História Social dos Sertões / Outros Tempos / 2021

SPIVAK Gayatri 1 História Social dos Sertões
Gayatri Spivak / Foto: Tweetar /

Outros Tempos v 18 n 31 1 História Social dos SertõesPode o subalterno falar? Essa foi a questão formulada por Gayatri Spivak em artigo publicado em 19881 . A pergunta da professora e crítica literária indiana vem há décadas inspirando esforços na direção da descolonização da produção do conhecimento. Eivada pelo olhar certeiro da autora, a incômoda indagação conectou-se a inúmeros debates intelectuais das ciências humanas nas últimas décadas, atribuindo amplitude e autoridade ao ponto de vista feminino de uma intelectual egressa de uma ex-colônia inglesa, que colocou na berlinda o pensamento social e a teoria crítica ocidental. Podemos questionar, seguindo a reflexão de Spivak, se é válido auscultar personagens e territorialidades subalternizadas utilizando somente o arcabouço teórico-analítico oriundo de pensadores europeus entronados em instituições historicamente identificadas com diversas formas de colonialismo.

A provocação levantada pela autora ajudou a fortalecer a tendência do deslocamento do olhar acadêmico do centro para as periferias, do Norte para o Sul global, das nações centrais do capitalismo para suas margens. Essa tem sido a contribuição dos estudos pós-coloniais e decoloniais, que vem validando a instrumentalização de uma utensilagem analítica calibrada para entender os silêncios e os silenciamentos dos subalternizados, de olhos fitos nas especificidades de seus espaços de criação e reprodução sociocultural. Tal debate vem igualmente influenciando pesquisas no Brasil, especialmente no campo das humanidades. Mais que inserir os “vencidos” nos estudos acadêmicos, é preciso investigar e produzir outras epistemologias, pensadas a partir das margens. A História Social dos Sertões se insere nesses esforços, posicionando o foco em processos históricos de um Brasil distante dos grandes centros urbanos, jungidos à mesma lógica global que produz riquezas e multiplica desigualdades. Cumpre notar que a temática “sertaneja” vem sendo discutida grandemente em universidades situadas em cidades pequenas e médias, que foram contempladas no processo de interiorização de instituições de ensino superior em tempos de governos democráticos populares.

O sertão, antigo e polissêmico, historicamente observado na arte, na literatura, na música e na imagética nacional como o avesso da modernidade, tem retrucado o olhar na direção de seus intérpretes. A dita réplica pode ser observada, por exemplo, na obra de Sérvulo Roberto, artista plástico amazonense residente em Codó – MA há 30 anos, que forjou uma rica galeria temática, na qual podem ser encontradas as quebradeiras de coco babaçu, cenas de festejos locais, imagens da religiosidade popular, tudo criado em seu ateliê no Bairro São Pedro, em Codó. Destacam-se em seu repertório quadros com narrativas visuais dos mundos do trabalho, como no caso da tela “Bem perto”, produzida em 2019, que serve de capa para o presente dossiê. A obra apresenta um belo panorama em três planos, com uma quebradeira de coco debaixo das folhagens de um babaçual, ladeada por diversos homens, mulheres e crianças negras com cestos de palha na cabeça, que miram conjuntamente uma grande cidade, recoberta por um imenso sol ao fundo. Na cena, o sertão dos cocais observa a urbe, dando a impressão de que as palmeiras e as fileiras de trabalhadores empurram a metrópole, que se resguarda como uma fortaleza de prédios esguios e enfileirados. Os olhares dos personagens, segundo o artista, carregam esperanças de melhoria “bem perto” da cidade, mas a metrópole não se mostra receptiva, disposta em terceiro plano encurralada pelos olhares dos camponeses.

A urbe apresenta-se sitiada pelos camponeses. As possibilidades interpretativas da arte reposicionam o cotidiano da migração sazonal de trabalhadores pobres oriundos da região dos cocais, alvos de grave espoliação, que buscam em centros urbanos e também em grandes propriedades rurais melhores possibilidades de sobrevivência. Sob os olhos de Sérvulo Roberto, o sertão espreita a cidade.

É por esse olhar investigativo dos sertanejos, atentos ao mundo circundante do sertão, que o presente dossiê traz artigos que vão ao encontro da inquietação do artista. Textos produzidos por autores e autoras que manifestam diversas nuances da polissemia dos estudos sobre os sertões, contemplados em suas composições históricas e discursivas. Abre a edição da Revista Outros Tempos a pesquisa de José Reinaldo Miranda de Sousa, intitulada Codó: uma África sertaneja, que reflete acerca das dimensões e contribuições dos africanos na cidade de Codó, experiência que desenha no cenário dessa cidade aspectos identitários de uma África em terras maranhenses.

Logo em seguida, temos a possibilidade de encontrar o sertão dos homens no texto de Jakson dos Santos Ribeiro, intitulado, Performances masculinas em cena: o homem público da Princesa do Sertão à luz da imprensa caxiense, em que o autor problematiza as formas de ser e estar, dando possiblidades para compreender as masculinidades que se encontram e desencontram em discursos que circularam na imprensa da cidade de Caxias – MA durante a Primeira República.

Entre os textos desse dossiê também podem ser observados os sertões do período colonial, em artigo de autoria de Samir Lola Roland, denominado Sesmarias, ocupação e conflitos de terra nos sertões do Maranhão e Piauí colonial (1700-1759), em que o autor reflete acerca das disputas num interior atravessado pelos interesses de fazendeiros que esbulhavam terras indígenas seguindo os caminhos dos rios. A dita espacialidade servia de palco para constituição das experiências dos interesses do Estado e do cotidiano de exploradores adventícios, que buscavam ampliar seus domínios nos sertões do Maranhão e do Piauí.

Ainda na rota dos conflitos, encontramos outras páginas de história retratadas no texto de Anderson Coelho da Rocha, com o título: Nos sertões dos Oitocentos: escravidão, liberdade e criminalidade nos sertões da Província do Ceará (1830-1888). O autor posiciona as tensões no âmbito da sobrevivência e das relações interpessoais entre populações sertanejas, classificadas à época como “gente da pior espécie”, atravessadas pelo viés racista e pelas políticas de combate à vadiagem, que acometiam grandemente populações pobres e não-brancas, livres ou escravizadas.

Populações pobres interioranas também aparecem nas reflexões de Janille Campos Maia, que devassa em sua pesquisa um sertão de muitos conflitos e dificuldades de sobrevivência, piorados pela ocorrência da grande seca de 1877-1879. A autora trata da migração de trabalhadores do interior do Ceará em demanda da capital da província. Em Exilados do sertão: migração cearense na seca de 1877, Janille revisita tema já bastante discutido na historiografia dos sertões, adensando informações sobre o cotidiano de personagens desvalidos durante os horrores da estiagem, com foco nas ações e políticas de socorros públicos na cidade de Fortaleza.

A ambiência de pobreza e rarefeitas políticas de assistência historicamente contribuíram para maximizar a ocorrência de surtos epidêmicos, presentes nas narrativas sertanejas e em suas memórias da morte. Algumas das interpretações desses sertões adoecidos aparecem nos apontamentos realizados por Maria de Fátima Morais Pinho e Jucieldo Ferreira Alexandre, autores do texto Em toda parte só se ouvia falar em morte: a gripe espanhola no Cariri (1918-1919), cujas reflexões discorrem sobre os enfrentamentos do período da grave epidemia de gripe em terras caririenses.

Na sequência do dossiê, esse sertão de muitos sentidos também nos mostra o lugar do futebol, através das reflexões realizadas pelos autores Francisco Demétrius Luciano Caldas, Álvaro Rego Millen Neto e Bruno Otávio de Lacerda Abrahão, com o texto intitulado O futebol no sertão nordestino brasileiro: o torneio BAPE em Juazeiro e Petrolina na década de 1990, em que é possível encontrar um time de futebol protagonizando momentos relevantes para as sociabilidades locais.

Momentos de encontro e descontração apontam possibilidades de investigação para além das narrativas da pobreza que marcam as paisagens sertanejas. Nesse direcionamento, também há espaço para pensar um sertão conectado com tendências globais, que projetava um cenário de crescimento econômico através da indústria. Este é o tema central no texto de Naudiney de Castro Gonçalves, que aborda as facetas de Antonio Linard: um industrial no sertão do Cariri cearense, personagem que introduziu mudanças perceptíveis na economia local a partir da inserção de novas tecnologias, capazes de criar um movimento significativo de transformações socioeconômicas.

No campo das artes, o dossiê é contemplado por um interessante estudo de caso de Jonas Rodrigues de Moraes, intitulado História, memórias, oralidades, cultura e artes na Baixada Maranhense, importante levantamento das manifestações culturais de mestres e grupos populares nas cidades de Pinheiro, São Bento, Santa Helena e Presidente Sarney. A pesquisa fez uso de técnicas etnográficas e da história oral, cujos resultados estimularam gestores públicos locais a pensarem as possibilidades de um mapeamento cultural de seus respectivos municípios.

Por fim, mas não menos importante, este dossiê segue com a entrevista de José Carlos Aragão Silva, cujas experiências docentes servem de bússola para pensarmos as problemáticas enfrentadas por profissionais de História nos sertões maranhenses. Professor do Colegiado de Ciências Humanas / História da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), campus Codó, o entrevistado vem trabalhando na formação de profissionais da educação básica atuantes em áreas rurais e em municípios do interior. Aragão nos convida a refletir sobre as agências desses docentes, que podem servir de farol para pensarmos a formação e a importantíssima atuação de professores fora dos grandes centros.

Como se vê, as páginas deste número da Revista Outros Tempos são compostas por diversas interpretações dos sertões, pluridimensionais e complexas. Por isso, esperamos que a audiência do dossiê possa apreciar e encontrar nos estudos que seguem inspirações e instrumentos para refletir sobre a temática, repleta de narrativas, experiências e sentidos. Boa leitura!

Antonio Alexandre Isidio Cardoso – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo – USP Professor da Universidade Federal do Maranhão – UFMA, Campus Codó Codó, Maranhão, Brasil. E-mail: alexandre.antonio@ufma.br

JaKson dos Santos Ribeiro – Doutor em História pela Universidade Federal do Pará – UFPA Professor da Universidade Estadual do Maranhão – UEMA, Campus Caxias Caxias, Maranhão, Brasil. E-mail: noskcajzaionnel@gmail.com

Jonas Rodrigues de Moraes – Doutor em História Social pela Pontifícia Universidade Católica – PUC-SP Professor da Universidade Federal do Maranhão – UFMA, Campus Codó Codó, Maranhão, Brasil. E-mail: jonasacroa@yahoo.com.br

Os organizadores


CARDOSO, Antonio Alexandre Isidio; RIBEIRO, Jakson dos Santos; MORAES, Jonas Rodrigues de. O Sertão à espreita (Apresentação). Outros Tempos, Maranhão, v. 18, n. 31, 2021. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê