdUERJ/ Editora Unicamp, 2008.

Pedro Meira Monteiro – Professor Princeton University pmeira@Princeton.EDU 349 East Pyne 08544 Princeton – NJ.

 

Teoria da história; Historiografia; Ceticismo.