Posts com a Tag ‘História USP (Hd)’
Autoria e autoridade entre antigos e modernos | Revista de História | 2022
Herodotus | Imagem: BBC
O tema deste dossiê sugere uma série de questões voltadas para os processos de escrita e o papel dos que escrevem, sobretudo as inscritas nas relações entre autoria e autoridade. São exemplos disso a discussão sobre uma possível dimensão transcendental, legitimadora e incontestável de autoridade ou o debate acerca da existência de uma genialidade criativa inata, apenas dois dos variados problemas que permitem explorar a perspectiva de que atribuir um texto a uma identidade individual não é o suficiente para que se forme autoria, não sendo igualmente possível admitir a categoria “autor” em chave essencialista, pois são muitos os resíduos semânticos depositados nela. Essa agenda traz à tona a tarefa de reconstituir posições de autores historicamente situadas e os variados critérios de credibilidade dos discursos nas condições de autoria que lhes foram atreladas. A variação desses elementos ao longo do tempo se dá no horizonte de um diálogo com formas de autorização instituídas nos termos da rivalidade e da adesão, impulsionando tradições textuais e relações de valência epistêmica. Trata-se, assim, de processos de longa duração, cujas características subjazem discursos do presente mesmo quando não abordam direta e explicitamente temas do passado. A partir disso, podemos afirmar, então, que pensar a relação entre autoria e autoridade hoje, com base no contraste entre “antigos” e “modernos”, nos oferece aportes complementares, estruturantes e indispensáveis à reflexão sobre discursos de natureza diversa. O que ocorre quando tais recursos são mobilizados para pura e simples autopromoção? Existe autoridade sem verdade? O autor exerce responsabilidade sobre seu texto e, portanto, deve encarar as consequências daquilo que escreve, ou o texto tem uma vida independente de seu criador, de maneira que devemos separar o eu subjetivo da função-autor? Quando não existe autoria, é possível afirmar a existência de autoridade? Se sim, em que sentido? A quem pertence a autoridade? A indivíduos, artefatos, instituições, tradições – ou a autoridade é efetivamente constituída no cruzamento dessas instâncias? Eis as reflexões proporcionadas pelo dossiê autoria e autoridade entre antigos e modernos. Leia Mais
Direitas nos Estados Unidos e Brasil durante a Guerra Fria | Revista de História | 2021
Guerra Fria – Resumo desenhado | Foto: HISTORIAR-TE
Nas últimas décadas, um fenômeno político tem chamado a atenção de especialistas e estudiosos em geral: o crescimento e as reformulações no campo da direita em países do Ocidente. Recentemente, surpreendeu a muitos o fato de a extrema direita, antes marginalizada, alcançar cena pública ressentida e decididamente, num movimento que soube ganhar adeptos, especialmente pela internet e que consagra líderes ao largo do universo político, cujas ações desacreditam o próprio sistema que os elegeu.
Esse dossiê procura colaborar com o tema, enfatizando as direitas no plural, já que o fenômeno é suficientemente complexo para ser tratado como substantivo singular. Versa sobre as direitas no correr da Guerra Fria. Expõe as renovações sofridas no campo, para recuperar terreno, na época do welfare, oferecendo elementos para pensarmos as direitas no século XXI. O dossiê aborda o tema nos Estados Unidos e Brasil, países que viram presidentes vinculados à extrema direita serem eleitos e manterem expressivo apoio, apesar das vicissitudes e medidas polêmicas: Donald Trump (2017-2021) e Jair Messias Bolsonaro (2019- ). Leia Mais
Uma História Global antes da Globalização? / Revista de História / 2020
Se o mundo não tivesse virado de ponta cabeça em 2020, celebraríamos com pompa e circunstância o aniversário de 70 anos da Revista de História. A pandemia impediu que realizássemos o evento que havíamos planejado para relembrar uma história que começou em março de 1950.
Em nosso número 1, o leitor encontrava a transcrição de uma conferência de Lucien Febvre, cinco artigos (de Gilda Maria Reale, Geoffrey Willey, Myriam Ellis Austregésilo, Alfredo Ellis Júnior e Odilon Nogueira de Matos), um documentário proposto por Carlos Drummond, a seção “Fatos e Notas” (com comentários de Pedro Moacyr Campos e J. Philipson), três resenhas (Plínio Ayrosa e novamente Alfredo Ellis Júnior e J. Philipson) e um Noticiário, que incluía textos, entre outros, de Eduardo d’Oliveira França e Antônio Cândido.
O editorial desse primeiro número era significativamente intitulado “O nosso programa” e vinha assinado por Eurípedes Simões de Paula – criador e, por 27 anos, editor da Revista. Nele, Eurípedes indicava o principal esforço do periódico: divulgar as pesquisas universitárias. O tom da apresentação e o emprego do pronome possessivo no título não deixavam dúvida: os trabalhos publicados seriam, sobretudo, aqueles produzidos pelos professores da área de história da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Passaram-se sete décadas e o número 179 corresponde a outra lógica de construção e dinâmica dos periódicos acadêmicos. Oferece 48 artigos, divididos em nove seções e um dossiê, e sete resenhas. Reúne pesquisadores de 36 instituições, espalhadas por três países e doze Estados brasileiros. Ao longo das mais de 1.500 páginas dessa edição – publicada em fluxo contínuo e de forma exclusivamente digital -, o leitor acompanha questões teóricas e historiográficas, visita temas clássicos e renovados, circula por territórios diversos da pesquisa acadêmica e explora um dossiê – “Uma história global antes da globalização?” – que problematiza visões convencionais acerca da história medieval e propõe uma percepção do passado marcada pela circulação e pela conexão.
Em 2020, não pudemos comemorar presencialmente nossos 70 anos. A Revista de História, porém, continua viva e atenta aos rumos do pensamento historiográfico, aos diálogos da história com outras áreas do conhecimento e à importância do debate amplo e do acesso aberto. Também por isso, nesse ano sombrio ampliamos bastante nossa presença nas redes sociais e criamos novos espaços de divulgação científica. Assim pretendemos ultrapassar os muros do belo e quase desértico, nos meses de isolamento social, campus Butantã da USP e, ainda mais importante, cumprir outro, e central, propósito anunciado por Eurípedes Simões de Paula no editorial que escreveu para o primeiro número: ser um traço de união entre a Universidade e a sociedade.
Boa leitura e que continuemos próximos em 2021.
Júlio Pimentel Pinto – Universidade de São Paulo São Paulo – São Paulo – Brasil
PINTO, Júlio Pimentel. Editorial. Revista de História, São Paulo, n. 179, 2020. Acessar publicação original [DR]
Moçambique em perspectiva. Histórias conectadas, interdisciplinaridade e novos sujeitos históricos | Revista de História | 2019
Uma possível perspectiva analítica para o devir dos estudos africanos no Brasil é pensá-los a partir de suas inflexões, uma vez que o desenvolvimento do campo parece ter dado saltos qualitativos nos últimos anos. Nessa direção, a configuração e a própria concepção do dossiê Moçambique em perspectiva: histórias conectadas, interdisciplinaridade e novos sujeitos históricos, desde o diálogo estabelecido entre as organizadoras até a publicação dos artigos, estão relacionadas à trajetória de implantação e consolidação da área cujos marcos políticos, legais e institucionais são retomados no escopo desta apresentação.
Um marco relevante para os estudos africanos no Brasil foi a aprovação da Lei 10.639/2003 que reformou a Lei de Diretrizes e Bases, introduzindo a obrigatoriedade do ensino da história e cultura da África e afro-brasileira nos currículos escolares.1 Fruto da intensa luta dos movimentos negros de nosso país, e contando com a liderança de figuras expressivas do meio intelectual negro brasileiro, a começar por sua relatora,2 a lei significou um momento de inflexão na maneira pela qual se contava nas instituições de ensino brasileiras a história social, política e econômica do Brasil. Leia Mais
Amazônia global: espaços de circulação e representação da fronteira | Revista de História | 2019
Os textos que compõem esse dossiê foram gerados em grupos de pesquisa e programas de pós-graduação que têm, sistematicamente, se dedicado à historiografia da Amazônia. Esse exercício implica em alguns desafios intelectuais. Em primeiro lugar, compreender processos e transformações sociais ocorridos até o século XIX fora da chave interpretativa fornecida pela associação entre plantation, mineração e escravidão africana, que domina a historiografia brasileira e que já vem sendo questionada há algum tempo como inadequada para a região. Em seguida, dar visibilidade e protagonismo a sujeitos de máxima importância para a história da Amazônia, como os povos indígenas e os ribeirinhos, de diferentes culturas, línguas e estratégias de aproximação e negociação com a sociedade nacional; os numerosos e diversificados agentes coloniais e servidores do Estado, em geral de baixo escalão; os pequenos proprietários e os comerciantes que dominavam a economia regional, centrada no extrativismo e na agricultura e que se organizou a partir do controle de acesso às zonas de exploração e cultivo, localizadas nas várzeas dos grandes rios; os missionários e demais membros do clero, peças ativas na expansão europeia e no processo de urbanização da região; e mesmo os afro-brasileiros ali residentes, com suas culturas e identidades, não redutíveis a ‘escravos’. Vemos, nas fontes, todos eles circulando pelo território amazônico e colocando em movimento a fronteira que se estabelece desde o início do período colonial e que se amplia à medida que novos espaços e povos são incorporados no sistema global de intercâmbios políticos, econômicos e culturais. Leia Mais
Moda e História / Revista de História / 2019
Este dossiê – primeiro sobre o tema moda nesta Revista de História – é dedicado ao doutoramento em Ciências Sociais de Gilda de Mello e Souza (1919- 2005), defendido em 20 de junho de 1950 na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH), e intitulado A moda no século XIX. Pioneira no estudo de moda no Brasil, a tese só mereceu publicação comercial em 1987, com o título O espírito das roupas (SOUZA, 1987). O longo lapso temporal em que permaneceu negligenciado não encaneceu o trabalho da filósofa; ao contrário, seu reconhecimento foi se ampliando com o passar dos anos e o posiciona, hoje, como o mais relevante estudo sobre o tema já produzido no Brasil.
Um clássico, portanto, recorrentemente citado e objeto de inúmeros artigos, aos quais se acrescenta o que compõe este dossiê e que se dispõe a contextualizar a obra na temporalidade de seu surgimento – quando, não por coincidência, a criação de moda emergia entre nós. Por isso mesmo, o enfoque insere (tanto quanto discerne) o trabalho de Gilda no âmbito dos chamados “formadores do Brasil” e da emergência do campo da moda no país. Uma curiosidade: publicado em 1951 por esta Revista de História, o “boletim do júri” que avaliou a tese permite reconstituir a recepção pouco acolhedora da banca à temática escolhida pela doutoranda e nos convoca a refletir sobre como têm se desenvolvido, desde então, os estudos sobre a moda na FFLCH.
A despeito de terem surgido trabalhos relevantes, passadas quase seis décadas, os dados aferíveis não fazem jus ao legado daquela tese. Um levantamento completo desde a fundação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, em 1934, implica uma difícil pesquisa nos arquivos físicos de teses ou dissertações da unidade, já que os dados disponíveis na Biblioteca Digital da USP (https: / / www.teses.usp.br / ) contemplam apenas trabalhos posteriores aos anos 1990 (a saber). Utilizando a “pesquisa avançada” e os filtros “títulos” e “palavras-chave” para os descritores “moda, vestimenta / vestuário e indumentária”, foram encontrados apenas 16 títulos relacionados à unidade FFLCH.1
Resultado semelhante ocorreu também na base de dados do Centro de Apoio à Pesquisa Histórica Sérgio Buarque de Holanda (CAPH), que contém 1.570 teses e dissertações defendidas de 1950 a 2015 – e que inclui a tese de Gilda. Se atentarmos, ainda, para disciplinas e cursos oferecidos pelos departamentos (graduação e pós-graduações) da FFLCH sobre os descritores citados, o resultado não é alvissareiro: pelo Sistema Janus foi possível verificar, ao final de 2018, um único curso de temática correlata2; predominam os temas clássicos às áreas de conhecimento.
Ainda em fins dos anos 1980, o filósofo francês Gilles Lipovetsky asseverou: “A questão da moda não faz furor no mundo intelectual. […] A moda é celebrada no museu, é relegada à antecâmara das reocupações intelectuais reais; está por toda parte na rua, na indústria e na mídia, e quase não aparece no questionamento teórico das cabeças pensantes” (LIPOVETSKY, 2009, p. 9). Este quadro mudou, efetivamente, nas décadas recentes, em muito graças às boas repercussões alcançadas pelo próprio Lipovetsky e, no Brasil, pela tese de Gilda, revertendo a visão da moda como “esfera ontológica e socialmente inferior” (LIPOVETSKY, 2009, p. 9). Temos no Brasil importantes eventos acadêmicos sobre o tema, como o Colóquio de Moda, atualmente em sua 15ª edição; Encontro Nacional de Pesquisa em Moda (ENPModa), 9º edição; Seminário Moda Documenta e Congresso Internacional de Memória, Design e Moda, respectivamente em 8ª e 5ª edições – sempre em 2019. A moda adentrou a academia brasileira com vigor: do primeiro curso de graduação, em 1988, na Faculdade Santa Marcelina (FASM), São Paulo, Capital, registrávamos em fins de 2018, segundo o e-MEC, 224 cursos no país, o que detém maior número, em nível superior, no mundo para o campo — entre os quais o Têxtil e Moda, da EACH / USP.3 A expansão rápida é indicativa, em parte, de interesses mercadológicos que nos fazem reflexionar sobre a qualidade dos conteúdos ofertados.
Entendemos este dossiê, por isso mesmo, como um estimulo ao estudo empenhado sobre a moda e suas correlações no Brasil e, em particular, na FFLCH, pela relevância dos artigos que o compõem, assinados por: Daniela Calanca (Università di Bologna, Campus Rimini), socióloga italiana que comparece com texto sobre “moda e patrimônio cultural”; Joana Monteleone, doutora pelo Programa de Pós-graduação em História Econômica – FFLCH / USP, que retorna à corte de d. Pedro II (objeto de seu doutorado) e resgata aspectos do consumo, moda e gênero no Rio de Janeiro, entre 1840 a 1889; Luciana Dulci (UFOP), que aprofunda reflexões sobre a urdidura, ao longo do tempo, das teorias sobre a moda como “hierarquia simbólica entre classes”; Mara Rúbia Sant’Anna (UDESC), com um primoroso estudo dos trajes masculinos produzidos pelo artista plástico Victor Meirelles em seu período na Itália, entre 1853 a 1856. Boa leitura!
Notas
1. Foi possível localizar os seguintes trabalhos: ALMEIDA, Adilson José de. Uniformes da Guarda Nacional: 1831-1852. A Indumentária na Organização e Funcionamento. Mestrado em História Social, FFLCH, 1999; BETTI, Marcella Uceda. Beleza sem medidas? Corpo, gênero e consumo no mercado de moda plus-size. Mestrado em Antropologia Social, FFLCH, 2014; BEZERRA, Maria de Fatima. Ethos, estereótipos e clichês: moda e argumentação persuasiva. Mestrado em Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês, FFLCH, 2009; BORGES, Maria Zélia. Vocabulário da moda no português do Brasil (abril / 90 a janeiro / 91). Doutorado em Semiótica, FFLCH, 1994; CALLIL, Victor. Cadeia produtiva e mercado: um estudo sobre a produção e a venda de moda varejista. Mestrado em Sociologia, FFLCH, 2015; D’ALMEIDA, Tarcisio. As roupas e o tempo: uma filosofia da moda. Doutorado em Filosofia, FFLCH, 2018; FERRON, Wanda Maleronka. Fazer roupa virou moda. Um figurino de ocupação da mulher (São Paulo -1920-1950). Doutorado em História Econômica, FFLCH,1996; GARAVELLO, Maria Elisa de Paula Eduardo. Costura social do vestuário: da teoria à prática. Doutorado em Antropologia Social, FFLCH, 1994; KONTIC, Branislav. Inovação e redes sociais: a indústria da moda em São Paulo. Doutorado em Sociologia, FFLCH, 2007; LIMA, Igor Renato Machado de. “Habitus” no sertão: gênero, economia e cultura indumentária na Vila de São Paulo. Doutorado em História Econômica, FFLCH, 2011; MARANTES, Bernardete Oliveira. O vestido de Proust: uma construção na trama das correspondências. Doutorado em Filosofia, FFLCH, 2011; MONTELEONE, Joana de Moraes. O circuito das roupas: a corte, o consumo e a moda (Rio de Janeiro, 1840-1889). Doutorado em História Econômica, FFLCH, 2013; PAULA, Camila Galan de. Num mundo de muitos corpos: um estudo sobre objetos e vestimentas entre os Wajãpi.. Mestrado em Antropologia Social, FFLCH, 2015. PETTER, Margarida Maria Taddoni. A construção do significado de Fàni, “Pano e Vestuário”, em Diulá. Doutorado em Semiótica e Linguística, FFLCH, 1992; PRADO, Luís André do. Indústria do vestuário e moda no Brasil, sec. XIX a 1960 – da cópia e adaptação à autonomização subordinada. Doutorado em História Econômica; FFLCH, 2019; SILVA, Josilene Lucas da. Imprensa, moda e educação feminina em contos iniciais de Machado de Assis. Mestrado em Literatura Brasileira, FFLCH, 2017. Não localizada, mas cabe citar pela importância: ABREU, Alice R. de Paiva. O avesso da moda – Trabalho a domicílio na indústria de confecção. Doutorado em História Econômica, FFLCH, 1995 (São Paulo: Hucitec, 1986).
2. Departamento de Filosofia: FLF5237 – Estética (Beleza e Conhecimento na Psicologia Empírica do Século XVIII).
3. Criada em 2005, a Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH-USP) abrange o Departamento de Têxtil e Moda que, pela Biblioteca Virtual USP, teve um total de 160 dissertações e teses defendidas até 22 de agosto de 2019, ante 768 para toda a unidade.
Referências
LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
Luís André do Prado – Bacharel em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História Econômica no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH / USP. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. E-mail: prado@pyxisnet.com.br
PRADO, Luís André do. Apresentação. Revista de História, São Paulo, n. 178, 2019. Acessar publicação original [DR]
Grupos intermédios nos domínios portugueses, séculos. XVI-XVIII / Revista de História / 2016
Hierarquias e mobilidade social no Antigo Regime: os grupos intermédios no mundo português
A identificação de grupos sociais na Época Moderna representa um velho e duradouro problema historiográfico. Em fins da década de 1970, tentando resumir o estado da questão, Fernand Braudel começou por lembrar a dificuldade que sente o historiador em reconhecer na palavra “sociedade” a desejável invocação de todos os seus componentes vivos e variáveis. Por isso mesmo, e com o intuito de valorizar à partida a pluralidade que se esconde por trás de um conceito intencionalmente globalizante, Braudel propôs encarar a sociedade lato sensu e em especial a sociedade moderna como um conjunto constituído por outros conjuntos – l’ensemble des ensembles – que iludiam lógicas de constituição ou manutenção estritamente jurídicas, políticas ou de consumo: setores, grupos ou segmentos que interagiam num quadro de relações hierárquicas com notáveis aspectos de fluidez, embora também constrangidos por princípios gerais de gênese muito complexa.1
O primeiro grande nível de divisões hierárquicas na sociedade da Idade Moderna seria constituído por três grandes grupos: a pequena minoria dos privilegiados, que tudo governava e administrava, concentrando o usufruto praticamente exclusivo das mais-valias; o da multidão dos “agentes” da economia, trabalhadores de todos os tipos, que formavam a grande massa dos “governados”, e, por fim, o enorme universo dos sans-travail.2
Na “economia-mundo”, caracterizada por Immanuel Wallerstein, os privilegiados manter-se-iam relativamente pouco receptivos ao ingresso de indivíduos de grupos inferiores, apesar de com eles se relacionarem. Os grupos de “agentes” em ascensão, comumente ditos “classes médias”, tenderiam a ser particularmente prejudicados em conjunturas econômicas de depressão, do mesmo modo que seriam também beneficiados, à frente de outros, em conjunturas mais favoráveis. A longo prazo, os integrantes dos seus estratos superiores conheceriam, inclusive, a oportunidade de participar na renovação das elites que o fechamento esclerosara, e seriam também convocados a ajudar em tarefas de governação cada vez mais exigentes, tanto a nível local (nas províncias e nas cidades), como no seio das cortes. Tudo isso se processaria quase sempre em termos desiguais, segundo as dinâmicas dos vários espaços do sistema-mundo, e, na maior parte dos casos, com uma grande lentidão. O exíguo território do cume da pirâmide social, de ocupação restrita aos privilegiados, não se chegava nunca a alargar, proporcionalmente, de forma substantiva.3
Descontando talvez alguns traços do breve retrato dos grupos de pobres e despossuídos, que quase só oscilariam entre uma perfeita submissão à ordem estabelecida e raros rompantes coletivos de dissonância – revoltas, levantamentos ou revoluções –, e não obstante nas últimas décadas se debaterem novas e instigantes hipóteses sobre a ascensão dos grupos de “agentes” – como, por exemplo, uma acrescida e sustentada laboriosidade, principalmente a partir do século XVIII4 –, boa parte dos ensinamentos do maior dos discípulos de Lucien Febvre, na sua espantosa fecundidade, continua a ser útil para amparar a reflexão sobre a sociedade do período moderno. Cabe aqui destacar a lembrança da conjugação de parâmetros de sistemas político-econômicos de diferentes origens e em combinações extremamente variáveis.5
O caso português distingue-se no contexto europeu pelo convívio de fortes princípios senhoriais com uma Igreja de grande relevância social e desmedida projeção fundiária; um oficialato régio escassamente desenvolvido, pelo menos até ao início da segunda metade do século XVII; questionáveis raízes feudais; cidades com privilégios e tradições expressivas, mas desigualmente representadas no corpo do reino e muito distantes da dimensão de Lisboa, para além de um enorme conjunto de domínios e interpostos ultramarinos que, mesmo em período de franca expansão, conhecem profundas razões de instabilidade e de perigo de ruptura. Em suas linhas gerais, já o sabiam os arbitristas do século XVII e os grandes nomes da diplomacia do tempo das Luzes. A historiografia posterior tem-nos vindo a circunstanciar.6
Nesse quadro, não chega a ser surpreendente que entre o Minho e o Algarve se verifique a existência de grupos intermédios muito ligados à administração das casas das grandes famílias terratenentes e ao quotidiano dos episcopados, ordens e congregações: “agencia-se” para a nobreza e para a Igreja. Os homens de negócios de maior expressão concentram-se nos portos marítimos com vocação transatlântica. Sua ascensão enfrenta, porém, resistências diversas, religiosas, culturais e políticas, muito embora o capital dos fidalgos, dos mosteiros ou da Coroa se junte ao financiamento de determinadas empresas comerciais. Paralelamente, nota-se um acentuado processo de dignificação social pelo exercício das letras e, em particular, dos ofícios de escrita. Já no século XVIII, estimula-se o reconhecimento do interesse da atividade dos negociantes de grosso trato. Processo legalmente consolidado com o rei d. José, que ainda fomenta o incremento das manufaturas. Todo um conjunto de indivíduos de extração mediana conquista, assim, o direito a um lugar efetivo entre os privilegiados, e carrega consigo, em movimento ascensional, uma série de outros agentes inferiores.7
A estruturas de produção bastante diversas, com expectativas e constrangimentos também diferentes, corresponderam, nos territórios ultramarinos, hierarquias que desafiaram as capacidades de descrição de vários cronistas. Célebre é o início do livro I de Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, de André João Antonil, onde se lê que “O ser senhor de engenho é título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos”, explicando-se logo depois que, de acordo com o “governo” e o “cabedal”, “bem se pode estimar no Brasil o ser senhor de engenho quanto proporcionadamente se estimam os títulos entre os fidalgos do Reino”. E para melhor se perceber o alcance preciso de tal estima, especifica-se com todas as letras que “Dos senhores dependem os lavradores que têm partidos arrendados em terras do mesmo engenho como os cidadãos dos fidalgos”.8
Interpretações que ignoram ou que de fato não compreendem o significado das equivalências propostas nestas e noutras passagens de documentos coevos chegaram a espalhar a ideia de que os territórios americanos de produção portuguesa de açúcar apresentavam uma sociedade basicamente constituída por dois grandes grupos: o dos senhores e o dos escravos; e que, grosso modo, essa seria a norma em boa parte do Brasil colônia. A existência de um grupo verdadeiramente mais expressivo de indivíduos caracterizáveis como os “agentes” de que fala Braudel seria observável quase já só no século XVIII, em virtude da mineração. Verificou-se, inclusive, um assinalável entusiasmo em torno da imagem das Minas do Rio das Velhas como um autêntico berço de novos valores “democráticos”.
Felizmente, muitos desses equívocos foram ultrapassados por excelentes trabalhos de história económica, social e demográfica que, em simultâneo, contribuíram para aprofundar o conhecimento das sociedades mineiras, com a sua imensa mole de indivíduos livres, autônomos, mas pouco menos que miseráveis: parafraseando Laura de Mello e Souza, democraticamente unidos na pobreza.9
Maria Odila Leite da Silva Dias, a par das investidas de Anthony John R. Russell-Wood e Stuart B. Schwartz, desenvolveu e orientou dezenas de teses, pelo menos desde os inícios dos anos 1980, para tentar conhecer os mecanismos de constituição e a importância relativa desses grupos de gente mais ou menos remediada ou mais ou menos enriquecida que, por praticamente toda a América portuguesa, foi conseguindo escapar à servidão e ajudou a dar consistência aos núcleos urbanos, através de pequenas atividades agrícolas e de manufatura, serviços de abastecimento e comércio, o auxílio ao desempenho de alguns dos deveres da Coroa e das funções da Igreja. Com efeito, a prospecção abarcou desde os mais elevados estratos de negociantes do sudeste da antiga colônia até aos homens e às mulheres que subsistiam em todo o tipo de atividades de apoio a indivíduos de melhor condição, muito para além do limite formal da independência:10 aturado labor de redescoberta de personagens anteriormente quase privados de voz, e sem o qual seria muito difícil acompanhar os debates que nos últimos anos se adensaram sobre a natureza, as capacidades de reprodução e as virtudes políticas dos middling groups contemporâneos.11
Os textos aqui reunidos trazem duas formas de abordagem do problema da constituição e da mobilidade social no mundo ibérico do Antigo Regime. A primeira desenvolve-se em torno da disputa por cargos e ofícios no Atlântico português e de como o conhecimento dos modos de acesso a esses lugares ilumina o tema dos “grupos intermédios”. A segunda tem por objetivo entender, diferenciar e problematizar a própria categoria em questão, a partir de registros de cultura material e de indicadores de consumo, seja no espaço americano, seja em Portugal ou mesmo em Espanha.
O texto de Fernanda Olival e Aldair Carlos Rodrigues (“Reinóis v. naturais nas disputas pelos lugares eclesiásticos do Atlântico português: aspectos sociais e políticos (século XVIII)”) faz o estudo das nomeações para os cabidos catedralícios de São Paulo, Rio de Janeiro, Mariana, Açores e Madeira. Perscrutando as informações de genere dos candidatos aos cargos de comissário do Santo Ofício que já tivessem exercido funções nos episcopados locais, os autores propõem uma cronologia da “naturalização” do controle desses assentos. Desvenda-se assim um meio de ascensão social acessível aos integrantes de grupos intermédios nascidos no ultramar.
É igualmente pelo recurso a documentos da Inquisição que Nuno Camarinhas pesquisa o impacto dos processos de habilitação para o ofício leigo de familiar de Santo Ofício nos cursus honorum dos juízes letrados atuantes na América portuguesa, também no século XVIII (“Familiaturas do Santo Ofício e juízes letrados nos domínios ultramarinos (Brasil, século XVIII)”). Camarinhas começa por descrever essa estrutura proto-burocrática de representação da justiça do rei, e assinala que os serviços que nele se faziam aceleravam, tendencialmente, a progressão nas carreiras. Logo em seguida, procura mostrar que para os juízes com ascendência em grupos medianos, a obtenção do hábito de familiar do Santo Ofício, que funcionava como um autêntico certificado de pureza de sangue, era um elemento de especial relevância para o acesso ao topo da judicatura do reino, facilitando, por essa via, a admissão nos mais elevados estratos da sociedade reinol.
No segundo conjunto de trabalhos, o artigo de Maria Aparecida Borrego e Rogério Ricciluca Matiello Félix (“Ambientes domésticos e dinâmicas sociais em São Paulo colonial”) parte do pressuposto de que os atributos físicos das peças de mobiliário servem para compreender reiterações e / ou transformações de padrões de conduta e mudanças no comportamento social, ultrapassando assim a simples função utilitária. Tendo por base o estudo de inventários de bens post mortem de trinta comerciantes setecentistas da cidade de São Paulo, demonstram os autores que a expansão das atividades econômicas desse núcleo urbano determinou uma clara mudança no padrão de consumo dos grupos intermédios, por razões que se prendem a práticas de representação social e relações de sociabilidade.
Os padrões de consumo são também o foco do contributo de Andreia Durães Gomes, intitulado “Grupos intermédios: identidade social, níveis de fortuna e padrões de consumo (Lisboa nos finais do Antigo Regime)”. Segundo a autora, esses indicadores são de grande importância para melhor entender o que eram os “segmentos medianeiros” que surgem nos testemunhos coevos, no vocabulário e na consciência dos atores da época, a partir da conjugação de três fatores distintos: a riqueza, o estatuto e a autoridade. O estudo desenvolve-se sobre 376 inventários post mortem de Lisboa, datados de 1755 a 1836. Após detalhadas considerações metodológicas e uma análise quase exaustiva dos dados recolhidos, propõe-se a hipótese de um crescente investimento no papel social do interior das moradias, à semelhança do que se lê no trabalho de Aparecida Borrego e Rogério Félix, muito embora no caso do amplo universo de Andreia Gomes, esse traço pareça repetirse praticamente em todos os grupos da sociedade. O artigo acaba por ser, aliás, inconclusivo quanto a um padrão de consumo específico dos grupos médios, mas sublinha a importância dos valores relativos dos móveis e dos imóveis para a diferenciação desses grupos em relação aos estratos inferiores da sociedade. Do mesmo modo, indica que os investimentos suntuários ou financeiros serviam claramente para marcar um movimento de aproximação às camadas superiores da sociedade.
O contributo final, de Máximo García Fernández (“Cambios y permanencias en la cultura material cotidiana no privilegiada: un mundo complejo. Castilla (y Portugal) durante el Antiguo Régimen”), serve como termo de comparação com a realidade espanhola e aprofunda a questão da mudança de padrões de consumo no crepúsculo do Antigo Regime ibérico. A problematização, sobretudo historiográfica, desenvolve-se em torno dos modos de transferência dos padrões de consumo de um grupo social a outro, e do papel representado pelos estratos “burgueses” no processo de disseminação e, eventualmente, universalização dos padrões de consumo que antes distinguiam as elites.
Cinco trabalhos. Sete estudiosos. Seis unidades acadêmicas. Trata-se de um conjunto que nos parece ilustrativo do que melhor se tem feito sobre o tema proposto. Para poder concretizá-lo, muito contribuiu o projeto de pesquisa Intergrupos – Grupos intermédios em Portugal e no Império português: as familiaturas do Santo Ofício (c. 1570-1773), PTDC / HIS-HIS / 118227 / 2010, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, sob a coordenação de Fernanda Olival. Iniciativa que desde o começo obedeceu ao intuito de favorecer o diálogo historiográfico luso-brasileiro, pela partilha de dados, hipóteses e metodologias. Porque sendo sempre preciso valorizar o que há de específico a cada local, a começar pela própria linguagem dos testemunhos, de acordo com os bem-informados conselhos do mestre Braudel, convém definir ferramentas que nos permitam mais facilmente integrar resultados e conclusões. Por muito lento que seja o processo.
Lisboa / Providence, novembro de 2016
Notas
- BRAUDEL, Fernand. Civilisation matérielle, économie et capitalisme XVe -XVIIIe siècle, vol. 2 (Les jeux de l’échange). Paris: Armand Colin, 1979, p. 547-551.
- Ibidem, p. 557-558.
- Ibidem, p. 557-568, e vol. 3 (Le temps du monde), p. 62-67. 17
- DE VRIES, Jan. The industrial revolution and the industrious revolution. The Journal of Economic History, vol. 54, n. 2. Cambridge, 1994, (Papers Presented at the Fifty-Third Annual Meeting of the Economic History Association), p. 249-270; GRENIER, Jean-Yves. Travailler plus pour consommer plus: Désir de consommer et essor du capitalisme, du XVIIe siècle à nos jours. Annales. Histoire, Sciences Sociales, n. 3. Paris, 2010, 65e Année (Histoire du travail), p. 787-798.
- BRAUDEL, Fernand. op. cit., vol 2., p. 554-557 e 592-597.
- Ver, por todos, SÉRGIO, António. Antologia dos economistas portugueses. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1974; GODINHO, Vitorino Magalhães. A estrutura da antiga sociedade portuguesa. Lisboa: Arcádia, 1971; COELHO, Maria Helena da Cruz & MAGALHÃES, Joaquim Romero. O poder concelhio das origens às cortes constituintes. [1ª edição, 1986] 2ª edição. Coimbra: Centro de Estudos de Formação Autárquica, 2008; HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal – séc. XVII. [1ª edição espanhola, 1989] Coimbra: Livraria Almedina, 1994; MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 1992-1993, 8 vol.; BETHENCOURT, Francisco & CHAUDHURI, Kirti, dir. História da expansão portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998-1999, 5 vol.; RAMOS, Rui, SOUSA; Bernardo Vasconcelos, MONTEIRO; Nuno Gonçalo. História de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2009.
- MACEDO, Jorge Borges de. Problemas de história da indústria portuguesa no século XVIII. [1ª edição, 1963] 2ª edição, Lisboa: Querco, 1982; PEDREIRA, Jorge Miguel. Os homens da praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755-1822). Tese de doutorado em História, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1995; MADUREIRA, Nuno Luís. Luxo e distinção: 1750-1830. Lisboa: Editorial Fragmentos, 1990; Idem. Cidade: Espaço e Quotidiano. Lisboa 1740-1830. Lisboa: Livros Horizonte, 1992; OLIVAL, Fernanda. As ordens militares e o Estado Moderno. Honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar, 2001; MONTEIRO, Nuno Gonçalo (coord.). História da vida privada em Portugal, vol. 2 (A Idade Moderna), [Lisboa]: Círculo de Leitores e Temas e Debates, 2011.
- ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Introdução e notas, Andrée Mansuy Diniz Silva. São Paulo: EDUSP, [1ª ed., 1711] 2007, p. 79.
- FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1959; HOLANDA, Sérgio Buarque de. Metais e pedras preciosas. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de & CAMPOS, Pedro Moacyr (org.). A época colonial, t.1, vol. 2 São Paulo: Difel, 1968 (História geral da civilização brasileira); COSTA, Iraci del Nero da. Populações mineiras: sobre a estrutura populacional de alguns núcleos mineiros no alvorecer do século XIX. São Paulo: IPE-USP, 1981 (Ensaios econômicos, 7); LUNA, Francisco Vidal. Minas Gerais: escravos e senhores. São Paulo: IPE-USP, 1982; COSTA, Iraci del Nero & SOUZA, Laura de Mello e. Os desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal. 1982; BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. Códigos e práticas. O processo de constituição urbana em Vila Rica colonial (1702-1748). São Paulo: Annablume, 2004.
- RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos and philantropists: The Santa Casa da Misericórdia of Bahia 1550-1755. Berkeley: University of California Press, 1968; SCHWARTZ, Sutart B. Sovereignity and society in colonial Brazil: the High Court of Bahia and his judges, 1609-1751. Berkeley: University of California Press, 1973; SILVA, Maria Odila Leite da. Quotidiano e Poder: Ana Gertrudes de Jesus. São Paulo: Brasiliense, 1984; PINTO, Maria Inez Machado Borges. Sérgio Buarque de Holanda e a sociedade mineradora: povoamento tumultuário e o processo de sedimentação social no século XVIII. Revista de História. São Paulo, 1988, p. 45-58; MARTINHO, Lenira Menezes & GORENSTEIN, Riva. Negociantes e caixeiros na sociedade da Independência. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1992; MARINS, Paulo César Garcez. Através da rótula. Sociedade e arquitetura urbana no Brasil, séculos XVII a XX. São Paulo: Humanitas, 2001; BLAJ, Ilana. A trama das tensões. O processo de mercantilização de São Paulo (1681-1721). São Paulo: Humanitas, 2002; OLIVEIRA, Maria Luísa Ferreira de. Entre a casa e o armazém, relações sociais e experiência da urbanização. São Paulo, 1850-1900. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2005; FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio. A interiorização da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 2006, entre muitos outros.
- O debate é público e muito alargado. Para uma sua expressão mais radical, veja-se, por exemplo, GUERREIRO, António. A classe média nunca existiu. Público. Porto. 30.09.2016. Disponível em: https: / / www.publico.pt / culturaipsilon / noticia / a-classe-media-nunca-existiu-1745207?frm=ul
Tiago C. P. dos Reis Miranda – Universidade de Évora (CIDEHUS) Évora – Portugal. Investigador integrado do Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades. E-mail: trmiranda@uevora.pt
Bruno Feitler – Universidade Federal de São Paulo Guarulhos – São Paulo – Brasil. Doutor em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales. Professor adjunto de História Moderna da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Unifesp e bolsista de produtividade em pesquisa CNPq. E-mail: brunofeitler@gmail.com
FEITLER, Bruno; MIRANDA, Tiago C. P. dos Reis. Apresentação [Hierarquias e mobilidade social no Antigo Regime: os grupos intermédios no mundo português]. Revista de História, São Paulo, n. 175, 2016. Acessar publicação original [DR]
O Atlântico equatorial: sociabilidade e poder nas fronteiras da América portuguesa / Revista de História / 2013
Atlântico Equatorial: Sociabilidade – Poder nas fronteiras da América portuguesa / Revista de História / 2013, Atlântico Equatorial (d), Sociabilidade (d), Poder (d), América Portuguesa (d), Fronteiras (d)
A Amazônia portuguesa compreende uma área singular no conjunto das possessões ultramarinas lusitanas. Área de colonização tardia, cuja ocupação teve início cerca de um século após a conquista do litoral americano, ela conheceu relações sociais e políticas que demandam modelos explicativos próprios.
A sociedade colonial emergente nesta área da América portuguesa foi profundamente demarcada pelas relações mantidas com os povos indígenas ali estabelecidos. Povos diversos, que fique bem entendido, com demandas e agendas distintas, não raro discordantes. Da mesma forma, as relações econômicas emergidas naquela região guardam uma relativa singularidade, se comparadas às outras áreas do império. As atividades extrativistas cedo assumiram a condição de atividade estruturante em larga parcela do território. Elas não reinaram, no entanto, exclusivas. A criação de gado, a monocultura da cana, a agricultura de alimentos (especialmente da mandioca) e as atividades de beneficiamento (da mandioca, da pesca, do extrativismo) conviveram com a produção de canoas e de um sem número de artefatos necessários ao dia-a-dia da colônia.
Outra dimensão relevante deveu-se ao fato de que o governo que se estabeleceu na Amazônia portuguesa não apenas foi distinto, do ponto de vista administrativo, do governo do Estado do Brasil como dele permaneceu separado por cerca de duzentos anos, conformando assim dinâmicas de gestão diferenciadas que, de modo usual, não se subordinavam àquelas aplicadas ao Estado do Brasil.
Entender as particularidades da Amazônia portuguesa significa problematizar a plasticidade da política imperial e, mais importante, o quanto ela foi pautada pelo movimento inverso ao da conquista. A experiência amazônica permite a avaliação do quanto as questões apresentadas pelas colônias foram determinantes para o dimensionamento da política imperial. Só a análise circunstanciada dos diversos processos vividos na região pode fazer emergir a singularidade daquela parte do mundo colonial e a potencialidade que ela guarda para a formulação de novas perspectivas de análise sobre a política imperial e sobre os limites de modelos explicativos que a assumem como determinada pelas necessidades da metrópole e não como resultado de uma negociação política.
Desde 1621, a Amazônia portuguesa constituiu um imenso território, reunindo conformações que acabaram por se mostrar distintas e diversas. As capitanias do Maranhão e do Grão-Pará compreendiam áreas tão vastas que ultrapassavam os limites do que hoje conforma a região norte. Densamente povoadas por povos indígenas, tais capitanias foram objeto de uma política indigenista singular e longeva que defendeu a incorporação daqueles povos à sociedade colonial. Da mesma forma, sua condição de área periférica do império viu emergir relações singulares, tão mais à revelia do controle administrativo do império quanto mais distante dos polos de irradiação do poder na colônia: Belém e São Luís.
O dossiê O Atlântico equatorial: sociabilidade e poder nas fronteiras da América portuguesa problematiza as especificidades da colônia portuguesa naquela parte do império. A política indigenista implementada, a complexidade das políticas indígenas, a diversidade das trajetórias históricas de seus diferentes atores sociais, as relações havidas com os povos indígenas, as estruturas econômicas emergidas nos diferentes pontos da região, os conflitos políticos, entre outras instâncias da vida colonial, constituem as temáticas a serem debatidas. Por meio delas, o passado colonial amazônico pode ser percebido em sua singularidade e pode dimensionar a plasticidade da política imperial portuguesa, especialmente diante da diversidade e dos problemas apresentados por uma região cuja conformação geográfica e social demandava políticas próprias. E, ainda hoje, sua inteira compreensão se constitui em um dos grandes desafios deste país.
Antes de apresentar os artigos, consideramos ser necessário situá-los diante da produção historiográfica relativa a esta parte do Império português. Apesar de constantemente relacionada à natureza, o que constitui a Amazônia como espaço são (e foram) as pessoas que lhe atribuíram (e atribuem) significado. Apesar de óbvia, a assertiva é necessária a fim de dirimir eventuais surpresas diante do volume de referências acionadas pelos diversos autores. Desde o século XVII, intelectuais de origem e orientação variada se ocupam da compreensão da experiência colonial. A seguir, ensaiamos uma periodização.
Não se trata, evidentemente, de mera compulsão do ofício. O ensaio de periodização sugerido tem por objetivo situar os textos do dossiê, indicando o momento de sua produção, tendo a historiografia acerca da Amazônia portuguesa em perspectiva. Encaminhamos, então, um exercício de compreensão da historiografia voltada para a análise do Atlântico equatorial, suas singularidades e os nexos que os vinculam ao império. Acompanhe-nos.
A produção historiográfica relativa à Amazônia portuguesa pode ser situada em cinco momentos. O primeiro deles define o roteiro inicial das narrativas subsequentes. Nele, consubstanciou-se uma narrativa épica da conquista. Seus autores foram homens vinculados à estrutura administrativa do império, profundamente comprometidos com o processo de consolidação do domínio luso nessa parte do território americano conquistado da Espanha durante a União Ibérica. Bernardo Pereira de Berredo e Alexandre Rodrigues Ferreira foram os seus arquitetos.
O primeiro, governador do Estado do Maranhão, elaborou uma das primeiras narrativas sobre a conquista e a colonização da região. Seus Anais históricos do Estado do Maranhão abarcam tanto a chegada dos primeiros conquistadores quanto o estabelecimento das colônias e os conflitos envolvendo reinóis, americanos e indígenas.3 O segundo, naturalista, protagonista da mais importante expedição científica durante a colonização portuguesa, construiu narrativas complementares às formuladas por Berredo. Alexandre Rodrigues Ferreira preocupou-se em expor a origem das vilas e lugares, em descrever os fortes, em ressaltar as relações mantidas com os povos indígenas.4 Ambos produziram uma história factual e narrativa, voltada para o engrandecimento e o destaque da ação portuguesa, envolvidos que estavam com a luta pela garantia do domínio português sobre o território conquistado à Espanha.5
O segundo momento pode ser relacionado às obras de três autores: Antonio Raiol, Manoel Barata e Teodoro Braga. Elas conformam o que, para muitos, constitui a historiografia clássica paraense. Enquanto os autores dos séculos anteriores pensaram a colonização como uma experiência de conquista, cujas disputas remetiam à Europa, estes homens do século dezenove se voltavam para o passado colonial buscando as origens da sociedade paraense e amazônica.
Essa pretensão não significou uma ruptura com o passado português. Não houve, nesse sentido, qualquer tentativa de consagração de heróis locais em oposição aos eleitos pela historiografia anterior. Os portugueses permaneceram como os protagonistas dos episódios escolhidos como demarcadores da trajetória histórica da região. Francisco Caldeira Castelo Branco, Pedro Teixeira, Antonio Vieira, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, João Pereira Caldas, entre outros representantes da administração colonial, perduraram como os agentes históricos por excelência da história contada. Não obstante, uma inflexão pode ser percebida.
Menos do que o elogio à ação portuguesa foi a busca pelas raízes da sociedade paraense o que moveu esses intelectuais. Guardadas as especificidades e consideradas as pretensões de cada um, todos estavam envolvidos com o desvendamento das singularidades paraenses e das suas potencialidades. Os títulos de suas obras são muito sugestivos nesse sentido: História colonial do Pará, Ephemérides paraenses e História do Pará. 6 Essa, desde onde percebemos neste ponto de nossas reflexões, é a inflexão promovida por esse momento: a eleição da região como protagonista importante da narrativa construída.
O terceiro momento é protagonizado por Arthur Cezar Ferreira Reis. Seguidor de Gilberto Freyre, este intelectual amazonense arvorou-se da gigantesca tarefa de integrar a região nos quadros da historiografia nacional. Sua produção é demarcada por duas matrizes: em primeiro lugar, o estabelecimento de nexos entre a história nacional e a trajetória histórica amazônica; em segundo lugar, a valorização do Estado como o principal promotor das inflexões políticas, sociais e econômicas havidas na região.
A noção de plasticidade é uma constante na obra de Arthur Reis. Enquanto Gilberto Freyre a atribuía aos portugueses, o historiador da Amazônia a estendia aos demais agentes que participaram da formação da sociedade amazônica. A região que emerge da obra de Arthur Reis é diversa como o Brasil e compartilha das mesmas matrizes africanas, europeias e indígenas. Não é, porém, neste único sentido que sua obra se integra à historiografia tida como nacional. Ela buscou articular-se aos estudos que buscaram perceber o sentido da colonização.7
Arthur Cezar Ferreira Reis produziu por cerca de cinquenta anos, de modo que o quarto momento da historiografia colonial acerca da América portuguesa não lhe é subsequente, mas concomitante. É nele, todavia, que se percebe a maior inflexão na produção historiográfica de que tratamos. Até aqui, a experiência colonial portuguesa na região é percebida como uma narrativa sequencial, em relação à qual se atribui um único sentido, demarcado pelos primeiros cronistas, ao tempo da colônia. Significativo, nesse sentido, é o fato de os estudos referidos até aqui basearem-se, fundamentalmente, em um conjunto restrito de fontes de natureza oficial – marcadamente, cronistas e representantes da Coroa.
A produção subsequente introduz uma nova dimensão nas análises sobre a experiência colonial: o recurso a séries documentais, de natureza diversa, analisadas por meio de modelos conceituais que ensejavam a crítica às teses precedentes. Autores como Manuel Nunes Dias, Antonio Carreira, Ciro Flamarion Cardoso, Vicente Sales, Dauril Alden, Robin Leslie Andersen, David Sweet e John Hemming estabeleceram novas periodizações e inauguraram novos campos de pesquisa.8
Finalmente, o quinto momento. Estudos construídos desde a década de 1980 que, influenciados por essa última onda de trabalhos, aprofundaram a pesquisa documental e buscaram compreender outras nuances da vida colonial amazônica. Autores como Ângela Domingues, Antonio Porro, Auxiliomar Ugarte, Barbara Sommer, Décio Guzmán, Francisco Jorge dos Santos, José Alves de Souza Júnior, Maria Regina Celestino de Almeida e Nádia Farage9 ampliaram enormemente o escopo documental das análises. Documentos provenientes dos arquivos da região, assim como aqueles disponibilizados pela digitalização de arquivos portugueses permitiram o vislumbre de dimensões insuspeitas da vida amazônica.
Os artigos que compõem o dossiê participam desse último momento. A experiência colonial não é percebida mais como um bloco único e homogêneo. Isto decorre, em larga medida, da diversidade da documentação pesquisada e dos procedimentos de investigação adotados – correspondências, devassas e atestações, por exemplo, não são percebidos mais como expressões de um real a ser alcançado, mas como apropriações das experiências vividas.
Rafael Chambouleyron e Vanice Melo analisam a expansão agropecuária nas capitanias do Maranhão e do Piauí. A análise proposta relaciona a conquista de novas áreas coloniais a uma conjuntura complexa, na qual se articulam as relações intraelites e delas com a Coroa, as relações havidas com os povos indígenas e eventuais surtos epidêmicos. Márcia Mello analisa a formação da pequena nobreza na Amazônia portuguesa, apontando as redes nas quais os agentes sociais se inserem e adquirem sentido. Simei Torres perquire o degredo como uma estratégia política do Estado português, com vistas à manutenção dos domínios ultramarinos. Na Amazônia portuguesa, os degredados foram incorporados às iniciativas de ocupação, controle e exploração do território colonial. Almir Diniz de Carvalho Júnior considera a inserção dos povos indígenas na sociedade colonial por meio da categoria “índios cristãos”. Karl Arenz participa do dossiê apresentando a transcrição e tradução de um documento de autoria do padre luxemburguês João Felipe Bettendorff, superior da Missão do Maranhão. A carta situa as dificuldades da missão na Amazônia portuguesa e expõe as tensões que a Companhia de Jesus vivia em sua atuação no Império português. Seu artigo investiga as formas pelas quais os povos indígenas incorporados às unidades coloniais integraram-se às dinâmicas daquele novo universo sem deixar, no entanto, de impor limites às pretensões dos conquistadores. Mauro Cezar Coelho e Rafael Rogério Nascimento analisam o veredicto dos representantes da Coroa acerca da ação dos diretores das povoações do Diretório dos Índios. Conforme argumentam os autores, o que aqueles representantes percebem como desvios morais expressa, de outro modo, a emergência de poderes alheios aos interesses metropolitanos. Heather Roller perscruta a inserção de indígenas nas expedições de coleta das drogas do sertão. Seu artigo argumenta que o protagonismo indígena se manifestava na escolha por atividades garantidoras de certa autonomia, evidenciando a sua condição de agente histórico pleno, mesmo no interior da sociedade colonial. Juciene Ricarte Apolinário demonstra que as relações havidas entre a Coroa portuguesa e os povos indígenas não obedeceram aos princípios e projeções formulados. O interesse metropolitano em transformá-los em agentes defensores das fronteiras portuguesas não se concretizou sem negociações.
Ao analisarem as relações de poder e as sociabilidades recorrentes na fronteira equatorial da América portuguesa, os artigos aqui reunidos acusam algumas das singularidades da experiência colonial naquela porção equatorial do império. O primeiro aspecto a ser ressaltado é a distinção que aquela parte do território conquistado guarda em relação ao Estado do Brasil. A preponderância das atividades extrativas, a importância incontestável dos povos indígenas (tanto no que se refere à reprodução da matriz econômica, quanto no que tange à defesa do território) e a profunda maleabilidade da estrutura de poder (a qual, de um lado, demarcava vínculos com a Coroa e, de outro, balizava as relações internas, próprias da vida amazônica) vislumbram dinâmicas sociais singulares, próprias não apenas das regiões de fronteira, mas específicas da experiência equatorial amazônica.
Notas
- BERREDO, Bernardo Pereira de. Anais históricos do Estado do Maranhão. 2ª edição. Florença: Typographia Barbera, 1905.
- FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filosófica ao Rio Negro. 2ª edição. Organizada, atualizada, anotada e ampliada por Francisco Jorge dos Santos, Auxiliomar Silva Ugarte e Mateus Coimbra de Oliveira. Manaus: Edua / Editora do Inpa / Fapeam, 2007.
- Um terceiro autor compõe esse primeiro momento da produção historiográfica. Trata-se de Antonio Ladislau Monteiro Baena. Ainda que tenha vivido e escrito em meados do século XIX, no contexto das lutas pela Independência (as quais se arrastam, na Amazônia portuguesa, até o final da primeira metade do século XIX), a narrativa histórica de António Baena é profundamente devedora das duas obras citadas. Em relação à experiência portuguesa, Baena segue os autores que lhe antecederam, consolidando, portanto, a perspectiva inaugurada por Bernardo Pereira de Berredo e Alexandre Rodrigues Ferreira. BAENA, Antonio Ladislau Monteiro. Compêndio das eras da província do Pará. Belém: Universidade Federal do Pará, 1969.
- BARATA, Manoel. Formação histórica do Pará. Belém: Universidade Federal do Pará, 1973; BRAGA, Theodoro. Apostillas de historia do Pará. Belém: Imprensa Oficial do Estado, 1915; RAIOL, Domingos Antônio. Um capítulo de história colonial do Pará. Revista de Estudos Paraenses. Belém: Tip. do Diário Oficial. 1894.
- REIS, Arthur Cezar Ferreira. A formação espiritual da Amazônia. São Paulo: SPVEA, 1964; Idem. A Amazônia que os portugueses revelaram. Belém: Secretaria de Estado da Cultura, 1994; Idem. A Amazônia e a cobiça internacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
- DIAS, Manuel Nunes. Fomento e mercantilismo: a Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, 2 v. Belém: Universidade Federal do Pará, 1970; CARREIRA, António. A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão: o comércio monopolista Portugal-África-Brasil na segunda metade do século XVIII. São Paulo: Editora Nacional, 1988; CARDOSO, Ciro Flamarion S. Economia e sociedade em áreas coloniais periféricas: Guiana Francesa e Pará, 1750-1817. Rio de Janeiro: Graal, 1984; SALES, Vicente. O negro no Pará sob o regime da escravidão. Belém: IAP, 2005 (Programa Raízes); ALDEN, Dauril. O significado da produção de cacau na região amazônica, no fim do período colonial: um ensaio de história econômica comparada. Belém: UFPA / Naea, 1974; ANDERSON, Leslie Robinson. Following Curupira: colonization and migration in Pará, 1758 to 1930 as a study in settlement of the humid Tropics. Doctorate dissertation of Philosophy in History, University of California, Davis, 1976; SWEET, David G. A rich realm of nature destroyed: the middle Amazon valley, 1640-1750. PhD thesis, Madison, University of Wisconsin, 1974; HEMMING, John. Amazon frontier: the defeat of the Brazilian Indians. Londres: MacMillan, 1987.
- DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000; PORRO, Antonio. O povo das águas: ensaios de etno-história amazônica. Rio de Janeiro: Vozes, 1995; UGARTE, Auxiliomar Silva. Sertões de bárbaros: o mundo natural e as sociedades indígenas da Amazônia na visão dos cronistas ibéricos (séculos XVI-XVII). Manaus: Editora Valer, 2009; SOMMER, Barbara A. Negotiated settlements: native Amazonians and Portuguese policy in Pará, Brazil, 1758-1798. Doctorate dissertation of Philosophy, History, University of New Mexico, Albuquerque, 2000; GUZMÁN, Décio. História de brancos: memória e historiografia dos índios Manao do Rio Negro (sécs. XVIII-XX). Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998; SANTOS, Francisco Jorge dos. Além da conquista: guerras e rebeliões indígenas na Amazônia pombalina. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1999; SOUZA JÚNIOR, José Alves de. Tramas do cotidiano: religião, política, guerra e negócios no Grão-Pará dos Setecentos – um estudo sobre a Companhia de Jesus e a política pombalina. Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2009; ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os vassalos d’el rey nos confins da Amazônia: a colonização da Amazônia ocidental, 1750-1798. Dissertação de mestrado, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1990; FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões: os povos indígenas no Rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Anpocs, 1991.
Patrícia Melo Sampaio – Possui mestrado (1994) e doutorado em História (2001) pela Universidade Federal Fluminense e pós-doutorado pela Unicamp (2013). Desde 1986 é professora do Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas. Atua nas áreas de história indígena e do indigenismo, história colonial / imperial (Brasil e Amazônia) e história da escravidão africana na Amazônia. É líder do grupo de pesquisa História Indígena e da Escravidão Africana na Amazônia (Hindia) e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Política, Instituições e Práticas Sociais – Polis. Participa do mestrado de História (PPGH / Ufam) e do mestrado / doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA / Ufam) (Fonte: Plataforma Lattes / CNPq).
Mauro Cezar Coelho – Possui graduação e bacharelado em História pela Universidade Federal Fluminense (1994), graduação e licenciatura em História pela Universidade Federal Fluminense (1994), mestrado em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1996) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (2006). Atualmente é coordenador de curso de licenciatura em História / PARFOR da Universidade Federal do Pará e professor adjunto na mesma universidade. Tem experiência na área de História, com ênfase em História colonial e ensino de História, atuando principalmente nos seguintes temas: Amazônia colonial, história indígena e do indigenismo, história da ciência, história da educação e ensino de história (Fonte: Plataforma Lattes / CNPq).
COELHO, Mauro Cezar; SAMPAIO, Patrícia Melo. Apresentação. Revista de História, São Paulo, n. 168, 2013. Acessar publicação original [DR]
Dinâmica institucional nas Américas: questões historiográficas (1640-1840) / Revista de História / 2013
Longe de apresentar-se homogêneo e uniforme, este conjunto de artigos sobre a dinâmica institucional nas Américas entre os séculos XVII e XIX incorpora contribuições caracterizadas pela diversidade de temas e de problemas teórico-metodológicos e historiográficos. Nele se representam diferentes modos de pensar a história, a historiografia e a caracterização do período multissecular recoberto pelas balizas temporais deste dossiê. Assim, este conjunto de artigos não revela qualquer coesão ou uniformidade relativamente a escolas, tendências ou grupos de pesquisa instalados ou hegemônicos no Brasil ou fora dele. Dentre os artigos aqui reunidos, alguns, por um lado, acenam para filiações a problemas e modelos de análise instituídos em centros de pesquisa e em programas de pós-graduação reconhecidos, os quais ainda projetam grande potencial de inovação na elaboração de referenciais teórico-metodológicos e na interpretação do material empírico e historiográfico. Por outro lado, outros apontam para nítidas rupturas com modelos estabelecidos e formulam problemas distintos daqueles repetidos a exaustão em teses e dissertações, bem como em livros e artigos de historiadores e epígonos identificados com grupos de pesquisa e programas de pós-graduação específicos. Não queremos aqui valorar um ou outro tipo de orientação teórico-metodológica, nem sugerir que uma seja mais ou menos adequada que outra. Antes, o importante é reunir tais contribuições, fazê-las dialogar entre si e permitir ao leitor um debate livre de amarras e o mais distanciado possível de projetos acadêmicos de poder. Em suma, se há, por um lado, diversidade considerável entre os textos em decorrência das distintas formas de abordagem que adotam, há, por outro lado, condições iguais à partida para sua apreciação, comparação e discussão conjunta, condição indispensável ao debate científico.
O período compreendido pelos artigos que conformam este dossiê constitui tradicionalmente objeto de intensas discussões teórico-metodológicas. Uma vez que examinam temas ligados ao escravismo, à religião católica, às instituições militares, às condições de nobreza, ao direito e à justiça, bem como à administração, os artigos aqui reunidos são igualmente atravessados por estas discussões, embora não se limitem a elas. Para além do tratamento historiográfico e das discussões teórico-metodológicas que ensejam, todos se acercam, em maior ou menor grau, de bases empíricas que conferem às suas análises densidade e grande potencial de formulação de novos problemas científicos. Como propõe Pierre Bourdieu, faz-se sempre necessário desconfiar da “teoria teórica”, isto é, do “discurso profético ou programático que tem em si mesmo o seu próprio fim e que nasce e vive da defrontação com outras teorias”.1
Ao mesmo tempo, três características se destacam na maior parte dos artigos aqui apresentados. Em primeiro lugar, referimo-nos à opção pela abordagem comparativa ou, no limite, conectada dos fenômenos investigados. No mínimo, consideram-se os processos examinados em impérios coloniais distintos – o português e o espanhol – e, também, no limite, é o mundo atlântico, ou a economia-mundo, a escala ou configuração mais abrangente de sua análise ou de suas abordagens historiográficas. Muitos desses processos e abordagens ficariam na penumbra ou jamais seriam considerados caso fossem confinados a perspectivas estritamente nacionais ou regionais de historiografia. Constitui desafio considerável examinar o escravismo, as instituições militares, a administração, o direito, a justiça e o constitucionalismo, bem como a religião católica e suas instâncias efetivas, como o bispado, a paróquia e a irmandade, à luz de dados empíricos e problemas de interpretação presentes em diferentes tradições historiográficas. Tal procedimento nos permite propor, através de modelos próprios de análise, distintos de todos os demais, novos problemas teóricos e formas inovadoras e criativas de interpretação do material empírico a partir de tal alargamento de perspectiva. Enfim, a tendência da maioria dos artigos aqui presentes é a de romper com a construção de objetos confinados a capitanias ou impérios coloniais específicos, bem como com a mera comparação de processos observáveis no interior destes níveis de análise. Intenta-se, indo-se além, conectar tais processos mediante a elaboração de modelos de análise que rompam, igualmente, com supostas e aparentes singularidades dos fenômenos históricos.
Em segundo lugar, na vasta maioria dos artigos aqui apresentados, optou-se por deslocar exames de períodos curtos, próprios às abordagens monográficas, em favor de perspectivas estruturais e de longo prazo. São estas que permitem análises processuais, contemplar padrões de conexão, observar transformações e mudanças na longa duração. Compreender as metamorfoses da nobreza e da riqueza ao longo do Antigo Regime, as transformações e as modalidades da administração das fronteiras, a gênese e a institucionalização de corpos militares, o peso e o impacto das reformas do século XVIII sobre a gestão de instâncias de efetivação da religião católica – paróquias, irmandades e confrarias –, bem como entender a criação e o desenvolvimento de um campo de tensões envolvendo a justiça e o direito no período compreendido entre a era de formação dos impérios coloniais e a era das revoluções atlânticas e dos constitucionalismos, apenas se tornam tarefas viáveis mediante análises processuais de longo prazo.
Em terceiro lugar, uma diversidade considerável de indivíduos, grupos e classes sociais foi contemplada nas análises propostas através dos artigos. Ademais, suas relações no interior de configurações sociais menores ou mais abrangentes, interdependentes e conectadas, são, ao mesmo tempo, examinadas mediante a análise dos campos de tensões específicos que formavam. Análises de indivíduos, grupos e classes sociais identificados como nobreza peninsular, camadas abastadas da América portuguesa ou do Império espanhol, indígenas, escravos africanos e seus descendentes livres ou cativos nascidos na América, burocratas, juristas e militares envolvidos na administração das capitanias, das câmaras e das instâncias ao mesmo tempo judiciárias e executivas e, finalmente, padres, bispos e prelados produzem um olhar de conjunto sobre as configurações sociais de tipo antigo aqui privilegiadas, bem como sobre suas relações sociais e de poder. Jamais tomados isoladamente, mas sempre sob uma perspectiva relacional, indivíduos, grupos e classes sociais são examinados vis a vis às estruturas e configurações que formam com outros indivíduos, grupos e classes sociais. Finalmente, destaque-se que nós mesmos, historiadores sociais, somos observados como grupo social em artigos aqui presentes. Reflexivamente, porque estamos, todos, situados numa quinta dimensão, a dos símbolos linguísticos, encarnamos aqui sujeitos e objetos de nossa própria análise, 2 vinculados, através de nosso ofício, ao exame da sociedade de tipo antigo.
Muitos dos artigos aqui reunidos retomam antigos problemas de historiografia e também de sociologia. Outros dialogam com tradições científicas soterradas nos últimos anos, as quais ressurgem renovadas graças às necessidades de restabelecermos enfoques baseados em visões de longo prazo e em configurações abrangentes, como os impérios coloniais, o mundo atlântico ou a economia-mundo. Também se faz necessário recorrer a teorias sociológicas de modo a construirmos modelos teóricos que nos permitam, por um lado, examinar configurações sociais a partir dos modos de ligação efetivos entre indivíduos, grupos e classes sociais, com seus distintos potenciais de retenção de poder, e, por outro lado, sublinhar planos de conexões entre diferentes sociedades, em geral apartadas por ranços nacionalistas ou, ainda pior, por perspectivas de cunho regional. Ademais, precisamos romper com o singularismo que levou a disciplina histórica a um beco sem saída. Entendemos que este dossiê colabora para uma visão mais integrada e mais conectada de processos sociais, e vai daí retomarmos antigas abordagens – que muitas vezes são mais adequadas ao exame de novos problemas estruturais que a mera novidade disponível no mercado.
Notas
1. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989, p. 59.
2, ELIAS, Norbert. Teoria simbólica. Oeiras: Celta, 1994, p. 47.
Luiz Geraldo Silva – Professor associado do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e bolsista de Produtividade em Pesquisa – CNPq. E-mail: gerter@terra.com.br
Marco Antônio Silveira – Professor adjunto da Universidade Federal de Ouro Preto, doutor pela Universidade de São Paulo e bolsista de Produtividade em Pesquisa – CNPq. E-mail: mantoniosilveira@yahoo.com.br
SILVA, Luiz Geraldo; SILVEIRA, Marco Antônio. Apresentação. Revista de História, São Paulo, n. 169, 2013. Acessar publicação original [DR]
A imagem medieval: história e teoria / Revista de História / 2011
Homenagem aos 65 anos de Jean-Claude Schmitt
O presente dossiê temático é fruto de um workshop realizado em 4 e 5 de novembro de 2010 no Departamento de História, organizado pelo Laboratório de Teoria e História da Imagem e da Música Medievais e promovido pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo e pelo Groupe d’Anthropologie Historique de l’Occident Médiéval, da École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris). Em razão do excelente nível dos trabalhos apresentados quando do workshop, pareceu-nos importante dar sequência à iniciativa, disponibilizando para um público mais amplo que o dos presentes no evento os trabalhos então apresentados. Nesta nova versão, os cinco textos originários do workshop (de autoria de Eduardo Henrik Aubert, Maria Cristina C. L. Pereira, Paloma Lima, Diogo Rodrigues de Barros e Philippe Cordez), revistos e ampliados, foram complementados por mais três artigos, inéditos eles também, de pesquisadores que desejaram se associar à empreitada (Herbert Kessler, Daniel Russo e Elisa Brilli) e por seis resenhas de alguns dos mais significativos livros sobre imagens medievais e teoria da imagem recentemente publicados no Brasil e no exterior, preparadas por outros colaboradores.
Um dossiê temático sobre as imagens medievais tem por objetivo central ajudar a suprir uma importante lacuna bibliográfica no Brasil. O assunto ainda é pouco estudado na academia brasileira, ao menos em parte como herança da época, não tão remota, em que a circulação de informações e, sobretudo, de fontes ainda era bastante difícil. Ora, com a revolução silenciosa dos bancos de imagens digitais e de livre acesso na internet e com os recentes e renovados investimentos nas bibliotecas públicas brasileiras, a possibilidade de trabalhar com imagens medievais no Brasil se torna mais próxima.
A nova situação documental permite recuperar as imagens medievais no contexto do projeto sempre atual dos primeiros historiadores da chamada “Escola dos Annales”, para quem tudo o que foi produzido pelo passado é potencialmente documento para o historiador. No caso da imagem medieval, há, ademais, toda uma rica e variegada tradição de estudos realizados por historiadores da arte, ainda pouco conhecidos pelos historiadores. E isso apesar de importantes experiências de colaboração em alguns centros, dentre os quais se pode contar o próprio Groupe d’Anthropologie Historique de l’Occident Médiéval, herdeiro direto dos Annales, que abriga uma seção dedicada ao estudo das imagens medievais desde 1983.
Na linhagem dessas experiências, este dossiê temático procura destacar a importância do estudo das imagens medievais como um espaço de reflexão teórica, entendendo que esse campo de investigações pode contribuir não apenas produzindo conhecimento específico sobre realidades históricas particulares a partir da análise de fontes insuficientemente exploradas, mas também como uma atividade produtora de conceitos que podem integrar o arsenal teórico das ciências humanas e sociais.
Neste sentido, buscamos colocar em prática e difundir o objetivo principal do Laboratório de Teoria e História da Imagem e da Música Medievais, que é o de promover o diálogo constante entre a reflexão teórica e a práxis historiográfica no campo específico da imagem e da música medievais, partindo do pressuposto definidor de que não há nem independência nem prioridade entre as instâncias teórica e histórica. Ao contrário, diante do perigo da alienação mútua, como lembra Georges Didi-Huberman, “a prática salutar [é]: dialetizar.”
É com muita satisfação e com profundo reconhecimento que dedicamos este dossiê a um dos mais ativos promotores do estudo da imagem medieval no último quarto de século, o professor Jean-Claude Schmitt, diretor do Groupe d’Anthropologie Historique de l’Occident Médiéval, orientador do doutorado de metade dos autores dos artigos deste dossiê (Eduardo Henrik Aubert, Elisa Brilli, Philippe Cordez, Maria Cristina C. L. Pereira), no ano em que ele comemora os seus 65 anos.
Historiador infatigável que transita com igual maestria entre as grandes sínteses e os estudos de caso, ele soube, junto com seus colaboradores próximos, em especial Jérôme Baschet, Jean-Claude Bonne e Michel Pastoureau, ancorar o estudo das imagens na prática dos historiadores do Ocidente medieval, não apenas por meio de suas diversas publicações, mas também por seus seminários e pela transmissão paciente da prática de análise e reflexão cultivada semanalmente nos tradicionais encontros do “Groupe Images” às terças-feiras à tarde, com o fito de indexar um amplo conjunto de iluminuras medievais que hoje constituem um impressionante banco de dados à disposição dos pesquisadores interessados. São explorações de um terreno em grande parte moldado por seu trabalho que oferecemos aqui, simultaneamente a ele e ao público leitor da Revista de História.
Maria Cristina Correia Leandro Pereira
Eduardo Henrik Aubert
Organizadores
AUBERT, Eduardo Henrik; PEREIRA, Maria Cristina Correia Leandro. Apresentação. Revista de História, São Paulo, n. 165, 2011. Acessar publicação original [DR]
Ensino de História / Revista de História / 2011
Este número da Revista de História traz um dossiê de artigos dedicados ao ensino de História, escritos por autores de diferentes localidades brasileiras e uma variedade de temas que expressam campos distintos de estudos acadêmicos, mas que se encontram em um lugar comum entre a universidade e a escola. Os dois anos necessários para produzi-lo indicam o fato de que hoje, e cada vez mais, há espaços para publicação dos trabalhos dos pesquisadores envolvidos com o ensino de História, criando demandas para os profissionais que transitam entre a história da educação, as metodologias de ensino e as produções historiográficas. Este dossiê é, assim, um entre muitos dossiês lançados recentemente que delimitam um profícuo campo de estudo e pesquisa. Este tem sua contribuição. Divulga alguns importantes percursos de estudos que sinalizam lugares teóricos comuns, distintos e complementares de trajetórias construídas nas últimas décadas. Autores e temáticas de procedências diversas nele dialogam e convidam também o leitor a se unir às suas diligências.
O universo da história da educação, envolvendo políticas públicas e preservação de arquivos educacionais, constitui a temática do primeiro artigo escrito por duas professoras e uma pesquisadora ligadas ao Centro de Memória da Educação da Faculdade de Educação da USP – Maria Cecília Cortez C. de Souza, Carmen Sylvia Vidigal Moraes e Iomar Zaia. O texto apresenta as mudanças nas orientações políticas de preservação da memória histórica escolar no Brasil, que só passou a ser mais recentemente valorizada a partir de referências teóricas da história social, junto com o reconhecimento de que a história da educação vai muito além das ações políticas do Estado, e que fundamentalmente envolve a história da diversidade social presente no cotidiano da escola e na sociedade brasileira. Com isso, segundo as autoras, foram intensificadas, nas duas últimas décadas, as iniciativas de “preservação do patrimônio histórico escolar – arquitetônico, iconográfico, textual e museológico – favorecendo a potencialidade das fontes documentais como geradoras de pesquisas”. O texto apresenta, nessa perspectiva, a trajetória histórica dos entraves das políticas públicas voltadas para esses fins, e as recentes iniciativas de pesquisa envolvendo os arquivos escolares das escolas públicas paulistas.
A importância da documentação dos centros de memória educacional pode ser percebida no segundo artigo, escrito por André Coura Rodrigues, pesquisador do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da USP, que analisa as estratégias de imposição de uma a cultura escolar em Minas Gerais, nos primeiros anos de vigência da Reforma João Pinheiro (1906-1911). Baseado no conceito de cultura escolar, enunciado por Dominique Juliá, o autor procura revelar a escola enquanto prática, redirecionando o olhar para seu funcionamento interno, mesmo utilizando uma documentação oficial. Avalia como as escolas mineiras passaram por transformações pela ação dos republicanos, a partir de projetos de modernidade nos moldes europeus. Analisa a substituição das escolas “isoladas” pelos grupos escolares, no contexto de institucionalização de “uma nova cultura, com tempo, espaço e métodos de ensino regulamentados, previamente definidos”, homogeneizando padrões para alunos, professores, conteúdos, disciplinas escolares e livros didáticos. Amplia ainda a análise apresentando as relações descompassadas entre compradores oficiais e editoras, interferindo nos percursos imprevisíveis dos livros didáticos e no projeto de implantação de uma nova pedagogia pretendida pelo Estado.
O vídeo, como trabalho experimental em arqueologia e como material didático para o uso no ensino de história, é o tema do terceiro artigo, escrito por Silvio Luiz Cordeiro, pesquisador do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Partindo de reflexões a respeito da paisagem urbana atual da cidade de São Paulo e na perspectiva de cineasta que vê o mundo através de imagens e seus movimentos, o autor discute o patrimônio histórico urbano, buscando vestígios arqueológicos possíveis de serem captados em registros documentais fílmicos, como expressões de relações temporais que os objetos e as construções estabelecem no espaço da cidade. Como explica o autor, o vídeo é “mais que uma via de difusão de conteúdos da arqueologia urbana: é também um meio propício para se desenvolver e exercitar uma leitura do espaço, uma leitura do habitat, de suas temporalidades, por um olhar prospectivo, indagador, que compreenda os remanescentes históricos urbanos, interpretando-se a história ali inscrita, ali atuante, presente”. O artigo apresenta especialmente o contexto de produção do vídeo Siracusa – Cidade antiga, decorrente dos trabalhos de pesquisadores do Laboratório de Estudos sobre a Cidade Antiga – Labeca, do MAE / USP.
Maria do Céu de Melo e Margarida Durães, professoras e pesquisadoras da Universidade do Minho / Portugal, são as autoras do quarto artigo que apresenta proposições de ensino de História na universidade, com base em reflexões críticas e envolvendo questionamentos de biografias e fotobiografias. A proposta contempla o trabalho metodológico do historiador no contexto de ensino, através da análise de documentos na sala de aula. Nessa linha, o ensino de história avança, em suas proposições, na medida em que o texto apresenta a importância em considerar os conhecimentos prévios de alunos e de professores, as diferentes dimensões possíveis de questionamentos dirigidos às fontes documentais e a necessária atenção a ser dada ao gênero e à linguagem da narrativa histórica analisada.
O quinto texto desse dossiê é de autoria de Arlette Medeiros Gasparello, professora da Universidade Federal Fluminense, que analisa a historicidade de um intelectual brasileiro do século XIX, Joaquim Manuel de Macedo, que se tornou romancista, médico e professor de História do Colégio de Pedro II, e autor de uma importante obra didática para o ensino de história, Lições da história do Brasil, publicada em 1861. No texto, a autora procura entender os “atores coletivos – os intelectuais como professores / autores – e aos processos que emergem das relações sociais, como circulação de saberes e sociabilidade”, em um contexto específico. E, assim, busca as relações entre o contexto social e cultural do Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, a história pessoal e intelectual de Macedo, a conjuntura que desencadeou a elaboração das primeiras obras didáticas de História do Brasil e a obra em si como uma construção que “tornou pública uma história nacional e orientou um método para o ensino e a aprendizagem em História”.
Entre variadas temáticas de pesquisa, os estudos da história do livro didático têm sido ampliados nas últimas décadas. E esse é o recorte da autora do sexto artigo, Circe Maria Fernandes Bittencourt, professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. O artigo faz um balanço das pesquisas sobre o livro didático de História, de 1980 à primeira década do século XXI, a partir do levantamento de teses, dissertações e publicações no Brasil. Esse balanço possibilita reflexões históricas das tendências predominantes ao longo dos últimos trinta anos sobre o tema, recuperando a relação entre os contextos históricos da educação brasileira e as abordagens desenvolvidas nos estudos sobre livros didáticos. O esforço da autora foi de apresentar uma história de conflitos entre tendências de análises e, ao mesmo tempo, de avanços na complexidade e abrangência na compreensão do objeto de estudo que passou a ser o livro didático de História. De uma perspectiva de análise quase exclusivamente de valores e ideologias de conteúdo, e de uma dependência da produção historiográfica, os livros didáticos de História, sob a ótica de novos conceitos e análises educacionais e históricas, passaram a ser entendidos, pelos pesquisadores, a partir de suas mais variadas dimensões, usos, inserções, funções e relações sociais.
O conjunto dos trabalhos desse dossiê demonstra como o ensino de História não prescinde de sua relação com a história da educação e nem do diálogo necessário e fundamental com as reflexões historiográficas. E demonstra como um longo percurso já foi percorrido na consolidação desse campo de conhecimento alimentado pelos múltiplos diálogos e temáticas.
Antonia Terra de Calazans Fernandes
FERNANDES, Antonia Terra de Calazans. Apresentação. Revista de História, São Paulo, n. 164, 2011. Acessar publicação original [DR]
História e Futebol / Revista de História / 2010
Como o Brasil entra em campo Como o Brasil entra em campo
Fascínio. Excitação. Obsessão. Ilusão. O comportamento de milhões de homens e mulheres diante do futebol e das mais diversas modalidades lúdicas revela uma situação que beira o paradoxo. A rigor, o futebol não produz nada, opõe-se ao trabalho e é essencialmente estéril. No entanto, ocupa lugar privilegiado nas sociedades industriais, regidas pela ideologia do trabalho e da produtividade. Trata-se de uma inutilidade saborosa, manifestação da frivolidade humana disseminada em todas as classes sociais. Uma inebriante sedução vinculada a uma sociedade lúdica.
Como conjunto de símbolos, gestos e ritualizações, o futebol tornou-se uma linguagem compreensível em quase todas as partes do mundo contemporâneo. Pode ser identificado como uma criação humana que estabelece um universo temporário inserido no mundo habitual, com regras, tempos e espaços específicos: um verdadeiro microcosmo. Se de um lado provoca a suspensão temporária da rotina cotidiana, de outro se abre em janelas reveladoras das características e tensões de uma dada formação social num determinado momento histórico. Como ocorre com as festas, o futebol (e os jogos em geral) também estabelece relações de reiterações e negações da ordem social.
No interior desse complexo fenômeno, a economia de rivalidades simbólicas, a constituição de alteridades a serem enfrentadas estabelece-se pari passu às disputas simbólicas pelos significados do torcer no interior de um mesmo grupo identitário (isto é, de uma determinada torcida) e revela um conjunto variado de sociabilidades que se estabelece a partir do universo do futebol, que vive nele e fora dela. Nessa intricada dinâmica, muitas vezes salta aos olhos a questão da violência entre as torcidas, pertencente ao tema mais amplo da violência social, mas ritualizado no âmbito das disputas esportivas e da constituição das identidades clubísticas. Essa problemática da condição torcedora e seus meandros sociais, culturais e psicológicos tem sido preocupação de diversos estudos acadêmicos, alguns deles apresentados a seguir neste dossiê.
Na realidade, essas investigações têm apresentado um quadro temático bastante diversificado e extenso que provavelmente já indica a formação de um território historiográfico específico. Transcorridos pouco mais de vinte anos desde as primeiras investidas acadêmicas, as pesquisas sobre futebol no Brasil começam a ocupar lugar de destaque na lista dos temas mais visitados pelas ciências humanas. Não é exagerado afirmar que, nos dias de hoje, os pesquisadores, finalmente, aceitaram entrar em campo e encarar tais questões.
Um dos maiores desafios enfrentados pelos investigadores brasileiros ainda tem sido o de obter o reconhecimento da validade e da legitimidade de tais estudos. Tema fartamente utilizado como matéria-prima para o feitio de identidades e essencializações nacionais e visto como ingrediente do senso comum, o futebol constitui-se como um poderoso operador cultural, símbolo flutuante, dotado de determinadas ambivalências que precisam ser avaliadas e problematizadas pelos investigadores. E que, sobretudo, requer o cuidadoso exame de suas práticas historicamente circunstanciadas e analisadas no jogo de suas relações sociais.
Afastados da gangorra interpretativa impulsionada por frustrações e projeções de um pretenso caráter nacional, eles procuram pensar no futebol também como uma chave privilegiada para a compreensão da nossa sociedade e para desconstruir determinados estereótipos e idealizações insistentemente reiteradas. Nesse sentido, o Brasil não é “o país do futebol” mais do que Argentina, Inglaterra, Espanha e Itália, onde sua prática é também capaz de potencializar e expressar determinadas tensões sociais. O estilo brasileiro não se diferencia do “jogo duro dos gringos” por uma predisposição natural, uma prontidão coletiva, nem tampouco devido à sua miscigenação étnica. O drible – insulto gestual sem violência, criativo domínio da bola, do corpo, do tempo e do espaço para iludir o adversário – não é uma prerrogativa exclusiva da “genialidade brasileira”. A existência hoje de um “estilo brasileiro de jogar”, entendido como o manejo particular de um repertório de habilidades técnicas e táticas individuais e coletivas, deve ser posto em xeque devido à diversidade regional do país e ao embaralhamento provocado pela globalização. Ao mesmo tempo, ele indica uma forma muito singular do jogo que precisa ser compreendida nas suas especificidades diferenciadoras. Há uma dinâmica cultural própria que ainda precisa ser criticamente desvendada, fora dos limites da exaltação e das mitificações usuais, para compreendermos melhor nossa sociedade. Não é tarefa fácil, mas muitos investigadores têm participado dessa construção e este dossiê pretende ser mais uma colaboração nessa direção.
Assim, a partir das últimas décadas, aos atores sociais mais frequentemente identificados no campo esportivo futebolístico, como profissionais (jogadores, técnicos, preparadores físicos e dirigentes), especialistas (jornalistas, cronistas e memorialistas) e torcedores (organizados, uniformizados e vips), deve ser acrescentado agora um conjunto extenso de pesquisadores universitários. A organização de grupos de pesquisa, debates, seminários, encontros e simpósios têm permitido a circulação de reflexões, conhecimentos e práticas. Sem dúvida, do ponto de vista acadêmico, a convivência entre profissionais de formações diversas imprimiu um estimulante caráter transdisciplinar, como poderá ser observado no conjunto de textos que seguem.
Ainda que o quadro aponte para essa salutar interdisciplinaridade, o artigo que abre o dossiê, De alma lavada e coração pulsante, é escrito pelo historiador Bóris Fausto. Intelectual experimentado e com obra historiográfica reconhecida, já há algum tempo procura certa aproximação com a temática do futebol, seja de maneira incidental – como no universo da memória em Negócios e ócios (1997) – ou de forma mais manifesta, como em O crime do restaurante chinês. Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30 (2009). Pois o texto que apresenta tem definição clara: discutir o universo do futebol na perspectiva do torcedor convicto – como ele é! – e não dos torcedores de circunstância. Sendo assim, ele transita pelas sinuosidades psicológicas desse sujeito, suas subjetividades e os conflitos que sua paixão produz. O texto cruza elementos da memória individual e da coletiva, com problematizações de caráter sociológico e historiográfico. Assim, ele funde, na linha do horizonte da interpretação, suas experiências pessoais – de torcedor e historiador – com reflexões que indicam caminhos e análises interpretativas.
A entrevista realizada com o economista Luiz Gonzaga Belluzzo de certo modo segue ritmo semelhante: a do intelectual reconhecido que revela sua condição torcedora, mas sem abrir mão do instrumental intelectual para refletir sobre o mundo da bola. No entanto, sua trajetória carrega uma singularidade mais vigorosa e intrigante, já que também presidiu importante clube paulistano: a Sociedade Esportiva Palmeiras (biênio 2009-2010). Desta maneira, seu depoimento mostra as tensões existentes entre o intelectual que tende “a agir mais racionalmente” e o torcedor que “age pela emoção” e por “atitudes irracionais”. Acontece que justamente essa condição torcedora o tornou presidente do clube que, por sua vez, o obriga a práticas administrativas racionalizadoras, mas, antiteticamente, impõe a defesa intransigente do seu time em todos os espaços (imprensa, federações etc.). Em meio a essas tensões e dilemas humanos, de resto quase impossíveis de superar, Belluzzo nos mostra também um pouco dos bastidores do universo clubístico e das relações políticas e interesses econômicos que envolvem o futebol nacional e internacional.
A questão torcedora também aparece, com outros enfoques e abordagens, em mais dois artigos: Torcer: a metafísica do homem comum, de Luiz Henrique de Toledo, e A babel do futebol: atletas interculturais e torcedores ultras, escrito por José Paulo Florenzano. Os autores, pesquisadores vindos da antropologia, área das ciências humanas que acolheu o tema de maneira precursora, têm o futebol desde sempre como objeto de suas investigações acadêmicas e das reflexões sobre as dinâmicas sociais. Florenzano realiza intricada articulação entre os processos abrangentes e globais do futebol, com as conjunturas e casos mais específicos. Assim ele mostra como o futebol contemporâneo impõe a circulação de atletas (no caso do artigo, os jogadores africanos) e como ela gera mitos raciais (da destreza simbólica dos jogadores negros) e práticas racistas de certas torcidas. O cenário em que transcorre a ação é formado pela conjuntura social e política polarizada da Itália do fim do século XX, associada ao futebol empresarial do calcio italiano e à formação das “torcidas ultra” com suas práticas violentas e racistas. Neste panorama tenso, ele discute como os jogadores africanos procuram superar as representações negativas e articular novos significados sociais para o jogo e suas vidas.
Toledo, por sua vez, faz uma análise com perfil histórico-antropológico, já que procura recuperar as principais etapas de formação e transformação da experiência torcedora ao longo do século XX. Ele revela como houve neste longo processo mudanças significativas da “socialidade torcedora”, desde a prática da “assistência” das massas dos anos 1930 / 40 na cidade de São Paulo, à formação das torcidas organizadas em meados do século, seguida de sua repressão e o aparecimento, nos anos 1990 do “torcedor individual” e “cliente”. Deste modo, ele mostra o caráter múltiplo e descontínuo dessa prática torcedora, impossível de ser enquadrada em caracterizações monolíticas e essencializações do tipotorcedor. Para o autor essas transformações determinaram alterações evidentes nas práticas mais plásticas das torcidas e nas experiências coletivas nos estádios, mas, sobretudo, repercutiram nas elaborações das “relações lúdicas” presentes no cotidiano urbano, foco central de suas análises.
As múltiplas relações entre o cotidiano urbano e o futebol são retomadas também do ponto de vista historiográfico por Plínio Labriola no artigo A luz do lampião e a cidade invadida. O eixo para discutir essas relações é a história do Sport Club Corinthians Paulista. No longo arco temporal centenário do time, o autor escolhe dois momentos chaves para reflexão: a fundação do clube de bairro em 1910 e a conhecida “invasão corintiana” do Maracanã em 1976. No primeiro recorte, são salientadas as origens populares do clube e sua gradativa identificação com a cidade de São Paulo, onde os torcedores aparecem nas suas especificidades, mobilizando-se nos espaços urbanos. Neste lento processo de construção, difusão e ampliação da torcida, o clube aparece como “o time do povo”. No segundo momento, a metáfora da “conquista urbana” se dá em outra dinâmica, que é a do “tempo curto” mais pontual e que cria intenso impacto: a invasão da cidade do Rio de Janeiro e do estádio do Maracanã. O autor apresenta o quadro multifacetado do episódio de 1976 e sua importância para a construção da memória do time e da suposta “alma corintiana”, indicando também a presença dos anseios reprimidos de uma liberdade que começava a ser reivindicada no país. Atento às armadilhas da memória instituída pelo marco da origem e do evento representativo, Labriola articula de modo crítico essas construções da rememoração.
As problemáticas da construção da memória do futebol e das “identidades” também estão presentes no artigo de Fábio Franzini, Da expectativa fremente à decepção amarga: o Brasil e a Copa do Mundo de 1950. Muitos intérpretes consideram esse evento como dos mais importantes da história do futebol brasileiro, incluídas as conquistas e vitórias posteriores. Por isso o autor revela com cuidado como ele foi projetado, desde a escolha da sede até sua condição para se tornar ato de consagração nacional. O resultado foi o conhecido fracasso, amargo e traumático do ponto de vista da memória coletiva, e tratado à época como revelador de certo traço de nossa singularidade que Nelson Rodrigues cunhou como “complexo de vira-lata”. Baseado em fontes documentais sólidas e diversificadas, Franzini reconstrói os processos políticos em torno do acontecimento, a participação da seleção brasileira de futebol e as tensões da memória, para discutir os dilemas da sociedade brasileira da década de 1950. Certamente por essa condição o evento é constantemente relembrado por memorialistas e jornalistas, tornou-se foco de dezenas de análises, críticas e interpretações, e até serviu de tema de romances e produções cinematográficas.
Embora alguns filmes abordem a derrota na Copa de 1950 (como o documentário Copa do Mundo de 1950, dirigido em 1950 por Milton Rodrigues e produzido por Mário Filho, ou o documentário-ficção Barbosa, dirigido por Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado, de 1988, baseado na obra de Paulo Perdigão, Anatomia de uma derrota), o sociólogo Mauricio Murad em seu artigo, Futebol e cinema no Brasil: um enredo procura outros roteiros para discutir as relações entre o cinema e o futebol. Em primeiro lugar, ele identifica certa sintonia nas dinâmicas históricas e sociais dos dois fenômenos culturais (como chegaram ao país, os espaços sociais que ocupam, sua popularização) e o papel que ambos tiveram na formação de nosso ethos coletivo e nossa “modernidade”. Nesse sentido, traça paralelos entre a história da apropriação, popularização e ressignificação do futebol, com os ciclos da cinematografia nacional, desde o início do século XX passando pelos ciclos da Chanchada e do Cinema Novo. Mas sua questão central parece ser o alerta de que há muito filmes nacionais sobre o tema “mas ainda é muito pouco, considerando-se a importância sociológica e estética de nosso futebol e de nosso cinema”. Por isso ele conclui que “o futebol não se consolidou ainda como argumento para o cinema brasileiro” e, por extensão, “para todas as nossas expressões artísticas”.
Já o artigo A patrimonialização do futebol: notas sobre o Museu do Futebol, das antropólogas Clara Azevedo e Daniela Alfonsi, destaca como o fenômeno já está integrado ao imaginário da cultura nacional, a ponto de merecer um museu específico que reúne e consagra parte de sua memória. Mas além de pesquisadoras, elas são também diretoras do Museu do Futebol, inaugurado em 2008, e localizado no Estádio do Pacaembu, em São Paulo. Essa dupla condição permite que apresentem uma interessante radiografia do funcionamento da instituição, suas características integradoras e inovadoras. Além disso, discutem os dilemas em torno da seleção daquilo que pode e deve ser musealizado e preservado, os aspectos simbólicos desta dinâmica e até o comportamento dos visitantes e suas relações com o acervo exposto. Por fim, elas não se recusam a refletir sobre os desafios da patrimonialização de um fenômeno muito dinâmico que atravessa diferentes áreas da vida social do país.
Pois bem, é possível perceber por meio dos artigos que compõem esse dossiê, como o tema tem despertado uma série de reflexões e abordagens criativas. Mas é no artigo A produção das ciências humanas sobre futebol no Brasil: um panorama (1990-2009), escrito pelos pesquisadores Sérgio Giglio e Enrico Spaggiari, que verificamos empiricamente esse quadro de crescimento e diversificação da produção acadêmica. Os autores apresentam um panorama esclarecedor e muito bem informado, ao mesmo tempo abrangente e minucioso, a ponto de identificar e quantificar a produção em cada programa de pós-graduação. Já o quadro geral mostra que a maior parte dos trabalhos acadêmicos está concentrada no Sudeste, mais especificamente em São Paulo (32,86%), ecoando assim o cenário geral oblíquo da produção nos programas de pós-graduação existentes no país. Revela também que o período de inflexão se cristaliza por volta de 1998, quando ocorre evidente crescimento quantitativo de dissertações, teses e artigos, formando um grande arco temporal ascendente até 2008, quando aparentemente a produção se estabiliza. E, finalmente, mostra que, no quadro das ciências humanas, a história é superada apenas pelas ciências sociais (que, no entanto, inclui antropologia, sociologia e ciências políticas), revelando certamente a dinâmica das mudanças historiográfica em curso desde o início daquela década e o vivo interesse dos historiadores pelo tema.
As discussões apresentadas nas seções Ensaio bibliográfico e Resenhas ampliam e reforçam essa avaliação sugerida pelo artigo. O ensaio apresentado pelo historiador Hilário Franco Júnior – ele mesmo autor da importante obra A dança dos deuses. Futebol, sociedade, cultura – abre debate direto com o livro escrito por José Miguel Wisnik Veneno remédio. O futebol e o Brasil. O fato extraordinário e raro – mas que felizmente tem se tornado comum – é a presença de dois intelectuais da mesma geração, com sólida produção em suas carreiras específicas, que escrevem os livros no mesmo período e procuram compreender o país, cada um a seu modo, fazendo do futebol chave interpretativa para pensar nossa cultura. As resenhas dos livros seguem na mesma linha. Elas apresentam parte da produção acadêmica transformada em livro e também discutem os temas, opções teóricas e reflexões metodológicas de seus autores. Assim, apresentam um breve painel de obras que percorrem temas como as relações do futebol com o Estado brasileiro e as classes trabalhadoras; os bastidores da produção dos novos atletas no Brasil e exterior; o papel do discurso nacionalista na construção da ideia de um mítico futebol-arte; e as relações entre futebol e música, elementos importantes e repletos de estereótipos na formação de nossa “identidade nacional”.
Ao percorrer todos esses artigos e as reflexões que carregam, desejamos que ao final da leitura deste dossiê História e Futebol, o leitor tenha em seu horizonte tanto um atual “estado da arte” da produção acadêmica que envolve o futebol, como a notável possibilidade de temas, abordagens e discussões que ela apresenta na formação desse novo território do conhecimento. Marc Bloch disse certa vez, para indicar a satisfação que a investigação científica lhe proporcionava, que “pessoalmente, tão longe quanto me lembro, a história sempre me divertiu muito. Como todos os historiadores, eu penso”. Assim, esperamos que essa alegria apontada pelo historiador francês não se limite a esse componente muito humano sempre presente na “inebriante sedução” do futebol, e se transporte também às formas de conhecê-lo e desvendá-lo.
Flávio de Campos – Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
José Geraldo Vinci de Moraes – Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
CAMPOS, Flávio de; MORAES, José Geraldo Vinci de. Apresentação [Como o Brasil entra em campo Como o Brasil entra em campo]. Revista de História, São Paulo, n. 163, 2010. Acessar publicação original [DR]
Eurípedes Simões de Paula / Revista de História / 2009
Em 1977, falecia abruptamente o professor Eurípedes Simões de Paula. Em 2007, o Departamento de História da Universidade de São Paulo decidiu homenageá-lo na Revista de História, da qual ele foi fundador e editor até a data de sua morte. O artigo de Janice Theodoro traça o seu perfil biográfico e intelectual, centrado no projeto político-institucional que ele desenvolveu para a então chamada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, o qual articulava aspectos educacionais, científicos, arquivísticos e editoriais. Estes aspectos são igualmente relembrados no artigo de uma de suas principais colaboradoras, Elisabeth Conceta Mirra, historiógrafa do Centro de Apoio à Pesquisa Histórica (CAPH), igualmente idealizado por Eurípedes Simões de Paula. Ambos os textos ressaltam a organicidade da sua ideia de universidade, que ele procurou implementar durante a sua profícua atividade administrativa, por meio da criação da Revista de História, da abertura de diversos cursos de línguas e de centros de pesquisa e documentação: a Sociedade de Estudos Históricos, o Instituto de Estudos Portugueses, a Associação Nacional dos Professores Universitários de História, o Centro de Documentação Histórica – futuramente, CAPH –, entre outros. Seu projeto previa igualmente estruturas que dessem sustentação à divulgação científica, entre as quais se incluem a editora da Universidade de São Paulo (Edusp), a gráfica da Faculdade de Filosofia, bem como a promoção de inúmeros encontros, simpósios e congressos, cujos resumos eram acolhidos nas páginas da revista que fundou. Dentre todos os aspectos desse projeto – que podem ser apreciados nos textos do próprio Eurípedes Simões de Paula publicados em anexo ao artigo de Janice Theodoro – uma questão lhe parecia central: a educação e o ensino, para a qual todas as iniciativas aqui mencionadas convergiam.
A homenagem a Eurípedes Simões de Paula, após 30 anos de sua morte, é tão mais oportuna que o corrosivo trabalho da memória vai fragmentando ou apagando aos poucos diversas facetas desse projeto outrora orgânico, cuja articulação fazia das partes que compunham a antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) um corpo vivo e atuante na sociedade brasileira. Aquele projeto foi desestruturado durante o governo militar, de modo que a atual Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) já não guarda muito mais do que uma articulação interna de tipo administrativo. A despeito dessa involução, a FFLCH continua sendo percebida como um corpo orgânico por diversos segmentos sociais, na medida em que os diferentes centros de excelência que ela abriga produzem ainda um pensamento crítico de tipo radical (no sentido especificado por Antonio Cândido e Carlos Guilherme Mota) vital para a sociedade.
Por uma infeliz coincidência, entretanto, 2007 foi também o ano-base da última avaliação trienal do sistema Qualis de periódicos, promovida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), na qual a Revista de História caiu do primeiro estrato da classificação, que sempre ocupara, para o quarto.
A divulgação dessa classificação, tão significativa para a vida editorial das revistas acadêmicas, não foi precedida pela publicação dos critérios que a balizaram. E, tendo em vista o peso institucional aí implicado, estranhamos igualmente que sequer tenha sido enviada correspondência prévia aos editores das revistas avalizadas. Aliás, isso é compreensível, até certo ponto, pois os critérios que nortearam a avaliação dos periódicos publicados em 2007 só foram definidos mais tarde, entre abril e outubro de 2008. Mesmo assim, eles ainda não haviam sido publicados oficialmente pela Capes até o fechamento deste editorial (início de julho de 2009), seja por meio de seu site institucional ou de qualquer outra forma de correspondência. É desnecessário dizer que não houve tampouco qualquer discussão desses critérios com os pesquisadores da área.
Por outro lado, a lista divulgada pela Capes apresenta inconsistências que consideramos graves no que diz respeito a elementos consensuais, próprios à caracterização do que se entende por periódicos científicos, particularmente na área de Ciências Humanas: foram incluídas revistas que não atendem ao critério mínimo de periodicidade (p. ex. Revista da Cátedra Jaime Cortesão), periódicos com pouca ou absolutamente nenhuma expressão na área específica de História (p. ex. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte), como também outras publicações que foram, infelizmente, interrompidas há alguns anos (p. ex. Revista Internacional de Estudos Africanos). Causou-nos surpresa, também, a baixa avaliação atribuída a periódicos internacionais altamente reputados no campo específico (p. ex. Slavery & Abolition). Tudo isso denota que ou os critérios não foram aplicados, ou foram-no de maneira discricionária.
Por fim, observamos que os critérios que nortearam tal avaliação mimetizam outros, igualmente polêmicos, que ainda tentam se impor em outros países, a despeito das fortes críticas que têm recebido em toda parte (cf. matérias publicadas na revista Pesquisa Fapesp de maio e junho de 2009). De fato, tais critérios são pouco pertinentes aos temas e conteúdos veiculados pelas revistas de ciências humanas: o que define um periódico de qualidade são apenas porcentagens. Por exemplo: uma revista de excelência deve publicar 75% de artigos de autores provenientes de cinco instituições diferentes da que publica o periódico e 15% de estrangeiros… os restantes 10% não sendo especificados. São parâmetros que conduzirão inevitavelmente a uma padronização das revistas, e a partir de critérios extrínsecos à competência dos autores e aos temas em debate. De resto, quando tomamos em consideração tais porcentagens, vemo-nos conduzidos à bizarra situação de ponderar se devemos recusar artigos relevantes porque extrapolam aquelas cotas. Se seguíssemos aqueles critérios, a revista passaria a ser moldada antes pela forma determinada pelas cotas do que pela relevância de tal ou qual artigo. Quanto ao critério “qualidade”, ele só surge no estrato superior e em termos extremamente vagos e imprecisos: “periódicos de destacada qualidade, devidamente demonstrada em relatórios pelos avaliadores”. Quais critérios definiriam a qualidade, para estes avaliadores, não é possível saber. Mas, mesmo para os estratos inferiores, imaginamos mal uma comissão avaliadora aferindo a qualidade dos periódicos com uma máquina calculadora à mão! E mesmo a calculadora pode ser inútil, na medida em que o sistema de avaliação trabalha com as chamadas “travas estatísticas” (cf. Jornal da Ciência n. 646). Essas “travas estatísticas” estabelecem cotas para os estratos superiores da lista de avaliação, o que faz com que ela tenda a assumir a forma de uma “curva de Gauss”. O procedimento é típico de empresas capitalistas e visa incentivar a competitividade interna, numa lógica avessa à nossa, pautada antes na colaboração e diálogo acadêmicos (por exemplo, através do trabalho fundamental realizado pelos pareceristas). As “travas estatísticas” introduzem, ademais, uma deformação da realidade: como os estratos superiores só podem conter um determinado número de periódicos, os demais, mesmo que sejam de igual qualidade, serão classificados em estratos inferiores. Dito de outra maneira: se a lei e a realidade não coincidem, a realidade deve ser modificada para se acomodar à lei!
Por outro lado, há que se considerar também o gigantismo da tarefa, o que torna praticamente inviável. Como fazer todas aquelas contas para as 898 revistas de história listadas na última avaliação? Que dizer quanto a aferir a qualidade do conteúdo dos artigos?
De resto, parece-nos que as revistas de história não podem ser todas avaliadas com os mesmos critérios, pois cumprem funções sociais diferentes, conforme tenham uma vocação generalista ou voltada para temáticas específicas, conforme se dediquem a problemas regionais ou tenham um escopo mais amplo etc.
Compreendemos e apoiamos o esforço da Capes em promover o aperfeiçoamento dos periódicos científicos brasileiros mediante sua avaliação; por isso acreditamos na necessidade imperiosa de transparência e coerência dos procedimentos adotados.
A despeito de cotas e porcentagens, persistimos em nossa política editorial, que visa divulgar artigos de qualidade. Nesse sentido, além do “dossiê Eurípedes Simões de Paula”, reunimos para este número 160 da Revista de História dois artigos com percepções diversas sobre as relações entre história, política e religião. Um artigo do historiador Paolo Prodi, “Cristianismo, modernidade política e historiografia”, que propõe uma síntese da sua reflexão, iniciada há cerca de cinquenta anos, sobre o papel do cristianismo, e mais particularmente sobre o catolicismo póstridentino, na construção do mundo ocidental, e especificamente nas noções modernas de Estado e de justiça. A discussão gira em torno da tensão entre norma escrita e norma moral. Sua reflexão está apoiada num instigante balanço, ao mesmo tempo biográfico e historiográfico. As posições assumidas por Paolo Prodi podem ser confrontadas com a resenha crítica elaborada por outro historiador italiano, Adriano Prosperi, sobre o livro Uma história da justiça (traduzido para o português em 2005). Prosperi concentra sua crítica no conceito de revolução com o qual opera Paolo Prodi no referido livro e, logo, ao problema da ruptura e da continuidade.
Estas problemáticas surgem igualmente no artigo de Lígia Bellini e Moreno Laborda Pacheco, na tensão existente entre a prescrição normativa e as práticas efetivas, no caso analisadas através da “Experiência e ideais de vida religiosa em mosteiros portugueses clarianos, nos séculos XVI e XVI”: a efetividade do voto de obediência “não implicava forçosamente numa vivência religiosa desvinculada de determinações do universo de crenças e práticas no qual as monjas estavam inseridas”. A tentativa de controle normativo das práticas sociais é tema igualmente da investigação realizada por Richard Negreiros de Paula – no caso, o atrito entre medicina e direito –, que resgata a luta de uma mulher para se livrar da custódia psiquiátrica, em 1897. Aqui, a norma é veiculada por meio de uma difícil articulação entre os saberes psiquiátrico e jurisprudencial (analisada na disputa travada por Teixeira Brandão pela manutenção ou ampliação da jurisdição profissional dos médicos alienistas pelo domínio sobre a custódia dos insanos), de um lado, e, de outro, a resistência da referida mulher, Ernestina Ribeiro de Azevedo.
O artigo de Frank Lestringant também enfoca esta problemática, mas no terreno da metodologia e da memória histórica. A partir de uma provocação colocada desde o título do artigo – “É necessário expiar o Renascimento?” – o autor parte da “invenção” de um passado imperial francês nas últimas décadas do século XIX, passando em seguida pelas inflexões teóricas propostas pela antropologia do pós-guerra, para criticar os usos e apropriações que foram realizados de autores como Jean de Léry, André Thevet, François Rabelais e Michel de Montaigne (onde sobressaem anacronismos, ilusões retrospectivas e arbitrariedades). A provocação do título vem no sentido de dialogar com os recentes debates ocorridos na França (particularmente em torno do seu passado escravista), apontando os limites da consciência crítica europeia pós-colonial.
A história da historiografia é também a perspectiva adotada por Karina Anhezini, que faz a crítica dos procedimentos fabricados por Afonso d’Escragnolle Taunay, entre 1911 e 1939. Segundo a autora, Taunay soube combinar sua leitura da historiografia francesa com o desenvolvimento da produção historiográfica no Brasil, criando um método próprio que articulava monografias no intuito de recuperar o pitoresco, a vida comum, os costumes, dando-lhes sentido “como um ‘mosaísta’ que reúne as peças dispersas nos documentos”. Contemporâneo de Taunay, Euclides da Cunha é classificado por Danilo Zioni Ferretti dentro do grupo de historiadores da paulistanidade: em seu artigo, ele analisa a forma original como o autor de Os sertões ali representou o bandeirante. Sua conclusão é que “a grande originalidade da representação historiográfica de Euclides estava em apresentar o jagunço de Canudos como o verdadeiro herdeiro da grandeza bandeirante. Ao contrário do discurso vigente, os derrotados pelas tropas da República não eram os inimigos da nação, mas os próprios representantes do seu cerne mais profundo, identificado diretamente com o bandeirante. As tropas republicanas, atacando os jagunços, feriam a alma da nação.”
A despeito da força desses modelos interpretativos, ainda encontramos vigor em análises empíricas que justificam a necessidade do historiador voltar incessantemente à sua prática mais fundamental. Isso é evidenciado no artigo “Lojas e armazéns das casas de morada paulistas”, de Maria Lucília Viveiros Araújo, e no de Manoela Pedroza, “Transmissão de terras e direitos de propriedade desiguais nas freguesias de Irajá e Campo Grande (Rio de Janeiro, 1740-1856)”, este numa abordagem mais marcadamente sociológica: são dois textos que sistematizam uma série de informações que nos permitem justamente revisitar criticamente os grandes modelos explicativos, testá-los, sofisticá-los enfim. O primeiro artigo “suscita um diálogo com a historiografia que tratou do comércio oitocentista”; o último conclui-se com a seguinte frase: “mas como se poderia sustentar um sistema de transmissão tão complexo e diferenciado se a legislação previa formas de acesso e posse das terras bastante diferentes das soluções encontradas em nível local?” Reencontramos aqui questões identificadas nos primeiros artigos apresentados neste editorial, as quais fazem referência justamente à tensão entre normas e práticas sociais, mas também questões presentes nos demais artigos, atinentes à tensão entre memória histórica e historiografia.
Tensões estas vividas por Oswald de Andrade, cuja trajetória intelectual é analisada por Éder Silveira no artigo “Oswald ponta de lança. Antropofagia e imaginação política na década de 1940”. Da renúncia da vanguarda artística e literária modernista à sua aproximação com o Partido Comunista Brasileiro, e do abandono do PCB à retomada da antropofagia na década de 1940 (que culmina com a redação de sua tese sobre A crise da filosofia messiânica), Oswald de Andrade encarnou dramaticamente as referidas tensões, as quais se prolongaram ainda, posteriormente, nas apropriações que foram feitas de sua obra. São essas tensões que ganham um significado quase heurístico na análise de Éder Silveira (o que ecoa a problemática assinalada por Frank Lestringant).
Fechamos este número com uma resenha do importante livro de Loïc Wacquant, As duas faces do gueto (2008), por Vera Malaguti Batista, o qual não deixa de repercutir, mais uma vez, o problema da tensão entre normas e práticas sociais, presente em outros artigos publicados neste número da Revista de História. Aqui, trata-se de “repensar os efeitos do capitalismo, neste simulacro de democracia em que os jovens negros e os pobres em geral se encontram cada dia mais nas garras do sistema penal e dos grupos de extermínio”.
Os artigos que selecionamos para este número 160 da Revista de História giram em torno destas problemáticas e dão organicidade ao presente volume. Tal qualidade não chegará a ser percebida por sistemas de avaliação fincados em padrões percentuais e estatísticos que desviam a atenção do conteúdo dos artigos. Isso é privilégio de leitores que tomam o tempo de ler como quem contempla uma imagem, de meditar, de associar conteúdos mesmo inusitados e eventualmente testar a pertinência dessas associações a partir de procedimentos metodológicos, contribuindo assim para o debate que caracteriza a nossa comunidade – o que constitui a cerne da missão proposta por esta Revista de História, desde a sua fundação.
Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron (editor)
Maria Cristina Cortez Wissenbach (vice-editora)
ZERON, Carlos Alberto de Moura Ribeiro; WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Editorial. Revista de História, São Paulo, n. 160, 2009. Acessar publicação original [DR]
1808 / Revista de História / 2008
1808 em perspectiva
Na apresentação do primeiro número de seu periódico Correio Brasiliense, Hipólito José da Costa declarava uma das pretensões de sua tarefa: “feliz eu se posso transmitir a uma Nação longínqua e sossegada, na língua que lhe é mais natural e conhecida, os acontecimentos desta parte do mundo, que a confusa ambição dos homens vai levando ao estado da mais perfeita barbaridade”.1 A “nação longínqua e sossegada” a que se dirigia era a porção americana dos domínios portugueses, que deveria estar interessada no que ocorria em uma Europa – Costa escrevia de Londres – confusa, revirada de cabeça para baixo pelos acontecimentos de uma época prenhe de incertezas. A data de suas palavras: 01 de junho de 1808.
Como de costume, o diagnóstico histórico de Hipólito da Costa era muito acertado. Não à toa, preocupado com as coisas do Império Português, mas especialmente com aquelas relativas ao Brasil, sua terra natal, deveria doravante publicar em seu jornal, em grossas edições semestrais ininterruptas até dezembro de 1822, notícias, documentos e análises relativas a todas as partes de Europa e Brasil, mas também à América espanhola, Estados Unidos, Ásia, África… Para homens e mulheres, como ele, profundamente envolvidos na política, o que ocorria em 1808 não cabia em uma única região ou país. Todas as partes do mundo pareciam interessar.
Embora ao historiador não seja recomendável a reificação cronológica de um momento sem dúvida marcante na configuração de realidades históricas em larga escala territorial, tampouco convém ignorar que, na história da humanidade, o ano de 1808 parece ser um daqueles de concentração de acontecimentos e fenômenos especialmente relevantes. À época, tentar entender o que ocorria implicava um olhar diversificado e amplo sobre o mundo.
Duzentos anos depois, pode-se dizer o mesmo. Não se trata, porém, de tarefa fácil. O peso das tradições historiográficas nacionais, inventadas justamente ao longo daquele século XIX, ainda é forte, do que decorre que certos temas, problemas e contextos dificilmente escapam à limitação a posteriori a eles conferida pelos vícios de formação dos historiadores e / ou por seus comodismos acadêmicos. Felizmente, em 2008 parece haver fortes indícios de superação desse estado de coisas, ao menos no que toca ao estudo dos acontecimentos de 1808 que geralmente são ligados aos processos de independência da América ibérica e ao advento de novas formas políticas e sociais na Europa pós-Revolução Francesa. Tal superação não implica o abandono de estudos especializados, monográficos e específicos; ao contrário, implica considerar seus resultados à luz de investigações semelhantes, cotejando-as umas com as outras, e articulando-as a sínteses globais.
Um aspecto particularmente relevante desse movimento está na criação das condições para definitivo abandono da perspectiva singularista da trajetória histórica luso-americana das primeiras décadas do século XIX, e que durante muito tempo insistiu em um olhar que acabou por isolar e “retirar” o Brasil dos demais contextos históricos coevos, americano, ocidental, mundial. E é aqui que, de modo oportuno, a Revista de História atende a uma de suas vocações tradicionais: a de divulgar resultados inovadores de pesquisas acadêmicas em uma perspectiva cosmopolita, ampla e abrangente, sem abdicar de sua condição de órgão acadêmico brasileiro.
Neste número 159, a Revista de História apresenta um conjunto de artigos que, de variadas formas, contemplam acontecimentos do ano de 1808. Elaborados estritamente de acordo com os critérios de excelência exigidos pela revista, formam um conjunto plenamente afinado com a necessidade de se tomar tais acontecimentos em muitas faces: espaços e tempos específicos, por vezes divergentes, mas também de muitos modos convergentes, conduzindo a leitura dos artigos aqui reunidos, naturalmente, ao estabelecimento de diálogos transversais entre eles.
Nessa perspectiva, é possível que o ano de 1808 surja de modo algo distinto do que o percebera, duzentos anos atrás, Hipólito da Costa: uma Europa um pouco menos confusa, e uma América bem menos sossegada.
Nota
1.Correio Brasiliense ou Armazém Literário, v. I, n.1. Londres, 06 / 1808.
João Paulo G. Pimenta – Departamento de História – FFLCH / USP
PIMENTA, João Paulo G. Apresentação [1808 em perspectiva]. Revista de História, São Paulo, n. 159, 2008. Acessar publicação original [DR]
História e Música / Revista de História / 2007
Sons e música na oficina da história
O volume Modinhas Imperiais compilado por Mário de Andrade apresenta uma composição – O coração perdido – de autoria do engenheiro Frederico Luis Guilherme de Varnhagen (1782-1842). O autor teria escrito ainda outras modinhas, entre elas A saudade, de valor musical questionável e, por isso, não incluídas na coleção pelo musicólogo1. O sobrenome do compositor é revelador: aponta que se tratava do pai do historiador Francisco Adolfo Varnhagen que, certamente, iniciou seus primeiros contatos com a música no ambiente familiar. Esta proximidade e interesse musical de certo modo permaneceram ao longo da carreira intelectual do historiador. Na sua infatigável procura por fontes para construir uma história do Brasil, o Visconde de Porto Seguro encontrou e comentou documentos híbridos entre a poesia e a música, com os sugestivos nomes de Trovas e cantares de um códice do XIV° século: ou mais provavelmente, o livro de cantigas do conde de Barcelos e Cancioneirinho de trovas antigas colligidas de um grande cancioneiro da biblioteca do Vaticano. No seu Florilégio da poesia brasileira, obra de 1850 destinada a destacar os principais poetas brasileiros, o historiador apresentou a biografia do poeta, mas também compositor e cantor, Domingos Caldas Barbosa, o mestiço “cantor de viola” 2. Claro que na produção historiográfica conservadora do historiador, voltada essencialmente à história política e administrativa, a música aparece de maneira muito marginal. De qualquer modo, é curioso conhecer essa proximidade pessoal e intelectual do tradicional historiador oitocentista com a música.
É interessante notar que Capistrano de Abreu – que manteve permanente relação de profundo respeito e conflito com a obra de Varnhagen – ao esboçar um tipo de história social e cultural do povo brasileiro no início do século XX, também fez referências à música na obra Capítulos de História Colonial. Nela a música surge de maneira tangencial, presente nas festas populares, nas irmandades religiosas da região mineradora e nos cantos de trabalho no Rio de Janeiro3. Já a produção historiográfica da geração imediatamente posterior ao historiador cearense teve relação bastante refratária com os sons e a música. Na obra de Caio Prado Jr., são totalmente inexistentes. Sérgio Buarque de Holanda, embora convivesse no cotidiano com músicos e poetas, em Raízes do Brasil fez apenas pequena referência à música na festa de Bom Jesus de Pirapora, em São Paulo, quando Jesus Cristo “desce do altar para sambar com o povo” 4. O contraponto foi a obra em três andamentos de Gilberto Freyre sobre a formação e decadência da sociedade patriarcal no Brasil, em que desponta uma abundância de sons, ritmos, músicas e canções. No primeiro volume, Casa Grande e Senzala, os ritmos africanos se misturam às canções infantis e de ninar, às músicas das festas profanas e religiosas, e aos lundus e modinhas. No volume Sobrados e Mocambos surgem as modinhas tocadas ao piano pelas moças, as músicas dos salões e também as das ruas, feitas pelo violão e batuques. Em Ordem e Progresso a música aparece de forma destacada com comentários sobre modinhas, polcas e dobrados, entre outros gêneros, e surge até documentada em forma de partituras. Mas Gilberto Freyre é exceção no quadro historiográfico brasileiro. Infelizmente o esboço, ainda que rarefeito, das relações entre música e trabalho historiográfico proposto por ele teve continuidade muito dispersa e limitada entre os historiadores de ofício. Nas gerações seguintes, a generalizada “surdez dos historiadores” – apontada pela musicóloga Myriam Chimènes no artigo traduzido neste volume da Revista de História – permaneceu e muitas vezes se aprofundou.
Ecoando essa dinâmica da historiografia, a Revista de História, assim como outras publicações especializadas, seguiu o mesmo ritmo e as publicações relativas à música são episódicas. O número de artigos publicados relacionados ao tema ao longo dos seus cinqüenta anos não soma os doze sons da escala cromática: foram somente onze textos, sendo oito deles de autoria de apenas três autores5. Claro que esse relativo silêncio revela também a rarefação das investigações em torno da música e as dificuldades em desenvolver pesquisas na oficina da História até pelo menos a década de 1990. Essa situação repleta de obstáculos é perfeitamente visível na trajetória docente e de pesquisador do professor Arnaldo Contier. Em depoimento exclusivo para a Revista de História ele apresenta e comenta as dificuldades enfrentadas pelo historiador de ofício em tratar com o objeto sonoro. Durante anos ele foi uma espécie de solista na formação de pesquisadores e na evolução deste novo campo de pesquisa. É preciso salientar, no entanto, que as dificuldades não eram exclusivas dos historiadores. Artistas contemporâneos e musicólogos passaram por conflitos e angústias semelhantes durante o mesmo período. Embora tenham ocorrido profundas transformações nos meios de registro e difusão da música, pesquisar, compor e difundir trabalhos com propostas e linguagens renovadoras tornouse cada vez mais difícil, como nos revela o texto também publicado neste volume, em chave dissonante mahagonnense e tom claramente brechtiano de manifesto, do pesquisador e compositor Willy Correa de Oliveira.
A relativa surdez historiográfica não era, porém, uma situação exclusiva da produção brasileira. O referido artigo da musicóloga francesa mostra situação semelhante no contexto europeu, sobretudo o francês, das décadas de 1980 / 90. Antes deste período, raros foram os historiadores de ofício, como HenryIrenée Marrou, que se arriscaram nesta área de pesquisa. Nos anos ‘40 ele publicou alentada obra de tonalidades folcloristas6 – recheada de músicas, letras de canções, análises melódicas e harmônicas – e um pequeno tratado sobre a música em Santo Agostinho7. Em ambos os livros ele utilizou o pseudônimo de Henri Davenson, recurso também usado por Eric Hobsbawm para publicar sua história social do jazz, em 1959, com o nome de Francis Newton8. Esse fato não pode passar despercebido, pois na verdade revela que dois importantes historiadores do século XX procuraram resguardar, por algum motivo, seus nomes em obras que tratavam da música, mais especificamente a popular. Em tom diferente da sociologia e da antropologia, poucos foram os historiadores que realizaram pesquisas tendo a música como objeto ou fonte documental antes dos anos ‘90. Foi somente nesta década que começaram a surgir alguns trabalhos, como destaca o artigo de Myriam Chimènes. Provavelmente, esse contexto favorável permitiu ao historiador francês Alain Corbin, por exemplo, realizar inusitada obra sobre como os sons dos sinos que presidiam o ritmo da vida rural se transformaram no século XIX, implicando mudança de sensibilidade e de escuta9. Nela, Corbin usou o conceito de paisagem sonora como uma forma de ampliar os horizontes de discussão de sua história das paisagens e das sensibilidades10. Nesta mesma linha seguiu Jean-Pierre Gutton que, além dos sinos, incluiu nessa nova “paisagem sonora” – já se referindo claramente ao conceito de Murray Schafer11 – os sons das cidades, das oficinas, entre outros12.
Foi nesta década que ocorreram também as principais mudanças na produção historiográfica brasileira relativa à música, condição salientada no artigo de Marcos Napolitano. Seu texto aborda especificamente a evolução dos estudos sobre a música popular brasileira que ocorreu neste período, tendo como ponto de partida sua própria trajetória e a de sua geração. Na realidade, a historiografia entrou tardiamente nesse tradicional debate sobre a música popular e suas relações centrais na construção da “cultura nacional”. As discussões em torno do tema ampliaram-se, deixando para trás tanto as concepções folcloristas como a percepção adorniana da indústria cultural e a noção de “cultura de massas” presentes ainda em certa sociologia dos anos ‘70 / ‘80. Porém, sem cabedal teórico acumulado e limitada em sua tradicional surdez, a História colocou em marcha mais uma vez sua vocação interdisciplinar como forma de aprofundar seus contatos com o universo sonoro e musical. Neste passo, Elizabeth Travassos mostra em seu artigo como a história se aproximou da etnomusicologia em mudança, e vive-versa, no mesmo compasso da (re) aproximação de ambas com a antropologia. Ela destaca justamente que “os tempos são propícios à ‘mistura de gêneros’” e que, portanto, os diálogos entre os diversos campos do conhecimento devem continuar sendo observados e aprofundados.
O debate em torno da música popular se aprofundou na América Latina ao longo das duas últimas décadas numa clave bem mais dinâmica e criativa que a européia, provavelmente revelando a riqueza e o hibridismo de nossos gêneros musicais. O texto do musicólogo chileno Juan Pablo Gonzáles e também sua militância como presidente da seção latino-americana da International Association for the Study of Popular Music em favor de uma “musicologia da música popular” revelam essa cadência. A valorização estética e cultural da música popular é eixo importante de sua concepção, assim como do musicólogo argentino Diego Fischerman, cuja obra é resenhada no final do dossiê. Além disso, seu artigo escrito em conjunto com o historiador chileno Claudio Rolle oferece uma discussão sobre as possibilidades de diálogo teórico e metodológico entre essa “outra musicologia” e a História, apontando para a necessidade de se pensar uma história social da música popular. O artigo escrito em dueto revela grande preocupação com a prática historiográfica e, consequentemente, com as fontes escritas, fonográficas, performáticas, memorialísticas, mas também com o universo da criação e da recepção musical. Essa discussão sobre fontes, arquivos e criação musical, com variação de tom mais próximo da música erudita, também é apresentada pela musicóloga Flávia Toni. Para ela, a parceria entre Biblioteconomia, Arquivologia, Música e História é central para acompanhar a dinâmica crescente da produção acadêmica, como também para facilitar a pesquisa criadora dos compositores. Num quadro precário e disperso de centros de referência, discotecas, bibliotecas e arquivos especiais – os existentes ainda sob controle de instituições privadas ou em mãos individuais –, o tema ganha importância adicional e contornos de urgência.
As discussões realizadas ao longo destas décadas – algumas delas reveladas neste dossiê – apresentaram diversas características e tonalidades, entre elas a dificuldade em operar com os tradicionais conceitos de música erudita e popular e as abordagens que eles determinaram. Tornou-se cada vez mais difícil pensar a música e as investigações sobre ela nessas fronteiras tradicionais, sobretudo porque a prática musical, em boa parte de nosso continente, permitiu historicamente as mais inusitadas formas de misturas, fusões, hibridizações, circulação e difusão entre variadas culturas musicais. O texto de José Miguel Wisnik nos mostra como esses limites na cultura musical brasileira, entre os anos ’20 e ’50, foram completamente devassados, produto de uma prática cultural singular, repleta de conflitos e diálogos. Tendo esse tom como eixo, o texto historiciza a criação musical do período, relacionando-a no quadro cultural mais abrangente com a literatura, o cinema e até o futebol. Assim, a tradição de aproximar literatura e ciências sociais transborda também para a música e a história. Na realidade, suas obras procuram a todo o momento esse difícil equilíbrio entre as análises estéticas e musicais e o universo cultural e social que fazem parte delas. E é essa dinâmica que lhe permite ensaiar interpretações de longa e média duração da cultura brasileira, como faz na mesma clave em Machado Maxixe: o caso Pestana 13. Essas criativas contribuições, originadas da área de Literatura, associadas posteriormente à Semiótica e à Lingüística, como nos revela a resenha sobre o livro de Luiz Tatit, tornaram-se referência para aqueles que pretendem justamente ultrapassar as tradicionais fronteiras analíticas e aprofundar as discussões da presença crucial da música na nossa cultura.
A apresentação deste dossiê da Revista de História pretende justamente colaborar para a ampliação e o aprofundamento do debate, mas, sobretudo, tirar a História e os historiadores do relativo silêncio a que estiveram submetidos desde os contatos residuais de Varnhagen com a música. Quem sabe indique que provavelmente a “surdez dos historiadores” está em processo de cura e que esse volume da Revista de História contribui para o seu tratamento. Além disso, ele quer discutir qual o papel que a História pode desempenhar de modo específico, com seus instrumentos analíticos e interpretativos, para ampliar a discussão e criar seu próprio campo de investigação. Mas isso significa estabelecer permanente diálogo com outras disciplinas – como revelam os textos do dossiê – e exercer claramente nossa vocação interdisciplinar intrínseca. E se, ao final, o leitor julgar que nenhum desses objetivos foi alcançado, esperase ao menos que compreenda a música, “mais que um objeto de estudo, (…) um meio de perceber o mundo”, e que nela às vezes repousam as novas formas sociais e culturais que virão14.
Notas
- ANDRADE, Mário de. Modinhas imperiais. Modinhas de salão brasileiras, do tempo do Império, para canto e piano. São Paulo: Casa Chiarato Ed., 1930, p.13.
- VARNHAGEN, F. A. Florilégio da poesia brasileira, 3 vols. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1946, p. 42. O texto foi republicado no ano seguinte, com algumas modificações, na seção “Biografias” da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (vol. 14, 1851), com o título “Domingos Caldas Barbosa”.
- ABREU, Capistrano. Capítulos de História Colonial. Belo Horizonte / São Paulo: Ed. Itatiaia / Edusp, 1988, capítulo XI, “Três séculos depois”.
- HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 8ª ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1975, p. 110.
- Três do historiador e musicólogo Régis Duprat: “Música nas Mogis Mirim e Guassú”, nº. 58, abril-junho, 1964; “A música na Bahia colonial”, nº 61, janeiro-março, 1965; “Música na matriz de São Paulo colonial”, nº 75, julho-setembro, 1968. Três do musicólogo alemão Francisco Curt Lang: “Um fabuloso descobrimento”, nº 107, julho-setembro, 1976; “O progresso da musicologia na América Latina”, nº 109, janeiro-março, 1977; “Os primeiros subministros musicais do Brasil para o Rio da Prata”, nº 112, outubro-dezembro, 1977. Dois do historiador Arnaldo Contier: “Música e História”, nº 119, julho-dezembro, 1985- 88; “Villa Lobos, o selvagem da modernidade”, nº 135, 2º semestre 1996. Os três restantes são “O Samba em Itu”, de Otávio Ianni, nº 25, janeiro-março, 1956; “As óperas de Puccini”, Antonio Almeida Prado, nº 58, abril-junho, 1964; “Rádio e música popular nos anos 30”, de José Geraldo Vinci de Moraes, nº 140, 1º semestre, 1999.
- DAVENSON, Henri. Introduction à la connaissance de la chanson populaire française. Le livre des chansons. Neuchâtel : Ed. de la Baconnière, 1982.
- Idem, Traité de la musique, selon l’espirit de saint Augustin. Paris : Seuil, 1942.
- NEWTON, Francis. História social do jazz. São Paulo: Paz e Terra, 1990.
- CORBIN, Alain. Les cloches de la terre. Paysage sonore et culture sensible dans les campagnes au XIX siècle. Paris : Flammarion, 1994.
- Idem, “Du Limousin à les cultures sensibles”. Jean-Pierre Rioux e Jean-François Sirinelli (dir.), Histoire culturelle de la France. Paris : Seuil, 1997.
- SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo. São Paulo: Ed. Unesp, 2001.
- GUTTON, Jean-Pierre. Bruit et sons dans notre histoire. Paris: PUF, 2000.
- WISNIK, José Miguel. “Machado, Maxixe: o caso Pestana”. Teresa 4 / 5. Revista de Literatura Brasileira, São Paulo: USP / Ed. 34, 2004, pp. 13-79.
- ATTALI, Jacques. Bruits. Essai sur l´économie politique de la musique. Paris: PUF, 1977, p. 9.
José Geraldo Vinci de Moraes
MORAES, José Geraldo Vinci de. Apresentação. Revista de História, São Paulo, n. 157, 2007. Acessar publicação original [DR]
História das Américas / Revista de História / 2005
O Departamento de História da Universidade de São Paulo tem o prazer de apresentar o número 153 da Revista de História, dedicado ao dossiê História das Américas. Os artigos aqui reunidos enfocam temas da época pré-colonial à contemporaneidade, relativos a diferentes regiões do continente. Desenvolvem-se a partir de abordagens variadas, em particular nos campos da História política e da História cultural.
Com a organização deste dossiê, procuramos expressar o vigor que as pesquisas em História das Américas vêm conquistando nas universidades brasileiras, nos últimos anos. Quisemos traduzir, por outro lado, o crescente diálogo historiográfico estabelecido, nesse domínio, com pesquisadores de universidades estrangeiras. Pois se, entre nós, os estudos de História do Brasil e de História européia têm uma longa e consolidada trajetória, a história das Américas – pré-colonial, colonial ou independente –ganhou alento em contextos mais recentes. Esperamos assim, com o dossiê, chamar a atenção dos profissionais da História e dos interessados em geral para os caminhos trilhados.
O dossiê se abre com um bloco de artigos voltados a questões teóricas e historiográficas. Maria Lígia Coelho Prado escreve sobre as perspectivas da História comparada na América Latina. José Luis Bendicho Beired faz um balanço das pesquisas em História das Américas nas universidades paulistas, entre 1942 e 2004. June Carolyn Erlick discute as relações entre memória e defesa dos direitos humanos a partir do caso de uma jornalista guatemalteca assassinada anos atrás.
Em seguida, em ordem cronológica, apresentam-se os artigos históricos. Eduardo Natalino dos Santos analisa os usos documentais dos códices mixteconahuas. Cristiana Bertazoni Martins trata das representações sobre o Antisuyu – a região amazônica do antigo Império Inca – na clássica obra de Felipe Guaman Poma de Ayala. Alejandro E. Gómez enfoca os percursos de gestação do estigma contra populações de origem africana, nos mundos hispano-atlânticos dos séculos XIV a XIX. María Teresa Calderón aborda os problemas da legitimação do poder político na Colômbia, nos anos pós- Independência.
Com base na revista The National Geographic Magazine, Rafael Baitz explora as relações entre fotografia e representações identitárias nos Estados Unidos de fins do século XIX e princípios do XX. Também no campo das imagens, Maria Helena R. Capelato analisa o tema das pinturas modernistas latino-americanas, destacando movimentos ocorridos na Argentina, no Brasil e no México. A pintura fundamenta ainda o trabalho de Camilo de Melo Vasconcellos, sobre a visão das lutas pela independência mexicana inscrita nos murais de Diego Rivera e Juan O’Gorman.
Por fim, o dossiê apresenta um estudo de Cecília Azevedo sobre a política de “guerra à pobreza” desenhada nos Estados Unidos dos anos 1960.
Encerrados os artigos, abre-se uma seção de resenhas sobre publicações recentes, nacionais e estrangeiras, que enriquecem os debates históricos americanistas.
O presente número da Revista de História contou com o pleno envolvimento dos atuais integrantes do Conselho Editorial e de especialistas que gentilmente se dispuseram a elaborar pareceres. Ficam registrados os sinceros agradecimentos.
Gabriela Pellegrino Soares – Coordenadora Editorial
SOARES, Gabriela Pellegrino. Apresentação. Revista de História, São Paulo, n. 153, 2005. Acessar publicação original [DR]
História dos índios / Revista de História / 2006
Este número da Revista de História traz um dossiê de artigos dedicados à “História dos Índios”, temática interdisciplinar por excelência que vem ganhando espaço entre os historiadores no Brasil. Nos últimos tempos, antropólogos, historiadores e arqueólogos têm investido cada vez mais na identificação e análise de fontes arquivísticas, adensando o nosso conhecimento da presença e participação ameríndia na constituição de um Novo Mundo. Não se trata, no entanto, daquele das migrações milenares ou do esplendor precolombiano mas sim do Novo Mundo que nasceu do complexo encontro entre a expansão européia e as transformações indígenas. Do ponto de vista dos ameríndios, esta foi, conforme escreve Pablo Rodríguez em seu estudo, “uma das épocas mais caóticas, cambiantes e dramáticas da história moderna”.
Se é, no plano mais amplo das Américas, uma tendência que vem se aprofundando há décadas, desde o trabalho pioneiro de Charles Gibson, é atual a divulgação de um número cada vez maior de textos escritos por índios ou que, pelo menos, encapsulam narrativas indígenas. Muitas vezes escritos em línguas vernáculas ou traduzidos de depoimentos orais em nahuátl, mixteco, otomi, zapoteco, quéchua, tupi ou em outro idioma indígena, os textos têm sido objetos de análises criativas e inovadoras, as quais requerem um certo grau de especialização. Se, num primeiro momento, a voz indígena era pensada como artefato de um saber milenar e coletivo, as abordagens recentes sublinham não apenas a historicidade da construção das narrativas como também a subjetividade de cada narrador ou escritor indígena, pois afinal de contas as narrativas e os narradores encontravam-se atrelados, em maior ou menor grau, ao contexto colonial que ensejou a produção de grande parte destes documentos.
Os primeiros dois artigos do dossiê colocam em causa o desafio de trabalhar com textos escritos por índios durante o período colonial. Pablo Rodríguez, professor da Universidade Nacional da Colômbia, faz um rico comentário da edição recente de testamentos indígenas redigidos durante o período colonial na Nova Espanha, Chile e Nova Granada, em três publicações independentes. Os testamentos, segundo o autor, permitem compreender “os complexos processos vividos pelas sociedades indígenas sob o domínio espanhol”. Se, por um lado, estes documentos compartilhavam aspectos comuns a todos os testamentos coloniais, enquanto textos que expressavam os últimos desejos incidindo sobre assuntos materiais e espirituais da vida de indivíduos, os testamentos indígenas guardavam uma particularidade, pois também serviam de veículo para a defesa de “direitos antigos”. Rechaçando a tentação de ler nesses documentos apenas a “resistência” dos índios ao domínio dos encomenderos, hacendados ou autoridades coloniais, o autor tem o cuidado de problematizar o modo pelo qual os índios se valeram de instrumentos do mundo jurídico e social da colônia para defender, de maneiras diversificadas e freqüentemente ambíguas, interesses coletivos e individuais. É interessante e revelador o pequeno deslocamento que o autor faz da noção de “aculturação”, termo esse abandonado há muito pelos antropólogos e geralmente mal empregado pelos historiadores: no texto de Rodríguez, ao invés de serem aculturados, os índios “se aculturaram”, assim transferindo o locus (e em certo sentido o logos) da ação histórica para os índios.
O segundo artigo, de Lodewijk Hulsman, pesquisador da Universidade de Amsterdã, apresenta o texto integral das “representações” ou petições apresentadas pela liderança indígena Potiguar Antônio Paraupaba aos Estados Gerais dos Países Baixos na esteira da expulsão dos holandeses do Brasil, publicadas originalmente em Leiden na década de 1650. Alfabetizado em holandês e convertido para o Calvinismo, Paraupaba é um exemplo notável da dimensão Atlântica da história dos índios, onde não apenas idéias e objetos mas também índios de carne-e-osso circulavam. O documento em si é fascinante mas a sua publicação aqui inclui elementos novos e importantes para a pesquisa em história indígena. Conforme mostra o autor, a tradução anterior de Pedro de Souto Maior é incompleta e, em certos aspectos, problemática. Por exemplo, é notável que Souto Maior compromete a compreensão de alguns trechos ao traduzir o termo Brasilianer simplesmente para o genérico “índios”, quando se sabe que os holandeses faziam uma distinção entre os índios de língua tupi-guarani e seus “aliados infernais”, os Tapuyaner ou Tapuias. Ademais, tanto em seu texto principal quanto nas notas detalhadíssimas, o autor fornece um rico contexto para o documento, à luz de trabalhos historiográficos e etnográficos recentes.
Já o terceiro artigo, de Adone Agnolin, professor do Departamento de História da USP, enfoca o “encontro sacramental e ritual” entre missionários jesuíticos e índios Tupi nos espaços coloniais da América Portuguesa durante o século XVI. Se uma grande parte da documentação é conhecida, pois a publicação de cartas jesuíticas remonta ao próprio século XVI, a abordagem do autor lança mão de debates atuais sobre religião, tradução e hibridismo cultural para reenfocar a resposta indígena às iniciativas catequéticas numa luz diferenciada. Ao invés de olhar as diferenças culturais como monolitos opostos e incompatíveis, Adone Agnolin investiga o espaço comum, compartilhado, no qual os “inevitáveis equívocos e mal-entendidos foram sendo ‘ajustados’, na medida em que se construiu um alargamento dos instrumentos conceituais e lingüísticos” necessários para a situação de catequese. A partir desta ótica, os textos jesuíticos – catecismos, vocabulários, autos dramáticos – permitem entrever mais do que as estratégias missionárias, pois codificam também algumas posturas dos índios.
As missões católicas também proporcionam um material importante para o artigo de Marta Rosa Amoroso, professora de Antropologia da USP, que vem estudando cartas, diários, relatórios e outros relatos dos capuchinhos italianos que conduziram uma parte nodal da política indigenista do II Reinado. Transitando entre os sertões e as capitais, entre as missões e os museus etnográficos, o artigo mostra a riqueza da temática indígena no período do Império. Enquanto as autoridades e os cientistas declaravam os ameríndios extintos ou acaboclados em tal grau que não existiam mais enquanto índios, o Império assistiu vários episódios de lideranças indígenas que empreenderam longas viagens dos sertões às cidades, buscando garantir os seus direitos e afirmar as suas identidades. Deste modo, ao passo que se acelerava a objetificação dos índios através do colecionismo, da etnografia e das exposições universais, Marta Amoroso mostra um outro lado desta história. Aparece não apenas a persistência dos índios, no mais das vezes elidida na historiografia referente ao Império, como também é possível enxergar as posturas adotadas por grupos e indivíduos face às políticas enfeixadas no binômio “catequese e civilização”. Lançando mão da idéia do “arcaísmo” projetado sobre os índios enquanto coletividades amorfas e destemporalizadas, a autora sublinha, de maneira provocadora, o quanto este projeto foi subvertido por atores nativos que buscavam, nas palavras da autora, “negociar a modernidade em seus próprios termos”.
O artigo que completa este dossiê é assinado por Susana Matos Viegas, antropóloga portuguesa do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, que refez radicalmente, 500 anos depois, o caminho para o sul da Bahia ao encontro dos Tupinambá. Mas não são os “índios do descobrimento” nem os seus “remanescentes” atuais que comandam a atenção. A autora se interessa, de maneira instigante, em incorporar uma discussão da maneira pela qual os índios “viveram histórias complexas e longas de sujeição a processos civilizatórios, propondo uma visão mais etnográfica da história”. Na melhor tradição antropológica, ilustra este ponto através de um objeto mais específico, neste caso enfocando a relação entre os Tupinambá e a giroba, uma bebida fermentada que permite pensar a “relação dos Tupinambá de Olivença com o passado”. Para tanto, a autora une uma etnografia densa, repleta de observações de campo e de depoimentos “nativos”, a leituras “etnográficas” das fontes históricas. A história póscolombiana dos índios, nesta leitura, não se escreve nos temos de perdas culturais mas antes se busca entender o “complexo de transformações indígenas”, no qual, segundo a autora, “prazer e persistência vão se articulando com rejeição e anulação de certos hábitos do passado”. Exemplo da “história indígena” nos moldes da atual etnologia americanista, o artigo deixa, para os historiadores, o desafio do diálogo interdisciplinar necessário para repensar as idéias vigentes sobre o lugar dos índios na historiografia contemporânea.
Como organizador do dossiê, salientei aqui apenas alguns dos ensinamentos e perspectivas que fazem deste número algo de especial. Entretanto é cada leitor que irá extrair outros aspectos valiosos, pois todos os textos trazem pesquisas aprofundadas, com detalhes documentais saborosos e aportes bibliográficos inusitados para uma revista de história.
John M. Monteiro – Departamento de Antropologia IFCH-UNICAMP
MONTEIRO, John M. Apresentação. Revista de História, São Paulo, n. 154, 2006. Acessar publicação original [DR]
África e América / Revista de História / 2006
É com grande satisfação que apresentamos o dossiê África & América. Os artigos aqui reunidos dizem respeito a diferentes temas, épocas e sociedades cujo entendimento se remete aos processos históricos inaugurados com a expansão ultramarina da época moderna. Mais especificamente, são textos que procuram avaliar, por meio da revisão de conceitos e de enfoques, o significado histórico dos encontros e dos confrontos entre sociedades européias e não européias, ocorridos nas dimensões do mundo atlântico ou um pouco para além dele. Guardadas as especificidades de cada um dos artigos, é possível articular os textos entre si e demarcá-los em dois conjuntos: um primeiro relativo ao período que vai do século XVI à primeira metade do século XIX, e o segundo, mais contemporâneo, tratando de questões relativas às dinâmicas próprias ao século XX. Em linhas gerais, essa divisão corresponde a marcos da história do mundo atlântico e das interações entre suas frações americanas, africanas e européias.
O primeiro bloco de artigos encontra-se demarcado pela época em que se desenvolveram as características do Atlântico enquanto unidade histórica e pela discussão de diferentes aspectos das sociedades envolvidas diretamente ou indiretamente com o comércio de produtos variados mas, sobretudo de escravos. Deslocando-se de um lado ao outro do oceano, alguns dos textos focalizam a movimentação de contextos portuários, exemplificados aqui na história da cidade de Cartagena, na América hispânica dos inícios do Seiscentos (estudada no artigo de Paola Vargas Arana), em Luanda e Benguela na África portuguesa entre os séculos XVIII e XIX (no texto de Roquinaldo Ferreira) e nos acontecimentos que envolveram o porto de Bonny, na baia de Biafra, área de influência dos britânicos em meados do dezenove (tratados por Alexsander Gebara). Outros dois artigos (os de Catarina Madeira Santos e de Alexandre Marcussi) consideram processos ocorridos em zonas localizadas mais ao interior, na hinterlândia de regiões africanas ou americanas atingidas de formas variadas pelos acontecimentos mais gerais, revelando que, historicamente, o Atlântico não se limitava às suas bordas. Contemplam a inserção de sociedades que ganharam um novo dinamismo, uma vez que foram transformadas não só pelos negócios transoceânicos e pelos fluxos de mercadorias, como se viram envolvidas na ampla circulação de idiomas, de culturas, de práticas e crenças religiosas, ideologias e visões de mundo veiculadas no ir e vir constante de agentes históricos. Entre eles, portugueses, espanhóis, cristãos novos, judeus, flamengos, bem como populações hifenizadas e mestiças, mas principalmente africanos, de várias nacionalidades e etnias que passaram a constituir o segmento mais peculiar e sui generis da nova configuração: trazidos como escravizados para as Américas, conformariam seus maiores contingentes populacionais, modificando substancialmente o perfil destas sociedades. Ao tratar de marcas distintivas e de movimentos singulares, os artigos reunidos neste primeiro bloco contemplam fenômenos complexos que dizem respeito a mestiçagens e a bricolagens, ocasionadas, de um lado, pelos deslocamentos humanos, e de outro, por processos de apropriações e ressignificações culturais, destacando-se entre eles os que se deram no mundo das crenças religiosas que se encontram, dialogam ou simplesmente concorrem entre si. Ou ainda, contemplando as inferências da escrita nas relações de poder em sociedades não européias.
Escritos em sua maioria por jovens historiadores comprometidos com a pesquisa histórica, realizada nos arquivos de Luanda, de Lisboa, de Cartagena, da Itália e do Brasil, os textos apresentam outro elemento em comum, significativo para o aprofundamento historiográfico de temas complexos ainda insuficientemente explorados: a revisão de conceitos e de enfoques necessária à sua abordagem. Roquinaldo Ferreira, africanista e professor da Universidade de Virginia, em suas “Ilhas crioulas”, historiciza o conceito de mestiçagem a partir das singularidades que se evidenciaram em Angola e em Benguela, na busca de se aproximar da complexidade implícita ao que Richard Price chamou da “magia da crioulização”. Já a historiadora portuguesa Catarina Madeira Santos, vinculada aos centros de pesquisa de Lisboa e de Paris, num viés profundamente compromissado com a história africana, reconsidera a introdução e a apropriação da escrita num sentido latente de poder e na perspectiva dos Ndembos do norte de Angola. Avalia a configuração que esse aparato deu às interações dos mesmos com os portugueses de Luanda, veiculado nos tratados de vassalagem e na correspondência entre eles, e às que os mesmos rearticulam com as demais chefaturas africanas da região. A abordagem escolhida pela historiadora pressupõe a impossibilidade de dicotomizar sociedades ágrafas e letradas, sociedades com Estado e sem Estado, mas principalmente, de pensar tais processos a partir da aceitação a priori de um esquematismo conceitual rígido. Para dar ênfase à história não dos portugueses em Angola, mas das relações que os Ndembos constroem com os mesmos e com os demais poderes da região, seu texto se desenvolve precisamente escapando de obrigatoriedades historiográficas e acadêmicas.
De um outro ponto deste mundo transoceânico, o artigo de Paola Vargas Arana, mestre do Centro de Estudos Asiáticos e Africanos do Colégio do México, e atualmente professora de História da África em Salvador, demonstra o profundo envolvimento das sociedades hispânico-americanas com o tráfico atlântico de escravos, ao contemplar o importante porto que foi Cartagena já nos inícios do século XVII, e o escoamento da mão-de-obra africana que daí se fazia em direção às zonas de mineração. O estudo sobre a presença das populações africanas toma como ponto de partida o jesuíta Pedro Claver que desenvolveu seu trabalho de evangelização junto aos desembarcados em Cartagena, trazidos por negreiros portugueses e flamengos, na época da União das Coroas ibéricas. A principal fonte que a autora utiliza – o processo de canonização do jesuíta – lança luz tanto às intenções da Igreja Católica em se reconciliar, por meio do santo, com as populações afrodescendentes, passando pela descrição das estratégias adotadas pelo missionário para a conversão, como também se aproxima, a partir dos depoimentos processuais, do universo mental africano e afro-americano dos que aí viviam, em sua variação étnica e lingüística, chegando aos que intermediavam os mundos em contato, nos desencontros pautados pelas tragédias do tráfico: a figura dos “línguas”, africanos poliglotas identificados e adquiridos pelos padres.
Da mesma forma que o alvo do estudo sobre os Ndembos desloca-se do litoral para o interior e particulariza as mudanças que se operam no âmbito do poder africano, o artigo de Alexandre Marcussi, mestrando do Departamento de História da USP e da Linha de Pesquisa em Escravidão e História Atlântica prioriza as transformações na ótica da reconfiguração de dimensões do religioso, consideradas a partir do processo inquisitorial de Luiza Pinta. Seguindo a tradição historiográfica de estudos sobre os calundus na América portuguesa, sua releitura intrumentaliza-se por um aporte conceitual mais generoso do que a idéia de sincretismo. Finalmente, fechando o primeiro conjunto de textos, a resenha feita por Rosana Gonçalves, também mestranda do Departamento de História e de suas linhas de pesquisa, nos conduz ao estudo recente de António Custódio Gonçalves sobre a história do reino do Kongo e de Angola no período abrangido por este dossiê, analisada com a intenção de reduzir dimensões exógenas e recuperar o dinamismo próprio a estas sociedades.
Avançando no tempo e colocando em perspectiva a figura ambivalente e conflituosa de um dirigente africano em meio a cônsules e mercadores britânicos do golfo de Biafra, o artigo de Alexsander Gebara, doutor e especialista na história das regiões compreendidas no golfo da Guiné, refere-se a um episódio que pode ser visto como marco divisor da história do Atlântico e das sociedades africanas, capaz de flexionar interações seculares havidas entre europeus, africanos e americanos. Trata do contexto decorrente das medidas britânicas de contenção do tráfico de escravos e dos prenúncios de sua política agressiva e intervencionista que irá modificar essencialmente a dinâmica econômica e política de uma ampla região. Apesar da dramaticidade do período anterior, dada pela configuração centrada na escravidão e no seu comércio, afirma Alberto da Costa e Silva que a partir dos eventos dos inícios do século XIX nunca mais o Atlântico será o mesmo. Vale lembrar que este episódio completa atualmente seus duzentos anos, e foi comemorado em Londres com um pedido formal de desculpas, feito pelo primeiro-ministro, diante do enorme comprometimento da Grã-Bretanha no tráfico de escravos.
Como fechamento da problemática geral do dossiê, os dois artigos finais, o de Patrícia Santos Schermann, professora de História da África na Universidade Federal de São Paulo e africanista versada nos temas do islamismo na África Central, e o de Petrônio Domingues, pesquisador e professor da Universidade Federal de Sergipe, indicam que embora o Atlântico já não seja o mesmo com os primórdios do imperialismo, contextos advindos de sua formação histórica repercutiram nas trajetórias tomadas por frações dos continentes americano, africano e europeu e nas interações entre suas partes, podendo atingir tanto um distante Sudão, quanto aproximar as partes americanas numa vertente comum das políticas direcionadas aos afrodescendentes. Em outras palavras, nas primeiras décadas do século XX, seus trabalhos acompanham aspectos de uma história que decorre, direta ou indiretamente, da configuração moldada pela escravidão e por seus efeitos. Retomando o tema da canonização que estivera presente já na América hispânica do século XVII, Patrícia Schermann interpreta um processo similar envolvendo Josephine Bakhita – uma resgatada da escravidão que transitava entre a sociedade italiana e o Sudão central –, interpretado como uma das formas da Igreja em se aproximar dos africanos e de se reconciliar com seu passado escravocrata. De uma santa africana a um jornalista afrodescendente, a figura histórica analisada por Petrônio Domingues é o de um norte-americano que, em viagens ao Brasil e em seus artigos publicados em Chicago, contribuiria para a constituição do mito da nação brasileira como paraíso racial, em contraposição ao que ocorria nos Estados Unidos. Neste sentido, o conceito de democracia racial no geral associado tão somente à figura de Gilberto Freyre e, no mais das vezes destituído de contextualização, ganha historicidade relevante ao se ver atrelado às imagens que se procurava incutir nos negros norte-americanos, oferecendo possibilidades de fuga do “inferno racial” e da política de discriminação legal, em direção ao universo da dissimulação do qual o próprio jornalista havia sentido os efeitos em sua viagem às cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Os artigos que compõem este dossiê foram recebidos em resposta ao chamado que Editores e Comissão Editorial da Revista de História da USP fizeram, em novembro do ano passado, no sentido de compor um número destinado ao tema bastante largo de zonas de contato, pensado este em sua acepção ampla de espaços históricos em que populações, culturas e visões de mundo se encontraram e se transformaram. O título modificado de África & América traduz as características de um primeiro conjunto delineado pela remessa e seleção de textos, expressando possivelmente a atenção que estudos feitos nesta ótica vem ganhando entre a produção histórica. De outra parte, formulado desta maneira, este conjunto de textos vem ao encontro da firme determinação do Departamento de História da FFLCH e de seus Programas de Pós-graduação em História Social e em História Econômica em estimular a formação de pesquisadores e de professores especializados em temas nos quais as histórias das múltiplas frações do Atlântico se conectam. Também como resultado da experiência de um trabalho coletivo, o dossiê só pôde ser concretizado a partir do debate acadêmico promovido pela Linha de Pesquisa Escravidão e História Atlântica e pelo esforço conjunto em restabelecer a prática do diálogo acadêmico, na forma dos seminários promovidos pelos professores Carlos Alberto Ribeiro de Moura Zeron, Maria Helena Pereira Toledo Machado, atual editora da Revista de História, Marina de Mello e Souza, Rafael de Bivar Marquese, e por mim que assino esta apresentação,
Maria Cristina Cortez Wissenbach
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Apresentação. Revista de História, São Paulo, n. 155, 2006. Acessar publicação original [DR]
História Atlântica / Revista de História / 2005
São Paulo-450 / Revista de História / 2004
Fazendo eco às comemorações dos quatro séculos e meio de fundação da cidade de São Paulo, o número 150 da Revista de História abre com o Dossiê São Paulo 450 anos, cuja composição reflete a variedade de temas e abordagens que hoje enriquecem a historiografia paulistana interessada no estudo da cidade no século XX. Contando com os artigos de Maria Cristina Cortez C. Wissenbach, James P. Woodard, Petrônio Domingues e Damião Duque de Farias, os textos apontam para diferentes perspectivas historiográficas, apresentando estudos sobre temas tais como a inserção das práticas mágicas e do curandeirismo na cidade que se aburguesava nos anos de 1910 a 1940 (A Mercantilização da Magia na Urbanização de São Paulo, 1910-1940), a questão da formação política dos grupos paulistanos e sua projeção no cenário nacional da década de 1920 (Regionalismo Paulista e Política Partidária nos Anos Vinte), a eclosão de uma pioneira experiência de movimento e imprensa negra na São Paulo na década de1930 (Paladinos da Liberdade”. A Experiência do Clube Negro de Cultura Social em São Paulo, 1932-1938) e, finalmente, o quarto artigo (Representações Historiográficas Católicas por ocasião da Comemoração do IV Centenário da Cidade de São Paulo) enfoca as representações produzidas por um imaginário paulistano católico e conservador, de viés bandeirista e empresarial, cujo escopo têm agora, em torno dos 450 anos da cidade, sido objeto de uma merecida crítica historiográfica.
A seção de artigos da Revista de História número 150 se inicia com o texto de Cielo Festino sobre a literatura de língua inglesa na Índia do Raj (A História nas Estórias das Mulheres do Raj) e cujo objetivo foi o de apontar as ligações entre a literatura, gênero e imperialismo. A seguir encontramos o artigo de cunho historiográfico de autoria de Márcia de Almeida Gonçalves (Narrativa Biográfica e Escrita da História: Octávio Tarquínio de Sousa e seu Tempo) que enfoca a questão da construção narrativa da biografia na obra de Otávio Tarquínio de Sousa. O artigo de Eduardo Natalino dos Santos (As Tradições Indígenas diante da Conquista e Coloniazação da América: Transformações e Continuidades entre Nahuas e Incas), ao se deter sobre a questão da história indígena frente à conquista, apresenta perspectivas analíticas de um tema tão rico quanto carente de abordagens em nosso meio acadêmico. Por último, na tradição da história das idéias, Lincoln Secco (Biblioteca Gramsciana: os Livros da Prisão de Antonio Gramsci) aborda a construção do pensamento gramsciano por meio da análise de sua biblioteca no cárcere.
Editorial
Editor. Editorial. Revista de História, São Paulo, n. 150, 2004. Acessar publicação original [DR]
História e Historiografia / Revista de História / 2004
Cinema Brasileiro e História / Revista de História / 1999
Neonazismo / Revista de História / 1994
O presente volume da Revista de História tem como núcleo temático o racismo, as diversidades culturais e as relações inter-étnicas: tema oportuno neste final de milênio quando assistimos ao avanço do ultranacionalismo, da xenofobia e do anti-semitismo. Na Europa, o neonazismo ronda os jovens alimentados pelos slogans dos partidos de extrema-direita, liderados por Jean-Marie Le Pen (França) e Vladimir Jirinovskì (Rùssia), Gianfranco Finì (Itália) e Franz Schonhuber (Alemanha). Na ex-Iugaslávia, grupos extremistas colocam em prática uma política de limpeza étnica enquanto que na Hungria, skinheads praticam atos de violência e vandalismo empunhando suásticas e repelindo slogans nazistas. No Brasil, “carecas de subúrbio” declaram guerra aos homossexuais, judeus, negros e nordestinos.
O século XX, além de ser a era da imagem, da chegada do homem à lua, da informática, deve, também, ser visto como a era da intolerância. Desde o final do século XIX, o mundo se transformou num verdadeiro mosaico de tensões étnico-religiosas. Não podemos ficar alheios a este fenômeno, abrindo espaço para aqueles que defendem a revisão da História, em detrimento da verdade.
O racismo é, antes de mais nada, a negação dos ideais democráticos manifestando-se pela ignorância, irracionalidade e mentira. Sustentado pelo dogma das desigualdades substitui, pelo ódio e conflitos raciais, o respeito à dignidade humana.
Este número, além de retomar temas expressivos da prática racista e das diversidades étnico-culturais tem, antes de mais nada, uma função pedagógica: a de recuperar a trajetória do racismo e do anti-semitismo e de aprofundar o debate crítico respondendo as interrogações do momento.
O conjunto dos artigos aqui reunidos não apresenta uma uniformidade metodológica, visto não ter sido este o critério para a seleção dos mesmos. Optamos pela diversidade de assuntos, fontes e abordagens, com o propósito de compreender o racismo nos seus múltiplos aspectos e contextos histórico-geográficos. Este não é um número acabado e sim uma proposta para outros estudiosos ampliarem as análises aqui abordadas.
Maria Luiza Tucci Carneiro – Departamento de História – FFLCH / USP
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Apresentação. Revista de História, São Paulo, n. 129-131, ago- dez / 1993 a ago / dez 1994. Acessar publicação original [DR]
História | USP | 1950
Fundada pelo professor Eurípedes Simões de Paula, a Revista de História [USP] (São Paulo, 1950-) é um dos mais antigos periódicos acadêmicos do Brasil especializado nessa disciplina. Publicada pelo Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (DH/FFLCH/USP).
Fundada em 1950, pelo professor Eurípedes Simões de Paula, a Revista de História é um dos mais antigos periódicos acadêmicos do Brasil especializado nessa disciplina. Publicada pelo Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (DH/FFLCH/USP), sua missão é divulgar artigos em português e espanhol, originais inéditos ou traduzidos, resenhas e edições críticas de fontes na área de História e afins.
Seu principal objetivo é contribuir para o debate acadêmico nessa área e nas Ciências Humanas em geral, além de servir como meio de divulgação da produção acadêmica a um público mais amplo.
Sua publicação conta com o apoio financeiro dos dois programas de pós-graduação do Departamento de História da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH) – História Social e História Econômica – e do Programa de Apoio às Publicações Periódicas Científicas da USP. O título abreviado do periódico é Rev. Hist. (São Paulo), que deve ser usado em bibliografias, notas de rodapé, referências e legendas bibliográficas.
Periodicidade semestral.
Acesso livre
ISSN 2316-9141 (Impresso)
ISSN 0034-8309 (Online)
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