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História Social do Crime / Crítica Histórica / 2011
As análises sobre a criminalidade começaram a ser resultantes do interesse público burguês apenas no século XIX, quando o Estado passou a se preocupar com a pobreza e a desordem [1]. Os estudos incidiram drasticamente sobre os bêbados da classe trabalhadora, que devido às flutuações do mercado de trabalho, afogavam o seu desespero e a sua miséria nas bebidas como único recurso. Essa relação entre os hábitos de bebedeira, o aumento de crimes, as desordens sociais e a oferta do mercado de trabalho favoreceu as análises e estatísticas de pesquisadores do século XIX, como Morrison (1891) [2], tornando significativa a relação crime-prosperidade ‘versus’ uma economia de miséria. Em 1927 Tobias [3] reiterou a ligação entre os hábitos de bebedeira e a incidência de crimes. Também, em 1977-1987, as análises de Philips e Emsley [4] demostraram não haver muita diferença entre uma classe criminal desonesta e um honesto operário – já que esta ‘marginália’ vivia sob constante suspeita. Roger Lane, Yue-Chim Wong e historiadores como Willian Taylor e John E. Kicza são exemplos de estudiosos que tem relacionado à violência interpessoal e a incidência de crimes aos hábitos de bebedeira nas sociedades ocidentais e colônias em particular.[5]
A partir da década de 1960 com a história social os trabalhos acadêmicos interessaram-se pela violência direcionada aos movimentos sociais e a exploração da classe operária. Isto de certa forma possibilitou o surgimento de outras perspectivas, utilizando-se de uma releitura sobre o aparato conceitual marxista (norteado pelo paradigma da privação – pobreza – crime) e a nova ênfase sobre os estudos culturais, em especial para as mudanças sociais. A historiografia desenvolvia, então, estudos buscando compreender a violência coletiva, como parte importante da grande temática da violência, separando os comportamentos subversivos segundo o perfil de sua ação. Dentre estes trabalhos as teses de Charles Tilly, Hobsbawm, Thompson e Ted Gurr [6], transformaram a historiografia contemporânea, buscando não apenas a correlação dos elementos culturais, mas as mudanças sociais interagidas às relações de dominação e do poder público. Assim, a história social proporcionou mudanças na historiografia, consolidando uma referência conceitual fundamentada em novos aportes teórico-metodológico fornecido por Fernand Braudel, Michel Foucault e Pierre Bourdieu. Os oprimidos, os marginalizados, as mulheres, os vadios, todos aqueles que foram excluídos da história, começavam a ressurgir do passado. E, do conceito de ideologia, que emanava da relação ‘dominantes-dominados’, a História Nova buscou inserir as noções de mentalidade, imaginário e inconsciente coletivo, abrangendo o aspecto cultural. A partir daí, as análises da violência interpessoal tem se concentrado em dois modelos interdependentes: (1) a violência instrumental (racional) que traduz-se enquanto abordagem quantitativa. Um aumento ou declínio da proporção de homicídios nas dadas culturas traduz-se em resultados variáveis nos níveis de violência. (2) A abordagem qualitativa, por sua vez, apóia-se no estudo da violência impulsiva e suas variáveis culturais. A ênfase da pesquisa qualitativa situa-se no campo do comportamento moral e ritual dos indivíduos; assim como o significado contemporâneo atribuído aos atos violentos. Segundo Spierenburg [7], a obra de Natalie Davis foi pioneira neste tipo de estudo.
Com a Escola dos Annales surgiram outras perspectivas historiográficas a partir de novos objetos e propostas. Uma destas propostas tem sido recentemente recolocada em seu lugar com os estudos de violência de gênero. É uma dimensão para a qual a historiografia criminal poderá caminhar. A idéia é desenvolver a partir das metodologias interdisciplinares, análises da historiografia criminal orientada para temáticas voltadas a condição social e cultural, como é a proposta do ‘femicide’. Assim, as estatísticas criminais deverão ser elaboradas segundo as categorias de análise e processadas em longa duração, disto a verificação dos dados e a busca pela sua significação social. A compreensão de um passado criminal recente pode revelar processos de continuidade e ou descontinuidade como dados seminais às análises criminais. Recentemente, Jock Young (2008) criticou a criminologia contemporânea em não perceber a importância das mudanças sociais para o entendimento do crime enquanto fenômeno histórico e social.
Assim, o presente número da revista Crítica Histórica tem o objetivo de participar destes debates e discussões com o Dossiê sobre História Social do Crime. Por conseguinte, no primeiro artigo: “Justiça Privada e Banditismo: um estudo sobre as formas de acomodação de poder no Brasil Setecentista”, os autores Celia Nonata da Silva e Renato Dias analisam o banditismo rural como um fenômeno social de longa duração no país, compreendendo o pistoleirismo como parte integrante da cultura política e das relações de poder presentes no meio rural, comungando com a permanência de valores coloniais da valentia, da honra e das formas de vingança. Ainda sobre o contexto histórico do século XVIII, o artigo intitulado “Crime e Justiça no Domicílio Ordinário dos Delinquentes: Comarca das Alagoas (Século XVIII)” dos autores Alex Rolim, Arthur Almeida Santos de Carvalho Curvelo, Dimas Bezerra Marques e Lanuza Maria Carnaúba Pedrosa apresentam uma análise sobre a relação da justiça oficial com os poderes locais, propondo uma visão historiográfica colonial do conflito interno na América Portuguesa e não da ordem. Para isso, serão abordados casos de crimes envolvendo as diversas cadeias de micropoderes que permeavam o corpo social da localidade. Visto isto, pretende-se trazer à discussão os abusos de poder dos Ouvidores Gerais, bem como as deturpações morais dos eclesiásticos e dos oficiais das Câmaras, como também a manutenção decadente das cadeias municipais.
Notamos que o compromisso historiográfico de identificar a desordem e o seu contraponto como o controle do Estado tem se tornado tema recorrente nos trabalhos. É o que se propõe o artigo “Reforma penitenciária? Aspectos do cotidiano da Casa de Detenção do Recife na segunda metade do século XIX” do autor Flávio de Sá Cavalcanti de Albuquerque Neto, que analisa o local de controle estatal identificado como a prisão no século XIX em Recife as reformas de controle estatal no período. A partir de fontes produzidas na Casa de Detenção do Recife desde sua inauguração, em 1855, até o final do Império, este artigo analisa os limites da reforma do regime das prisões brasileiras, efetivado na segunda metade do século XIX. Algumas abordagens se centram em discussões temáticas em torno da criminalidade em si, como elemento contundente das formas de desordem e delinquência social. É o caso do artigo “Nos limites da criminalidade: práticas de homicídios, conflitos e relações de sociabilidade em Salvador (1940-1960)” pelo autor Wanderson B. de Souza, que pretendeu discutir neste trabalho os aspectos da criminalidade em Salvador, a partir da análise das práticas de homicídios, na tentativa de compreender as relações conflituosas dos grupos marginalizados em suas multiplicidades de formas e configurações históricas. A ideia do autor se sustentou na documentação pesquisada em fontes jornalísticas, processos criminais e um conjunto de correspondências trocadas entre as autoridades policiais. Inserido na temática das formas da criminalidade. O artigo seguinte “Em nome da segurança nacional: os escritores na mira da polícia” da autora Ana Paula Palamartchuk, buscou-se uma análise do discurso policial nos anos trinta com referencia a um discurso de criminalização ‘às mentes comunistas perigosas’. Os autores pesquisados que sustentaram a argumentação estão centrados nas obras de Graciliano Ramos, Jorge Amado, Caio Prado Júnior e Astrojildo Pereira, onde suas obras passam a ser visadas pela polícia como “perigosas”.
Outra abordagem mais sutil à discussão do controle estatal sugere as reformas urbanas como elementos da racionalidade moderna e estratégias de poder público. Este é o exemplo do artigo “A Cidade está Chegando: Expansão Urbana na Zona Rural do Rio de Janeiro (1890-1940)” por Leonardo Soares dos Santos, que analisa as transformações urbanas na zona rural da cidade do Rio de Janeiro, entre 1890 e 1940. Como fonte de informação este estudo examina alguns projetos, cartas de jornais e requerimentos de autoridades políticas, funcionários públicos e cidadãos comuns. Ainda relacionado ao tema do conflito social e as formas do controle público, o artigo “Terras de aldeamentos: Trajetória de Atalaia e Sepultura nos Campos de Guarapuava (século XIX)” por Cristiano Augusto Durat discute algumas questões que marcaram a história da ocupação e povoamento dos Campos de Guarapuava nas primeiras décadas dos oitocentos: a aproximação dos lusos brasileiros com os índios da região; a criação da Aldeia de Atalaia; o pós-aldeamento e a existência de outro território tido como sesmaria dos índios conhecido por Sepultura.
Os artigos de fluxo contínuo avaliam temáticas diversas tais como o texto sobre “Walter Benjamin: inspirações para a historiografia da educação” onde o autor Rafael Alexandre Belo buscou apresentar princípios metodológicos e proposições teóricas para a história da educação a partir da leitura de Walter Benjamin. Consideramos como alicerces epistemológicos da presente construção: a concepção de tempo (Jetztzeit); a dimensão teológica; a concepção de história; a crítica ao progresso; e a concepção de experiência (Erfahung). A articulação desses princípios como elementos metodológicos demonstrou ser uma importante contribuição para investigações de grupos silenciados pela história oficial. Outro artigo apresentou a importância de Michel de Certeau na historiografia com o titulo “Diálogos com Michel de Certeau sobre a Pesquisa nas Ciências Humanas” de Francisco das Chagas Loiola, a proposta deste artigo foi estabelecer um diálogo com Michel de Certeau sobre o trabalho do pesquisador no campo da História e das Ciências Humanas, em geral. Assim também “Educação, Diversidade e Racismo: Repensando a Formação do / a Professor / a” de Elenice Silva Ferreira pretendeu uma reflexão acerca da necessidade urgente de se repensar a prática educativa hoje, no que diz respeito ao ensino da história da África e da cultura afro-brasileira na educação básica, vindo à tona a partir da promulgação da lei 10.639 / 20038 . Nessa perspectiva, a autora buscou discutir como na história da educação brasileira, a ausência de uma reflexão sobre as relações raciais no planejamento escolar tem impedido a promoção de relações interpessoais respeitáveis e igualitárias entre os agentes sociais que integram o cotidiano da escola. Ainda na perspectiva da temática da educação os autores a seguir apresentam os resultados dos trabalhos do núcleo de pesquisa. O artigo “O Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Diversidade Étnico-Racial (NEDER)” apresenta algumas análises pela proposta aqui referida pelos autores Marcus Swell e Rosário de Fátima, abordam parte dos resultados da ação do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Diversidade Étnico-Racial (NEDER) na rede municipal de ensino de Maceió, na aplicação das Leis 10.639 / 2003 e 11.645 / 2008. E o objetivo do artigo foi apontar os desafios pedagógicos e políticos da luta antiracista, tendo em vista a histórica intolerância existente no Brasil e na sociedade alagoana.
Deixando a temática da educação o artigo final insere-se numa análise da literatura de Emile Zola intitulado “Entre a Genialidade e a Justiça: A Trajetória do Escritor Naturalista Émile Zola” por Rodrigo Carvalho, cujo objetivo foi analisar a literatura de Zola inserida no seu contexto histórico de época, participando de um engajamento político como figura libertária. [8] Atualmente 11.645 / 2008, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Uma conquista justa pelos indígenas brasileiros.
Notas
1. Ver: SHINNER, Q. Liberdade antes do liberalismo. Tradução: Raul Fiker. São Paulo: UNESP, 1999.
2. APUD: WONG, Yue-Chim An Economic Analysis of the Crime Rate in England and Wales, 1857-92. P.: 235. In.: Economica (1995) 62. P.: 235.
3. APUD: WONG, Yue-Chim. Op .Cit. P.: 237
4. APUD: WONG, Yue-Chim. An Economic Analysis of the Crime Rate in England and Wales, 1857-92. Economica (1995) 62. P.: 335.
5. LANE, Roger. Crime and criminal statistics in nineteenth century Massachusetts. Journal of Social History.; WONG, Yue-Chim. Op. Cit. Pp.: 235-246.; TAYLOR, Willian. Drinking, homicide and rebellion in colonial mexican villages. Stanford University Press: London, 1979; KICZA, John. “Drinking, popular protest and governamental response in seventeenth and eighteenth century Latin America”. Contemporary Drug Problems.
6. Respectivamente: TILLY, Charles. Social Movements: 1768-2004. Paradigm Publishers: London, 2004.; HOBSBAWM, Eric. Bandidos. Tradução: Donaldson Magalhães Garschagen. Rio de Janeiro: Forense, 1976; THOMSON, E.P. Senhores e Caçadores. Tradução: Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997 e Ted. “Crime and Justice”. In.: An Annual Review of Research. 1994. Pp.: 295-351.
7. Cf.: SPIERENBURG, Pieter. “Faces of Violence: Homicide trends and Cultural meanings: Amsterdam, 1431-1816”. In.: Journal of Social History. Pp.: 701-716.
8. Atualmente 11.645 / 2008, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Uma conquista justa pelos indígenas brasileiros.
SILVA, Célia Nonata da. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 2, n. 3, junho, 2011. Acessar publicação original [DR]