História Oral: problemas éticos e desafios metodológicos / Tempos históricos / 2013

A prática da história oral mantém-se plural e vigorosa entre nós na contemporaneidade. Ao reconhecemos esta dimensão de prenhe permeabilidade prática na vida acadêmica e nos espaços socioculturais de circulação e reflexividade da memória e da oralidade, não podemos ser facilmente levados a acreditar que tudo já tenha sido dito, feito e superado. Ao contrário disso, é exatamente a força da história oral como produtora de sentidos e significados emergentes, antes pouco tornados possíveis por meio de outras linguagens e fontes, que hoje nos recoloca desafios à sua continuidade com dignidade e profundidade. Ao mobilizarmos nossa atenção neste Dossiê para problemas éticos suscitados em sua feitura, assim como uma atenção aos desafios metodológicos que decorrem dessa prática cada vez mais utilizada, buscamos nesta oportunidade constituir uma parada de reflexão, todavia jamais conclusiva, para pensar potencialidades dessa ventura tão rica e cativante.

Ao reconhecemos a fecundidade da história oral para o fazer reflexivo no campo das ciências humanas, sublinhamos na mesma proporcionalidade a responsabilidade com as preocupações éticas de seu emprego. O tema da ética na história oral não é uma questão nova, todavia, vem se afirmando numa tomada de assento que permanece desafiando pesquisadores e profissionais dedicados à escuta de memórias e da oralidade. Neste sentido, a questão não raro tem se desdobrado em conflitos, especialmente em relação à atuação presente de alguns comitês de ética universitários; ora premindo à história oral rasos rigores cientificistas, por vezes utilizando-se de critérios e sentidos alheios ao campo das humanidades e suas veias sensíveis, ora interferindo diretamente na consecução de projetos de investigação, a exigir horizontes de previsibilidade da prática fria da trama burocrática, o que por sua vez devora os sentidos humanos emergentes que são avessos ao trâmite da legalidade oficiosa. Ao reconhecer tais questões, que não se resumem evidentemente aos problemas crescentes das exigências de comitês de ética, não se pretende diluir a importância de um estatuto ético para a história oral, muito menos restringir seus dilemas a apenas esta que é uma de suas maiores dificuldades do presente.

Mais do que isso, este cenário tem mostrado o quanto o crescimento frutífero da história oral se relaciona com outras questões, inclusive pautando a necessidade da continuidade do debate sobre o seu emprego ético. A primeira delas, digna de nota, é o fato de que ao se popularizar, a metodologia foi ganhando o entendimento de que sua feitura tem larga facilidade de emprego. Ledo engano! Pelo menos isso é o que podemos concluir na leitura dos textos organizados neste número. Nesta direção, questões inerentes à natureza subjetiva da ação e representação humanas, adicionadas ao do direito à memória e à informação, potencializam preocupações em relação à exigência de maior seriedade com a produção e interpretação das narrativas de um / uns, outro / os. A segunda, diz respeito ao tom emblemático daqueles sentidos políticos imanentes ao ato metodológico da história oral com preocupações éticas. Ou seja, na medida em que se amplia o escopo de atuação na investigação em favor de maior qualidade na demonstração da complexidade das realidades sócio históricas, também se tem que atentar ao risco iminente de um embate que vem sendo posto em causa, ainda que subliminar, o de retirar da história oral seu estatuto político de democratização de significados plurais e por vezes contraditórios do ato dialógico da feitura de entrevistas. Longe de advogar pelo rechaço puro e simples aos comitês científicos de ética na pesquisa com seres humanos, que hoje em algumas sendas submetem a história oral ao risco de infertilidade e sentido único, cumpre reivindicar que estes incorporem à sua dinâmica a interlocução com seus praticantes, que no caso brasileiro vem de longa data Sobre isso, vide os esforços constituídos de maneira não institucionalizada desde os anos 1980 e pela Associação Brasileira de História Oral desde 1994. É nesta direção de abertura por canais de reflexão sobre a história oral em suas muitas faces, dilemas e possibilidades, entre questões éticas e possibilidades metodológicas que estas ensejam, que este dossiê visa a se constituir como mais uma entre outras iniciativas que buscarmos dar forma em nossa lida profissional.

A relação entre História Oral e Ética é tema de diversas contribuições deste dossiê, algumas a abordando de forma central, outras de forma tangencial, com base nas próprias experiências de investigação dos autores.

A questão da ética é central no artigo “Comitês de Ética: Regulamentando a História Oral?”. Nele, Lara Rodrigues Pereira e Jaqueline Henrique Cardoso historicizam a regulamentação da pesquisa com seres humanos e a criação dos comitês de ética em pesquisa no interior das universidades, no mundo e em especial no Brasil, e problematizam a baixíssima representatividade de profissionais da área de Ciências Humanas e Sociais na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Com base na atuação do Comitê de Ética da Universidade do Estado de Santa Catarina, apresentam e discutem a regulamentação de pesquisas que envolvem história oral por parte desse e de outros comitês correlatos no Brasil.

Francisco Alcides do Nascimento, autor do artigo “Viver, ouvir e aprender: o outro nas entrevistas com a história oral”, aborda diversos procedimentos metodológicos e éticos inerentes à História Oral com base em dois projetos de pesquisa desenvolvidos no Núcleo de História Oral (NHO) da Universidade Federal do Piauí.

O artigo seguinte, intitulado “Consideraciones metodológicas y éticas del trabajo de campo con maestras en una institución geriátrica. Una experiencia en México”, a autora, de Blanca Susana Vega Martínez, expõe os limites metodológicos e as possibilidades éticas de uma investigação realizada com professoras idosas numa instituição asilar. A autora enfatiza o modelo colaborativo utilizado na investigação, no qual as entrevistas participaram ativamente da construção de suas histórias de vida.

O artigo “Narrativas sobre a história da loucura no tempo presente: o arquivo de fontes orais do Centro de Documentação e Pesquisa do Hospital Colônia Sant’Ana (CEDOPE / HCS)”, de Viviane Trindade Borges, trata da constituição do arquivo de fontes orais daquele centro. A autora perscruta a composição do Programa de História Oral do CEDOPE, o seu papel na produção de fontes orais – e, por seu intermédio, a identificação de fotografias preservadas, – e na salvaguarda de entrevistas realizadas por terceiros. Além disso, analisa as especificidades, os limites e possibilidades do trabalho daquele centro, sobretudo para a ampliação da discussão sobre a história da psiquiatria e da loucura no Brasil no tempo presente.

A partir da perspectiva dos estudos da linguagem, os autores Andrea Silva Domingues e Newton Guilherme Vale Carrozza propõem, no artigo “História Oral, discurso e memória”, um diálogo entre a História Oral e a Análise de Discurso, desenvolvida a partir dos trabalhos de Michel Pêcheux, na França, e de Eni P. Orlandi, no Brasil. Os autores consideram os depoimentos como fatos de linguagem que articulam elementos políticos, simbólicos e ideológicos, e que estes materializam discursos nos quais tanto as fontes quanto os historiadores se inscrevem.

No artigo seguinte, o historiador mexicano Gerardo Necoechea Gracia explora as possibilidades da utilização da história oral na investigação acerca do processo de politização de militantes de esquerda latino-americanos. A partir de fontes orais, o autor analisa o início da politização no âmbito familiar, a maneira como as ideias hegemônicas conformaram expectativas, como as experiências vividas transformaram as ideias em noções rebeldes e, por fim, constata como houve a aparição de experiências novas e percepções inéditas, devido ao rompimento da correspondência entre expectativa e experiência.

No artigo “Narrativas de praças acerca do movimento reivindicatório da Polícia Militar de Minas Gerais (Belo Horizonte, 1997)”, Juliana do Carmo Cardoso Alves analisa as representações construídas pelos praças protagonistas do movimento. Ao constatar que os mesmos negam sua participação na greve e reafirmam valores e princípios ensinados nos quartéis, a autora demonstra como suas narrativas compartilham a presença de um “mito fundador”, conceito trabalhado por Alessandro Portelli ao identificar histórias representativas e significativas partilhadas por uma cultura, e o conceito de “honra”.

A questão da linguagem também é discutida no artigo seguinte, “A força de contar histórias: tradição oral indígena e história oral em Roraima”, de autoria de Carla Monteiro de Souza, Maria Georgina Pinho e Silva e Carmem Nunes Spotti. Os autores refletem sobre questões relativas à aplicação da metodologia da história oral e da abordagem da tradição oral no contexto da cultura indígena. Com base em pesquisas realizadas em duas comunidades indígenas localizadas no estado de Roraima, os autores analisam narrativas de tradição oral na perspectiva dos estudos literários, discutindo a relação entre linguagem, cultura, e identidade.

Sandra Pelegrini, em seu artigo intitulado “O viver às margens das águas doces e turvas do Rio Ivaí: Memória, história e oralidade”, discute a problemática das cheias e da possível construção de pequenas centrais hidrelétricas no leito do rio Ivaí e os conseqüentes impactos ambientais, arqueológicos e culturais. Com base, entre outras fontes, em entrevistas com moradores ribeirinhos, a autora traz à tona experiências, modos de vida e memórias de pessoas que estão à mercê da criação de novos empreendimentos hidroelétricos.

Experiências e memórias de moradores do Extremo Oeste do Paraná são tematizadas nos últimos artigos do dossiê. Jiani Langaro, no artigo “Entre o campo e a cidade: Brasil e Paraguai em memórias e narrativas orais de migrantes transfronteiriços (Santa Helena – PR, décadas de 1990 e 2000)”, discute narrativas orais produzidas com brasileiros que se dirigiram para o leste do Paraguai e, posteriormente, retornaram ao Brasil, para a localidade de Santa Helena – PR, chamados na região de brasiguaios. O recurso à história oral permitiu compreender as projeções desses sujeitos sobre o Paraguai, visto como o lugar de atraso, e sobre o Brasil, tido como lugar promissor, e os sentidos políticos de suas narrativas orais, uma vez que as entrevistas são também meios para a reivindicação de direitos.

Raphael Pagliarini, no artigo “Práticas rural-urbanas: um estudo com os trabalhadores da Feira do Produtor Agropecuário do município de Marechal Cândido Rondon – PR”, analisa práticas rurais e urbanas com base em narrativas dos trabalhadores da Feira do Produtor Agropecuário daquele município. O autor discute as formas como os sujeitos dialogam, vivenciam e reelaboram práticas no viver urbano a partir de suas experiências no campo.

No último artigo, intitulado “Universitários na Cidade: Experiências estudantis em Marechal Cândido Rondon, 2000-2010”, Thiago Reisdörfer analisa narrativas orais produzidas com estudantes da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste, Campus de Marechal Cândido Rondon, abordando suas vivências e sociabilidades na cidade e os sentidos e sentimentos construídos na e a partir das memórias.

Méri Frotscher

Robson Laverdi


FROTSCHER, Méri; LAVERDI, Robson. Introdução. Tempos Históricos, Paraná, v.17, n.2, 2013. Acessar publicação original [DR]

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