História e Poética / História & Perspectivas / 2006

No presente número trazemos um dossiê temático sobre História e Poética. Muito embora este tema seja bastante atual e refletido como problemática de diferentes formas na produção historiográfica contemporânea, ele se inscreve em uma longuíssima duração, que pode ser remontada desde, pelo menos, o século V a.C., quando a civilização grega começou a separar os domínios da épica e da historiografia. Em Aristóteles, especialmente em suas obras sobre poética e sobre retórica, a questão é formulada de uma maneira que se tornou canônica, ainda que reinterpretada constantemente ao longo dos séculos nos campos da Filosofia, da História e da Crítica Literária. Em linhas gerais, tomando a tragédia como gênero exemplar, Aristóteles define a poética como representação verossímil de ações que não ocorreram, mas que tocam questões universais próprias da Filosofia, em oposição à História, entendida como narrativa verdadeira sobre acontecimentos particulares.

Hoje, sobretudo a partir da crise dos modelos totalizantes e positivistas da História, a noção de verdade histórica tornou-se muito mais próxima daquilo que Aristóteles chamava de verossimilhança. A Crítica Literária, por sua vez, preocupa-se crescentemente com o caráter histórico particular de seus objetos. Dessa forma, os limites entre História e Literatura têm-se tornado muito tênues e as abordagens transdisciplinares bastante recorrentes.

Ainda que parcialmente, o presente número da revista H&P mapeia, no conjunto das colaborações que compõem este dossiê, maneiras variadas de estudar historicamente a “literatura” e outros “objetos retórico-poéticos” do passado. Nesse sentido, alguns colaboradores do número têm formação em Literatura e outros em História e seus recortes temporais vão desde a época medieval até o modernismo, cada qual trabalhando a partir de pressupostos teórico-metodológicos próprios.

Mônica Amim e José D’Assunção Barros abordam assuntos inscritos no período medieval. A primeira estuda exemplares textuais da tradição celta, problematizando a sua apropriação como um elemento que colabora para a construção de identidades nacionais européias. Barros, por sua vez, estuda a tradição trovadoresca ibérica nos séculos XIII e XIV, mostrando como ela pode ser lida a partir do momento em que o processo de centralização do Estado português colocava em xeque o poder da nobreza e seus valores políticos. Poética e política é o assunto geral abordado por Lara Vilà, que analisa a adoção do modelo virgiliano de épica no século XVI na Espanha e na Itália, demonstrando as diferenças entre as formas assumidas pelo gênero em dois contextos políticos diferentes do Renascimento.

Os artigos de Luiz Cristiano de Andrade, Luís Filipe Silvério Lima e Ricardo Valle centram-se em temáticas relacionadas às práticas letradas do Império Português nos séculos XVII e XVIII. Andrade avalia os preceitos de “boa historiografia” em Manuel Severim de Faria, mostrando o que poderia caracterizar a História como gênero retórico-poético nos seiscentos, articulando-o ao discurso epidítico. Lima, por sua vez, analisa os significados teológico-políticos do uso recorrente de sonhos, visões e profecias em exemplares retórico-poéticos portugueses do século XVII. Já Ricardo Valle propõe uma releitura dos sentidos políticos dos encômios poéticos de Cláudio Manuel da Costa, revendo noções anacrônicas como “despotismo esclarecido” ou “iluminismo” quando aplicadas à tradição bucólica no século XVIII em Portugal e na América portuguesa.

Silvia Cristina Martins de Souza, Daniela Santos e Marcos Rogério Cordeiro Fernandes tratam de obras e autores da literatura brasileira do século XIX e do início do século XX. O teatro musicado de Francisco Correa Vasques é o assunto de Souza, que o aborda sob o prisma da História Social e Cultural do Império Brasileiro e de sua corte, analisando a obra Orfeu na Roça. Santos revisita a obra O Cortiço, de Aluísio Azevedo, tratando-o como testemunho do processo de higienização da cidade e de suas implicações políticas no final do século XIX. Por último, Fernandes investiga a representação modernista da sociedade brasileira, analisando a poesia de seus expoentes mais canônicos: Mário de Andrade e Oswald de Andrade.

Com este dossiê, a revista História & Perspectivas oferece mais uma ótima contribuição para divulgação de pesquisas inéditas e originais nos campos da historiografia e áreas correlatas desenvolvidas no Brasil e no exterior, tratando de um assunto que, apesar de antigo, mostra-se atual e renovado.

Guilherme Amaral Luz – Organizador do Dossiê.


LUZ, Guilherme Amaral. História e Poética. História & Perspectivas, Uberlândia, v.1, n.34, 2006. Acessar publicação original [DR].

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