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História Social da Arte / História, histórias / 2018
Este dossiê reúne artigos que analisam criações artísticas (visuais e literárias) de acordo com os pressupostos teórico-metodológicos da História Social da Arte, cujo princípio fundamental é a indissociabilidade do estudo da obra de arte, do artista e da sociedade na qual, ou para a qual, foi concebida. Os sete textos que compõem o presente dossiê cobrem, juntos, um extenso período histórico: do século XVI ao XXI.
O artigo de Maria Leonor Garcia da Cruz apresenta reflexões sobre o pensamento político, social e espiritual do século XVI a partir do cruzamento de criações das belas-artes e das belas-letras, tendo como fontes de pesquisa obras de Hieronymus Bosch (c.1450-1516), Hans Holbein, o Moço (1497/98-1543), César Ripa (c.1555/60-1622), Alciato (1492-1550), Gil Vicente (1460/70-c.1536), Thomas More (1478-1535) e Maquiavel (1469-1527). Considerando que “o homem do século XVI é naturalmente crente”, a autora investiga os discursos quinhentistas – principalmente as criações textuais e visuais de cunho sarcástico e irônico – destacando os seguintes aspectos: a) a soberba e a ambição voraz , “ou seja, a opção pelo fraudulento e efêmero, em lugar de uma elevação da alma e de conduta ética, moral e política”; b) “a arbitrariedade do governante, contrapondo a tal conduta objectivos que lhe são superiores, limites morais e práticos, das modalidades de escolha ao uso do conselho e de outras técnicas de governo”; c) a “crueldade do exercício da justiça e sobretudo o desvio (não por incapacidade, mas intencional) de uma prática regulada por lei, sussobrante a subornos e favoritismos”. Seu estudo demonstra que a prédica do período, seja por meio da ironia, da idealização, ou mesmo da utopia, esforça-se “por endireitar um mundo que parece irremediavelmente invertido”.
Sabrina Mara Sant’Anna examina em seu artigo a importância do decoro do sacrário eucarístico no Bispado de Mariana, verticalizando a investigação de casos ocorridos entre 1745 e 1779 em que o Santíssimo Sacramento precisou ser transferido para uma casa provisória por estar a sua casa indecente. Debruçando-se sobre a legislação eclesiástica americana portuguesa, as cartas provenientes de visitas pastorais e a documentação confrarial setecentista, a autora apresenta “a teia de relações que envolvia os devotos, os artistas/artífices, as autoridades eclesiásticas e o padroado régio” quando o assunto era a fatura de um altar-retábulo com sacrário destinado ao armazenamento da reserva eucarística. Nos três casos analisados no artigo – Matriz do Ribeirão do Carmo (elevada à Catedral de Mariana em 1745), Matriz de Santo Antônio do Ribeirão de Santa Bárbara e Matriz das Congonhas do Campo – Sabrina verifica a indispensabilidade do decoro da casa do Santíssimo, “inclusive quando a referida casa era apenas provisória (normalmente um sacrário de altar confrarial localizado na nave dos templos usado enquanto o tabernáculo eucarístico estava impedido, isto é, em obras, ou indecente e precisando de obras)”.
Camila Fernandes Guimarães Santiago analisa em seu artigo a produção do Missal Romano e suas estampas editados em Portugal a partir 1760, época em que as políticas econômicas protecionistas adotadas pela coroa favoreciam as concessões de privilégios de impressão aos naturais do reino e proibia a importação de missais estrangeiros, sobretudo os advindos de casas tipográficas localizadas em Veneza e Antuérpia. O primeiro beneficiário foi o editor lisboeta Francisco Gonçalves Marques, cuja concessão foi renovada três vezes desde de 1760 até que, por decreto da rainha D. Maria I, em 1779 o monopólio foi transferido para a Regia Officina Typpographica. A autora destaca que na Capitania das Minas, região interiorana da América Portuguesa, a política de reserva de mercado operada pela coroa ocasionou a predominância dos missais editados após 1780, “o que interferiu, por sua vez, no universo de insinuações artísticas europeias ali disponíveis, uma vez que suas estampas apresentavam pendores classicizantes, de origem italiana”.
O artigo de Roselene de Souza Ferrante apresenta um estudo sobre Pasquale De Chirico, escultor italiano que se formou na Real Academia de Belas Artes de Nápoles e que imigrou para o Brasil durante a Primeira República. A ele atribui-se a primeira fundição artística de São Paulo, cidade onde morou e realizou bustos e estátuas públicas de José Bonifácio (em Santos), Coronel José Joaquim (em São João da Boa Vista) e Nossa Senhora da Conceição (fachada da antiga Catedral em Aparecida do Norte). Em Salvador, onde passou a residir a partir de 1905, Pasquale de Chirico executou diversos conjuntos de estatuária pública: Barão do Rio Branco, Visconde de Cairú, Dom Pedro II, Conde dos Arcos, Padre Manoel da Nóbrega e Castro Alves, além de lecionar escultura na Escola de Belas Artes da Bahia e contribuir, portanto, para a formação de artista locais. Também foi na Bahia que o imigrado italiano realizou em 1936 uma exposição apresentando o negro como objeto artístico. Embora os estudos raciais estivessem na pauta de discussão dos intelectuais brasileiros, inclusive na Faculdade de Medicina e no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Roselene enfatiza que “em Pasquale De Chirico não há o desejo de retratar o tipo negro como um dado científico. Existe interesse em registrar o sujeito cotidiano, possivelmente, o que lhe parecia exótico”.
Em seu artigo Dagmar Manieri analisa a estrutura mitológica de Macunaíma – romance de autoria do modernista Mário de Andrade – tendo como referência os estudos de Lévi-Strauss e o contexto histórico, social e político do Brasil na década de 1920. Discorrendo sobre as razões da dissidência ocorrida no interior do Partido Republicano Paulista (PRP) e a consequente formação do Partido Democrático (PD), Dagmar destaca a atuação de Mário de Andrade como líder cultural dessa nova elite política que se opunha ao modelo de modernização urbana implementado no Rio de Janeiro, capital federal à época. O PD defendia a renovação democrática (tanto do pensamento político, quanto dos grupos dirigentes), a participação popular e, sobretudo, “a difusão do ensino em todos os graus”, pois só assim o Brasil se tornaria de fato moderno. Para Dagmar Manieiri o romance que Mário de Andrade publicou no final da década de 1920 sob o título Macunaíma “deve ser entendido como parte de uma reação ao modelo de modernização autoritária executada na Presidência de Rodrigues Alves (1902-1906) na Capital Federal”.
O artigo de Liszt Vianna Neto destaca a carência de pesquisas sobre a influência de artistas modernistas imigrados de países de língua alemã na gênese do modernismo carioca e apresenta um estudo sobre a trajetória e a produção artística de Leo Putz, pintor austro-húngaro que chegou ao Brasil em 1929 já sexagenário. Liszt discute a reforma modernizante implementada na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) no início da década de 1930 pelo então diretor Lúcio Costa e as críticas nacionalistas que recaíram sobre sua atuação, agravadas ainda mais pela contratação de três professores estrangeiros, entre eles Leo Putz. A admissão deste reconhecido mestre da pintura moderna alemã como professor de Composição na ENBA foi apoiada e defendida por Cândido Portinari, Hernani de Irajá e José Marianno Filho. Durante os quatro anos em que esteve no Brasil (passou por São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia) Putz se entregou “ao basbaque e à maravilha da natureza e da luminosidade dos trópicos”, alterando completamente sua paleta de cores. Em 1933 ele voltou para a Alemanha, onde faleceu em 1940. Sua passagem pela ENBA, conforme destaca o autor, contribuiu para a formação da primeira geração de modernista cariocas.
O artigo de Sandra de Cássia Araújo Pelegrini e Gustavo Batista Gregio apresenta investigação sobre o engajamento artístico e social na obra de Vik Muniz, tendo como objeto principal de estudo as séries de retratos The Sugar Children (Crianças de Açúcar) e Pictures of Garbage (Retratos do Lixo) realizadas respectivamente em 1996 e 2008. Os autores discutem a influência da Pop Art na obra de Vik Muniz, em especial a produção artística de Andy Warhol que criticava “o consumismo exacerbado da sociedade contemporânea”. Para os autores, “artistas como Andy Warhol ou Vik Muniz devem ser abarcados como agentes sociais que interagem e dialogam com suas realidades, representando suas próprias visões de mundo em uma linguagem própria”. Sandra e Gustavo consideram que para Vik Muniz “a arte tem como ‘função’ interferir no cotidiano das pessoas” e modificar a perspectiva delas em relação a si mesmos e aos outros e é exatamente isso que os autores discutem ao analisarem as séries The Sugar Children e Pictures of Garbage. Na primeira o artista utilizou o açúcar para retratar a “doçura pueril” de crianças, cujos pais trabalhavam em canaviais localizados no Caribe, chegando a jornadas exaustivas de mais de 16 horas e, na segunda, usando de material reciclado, retratou sete catadores de lixo do maior aterro sanitário da América Latina: o Jardim Gramacho.
Na esperança que este dossiê inspire novas pesquisas e contribua para o avanço da História Social da Arte, subscrevo-me desejando a todos uma boa leitura.
Prof ª Drª Sabrina Mara Sant’Anna
Setembro de 2018.