Escrituras da história: da história mestra da vida à história moderna em movimento (um guia) – ANHEZINI (HH)

ANHEZINI, K. Escrituras da história: da história mestra da vida à história moderna em movimento (um guia). Guarapuava: Unicentro, 2009, 80 p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. As metamorfoses da “escrita da história”.  História da Historiografia. Ouro Preto, n. 05, p.223-227 setembro, 2010.

A história mestra da vida possui certidão de nascimento grega [com a obra de Tucídides], o nome cunhado em latim [por Cícero], os primeiros exemplos que a compunham eram profanos. […] Todavia, no século XVIII, essa forma de conceber a história se dissolveu.

Um novo espaço de experiência criou um novo horizonte de expectativas e, nesse processo, a concepção de tempo foi transformada. (ANHEZINI 2009, p. 76).

Nesses termos, Karina Anhezini (professora de teoria da história na UNESP, campus de Assis) sintetiza as mudanças da “escritura da história”, entre os séculos IV antes de Cristo e o século XVIII, como uma passagem da história mestra da vida (e fornecedora de exemplos) para a história enquanto processo contínuo, empreendida originalmente pelas “filosofias da história”, produzidas pelo “movimento iluminista” na Europa. Sua obra é voltada para o aluno que está ingressando no curso de história – estando inserida no projeto de ensino semipresencial da Universidade Estadual do Centro-Oeste (a Unicentro/PR), de oferecimento do curso de licenciatura plena em história à distância –, mas por suas qualidades pode facilmente ser útil ao especialista e a todo interessado em temas de história. Por outro lado, o livro chega também em boa hora, pois, se acrescenta a uma bibliografia ainda escassa em nosso meio, de obras introdutórias ao campo da teoria da história, da historiografia e da introdução aos estudos históricos, durante muito tempo limitados aos manuais acadêmicos de Jean Glénisson, José van den Basselaar, José Honório Rodrigues, José Roberto do Amaral Lapa, Francisco Iglésias, e, mais recentemente, por obras como História e teoria (2003) de José Carlos Reis e Teorias da história (2004) de Astor Antônio Diehl.

Seu principal objetivo foi, tomando de empréstimo a ideia de “operação historiográfica” de Michel de Certeau (1925-1986), mostrar que o “fazer história” inevitavelmente carrega as marcas de um “lugar” (um recrutamento, um meio, uma profissão), de “procedimentos de análise” (uma disciplina) e de uma “escrita”, que é a construção de um “texto” (uma literatura), que fazem com que o exercício de “escritura da história”, seja uma “prática” efetuada pelo historiador. Com esse intento, a autora procurou mostrar a importância do contexto para o indivíduo, e como ele age na produção da obra, na formação e nas experiências do autor (que limitado à sua época, carrega as suas marcas), como e por que ele escreve a sua obra e a quem ele a direciona, quais as estratégias narrativas que foram utilizadas e como o autor forma o seu estilo, de que modo a obra foi publicada e qual a herança crítica que ela deixou.

Mas que não se engane o leitor mais apressado, imaginando que pelo texto ter esse perfil didático, não deixe de carregar erudição. A própria simplicidade com que o leitor é conduzido pelo livro, fruto de um estilo de exposição dos dados, lhe deixará com a impressão de superficialidade.

Entretanto, esse não é o caso, e vejam-se tão somente alguns pontos para se demonstrar o argumento.

O primeiro ponto importante diz respeito à forma como a autora demonstra que embora a história mestra da vida constituísse um modelo de escrita da história, houve muitas variações no modo sutil com que cada autor, grego ou romano da Antiguidade (e mesmo depois no período medieval e moderno), apropriou-se dele na sua apresentação dos dados, por meio de uma narrativa.

Ela inicia essa demarcação fornecendo subsídios para que o leitor possa perceber como a História, antes de se distinguir como gênero específico, utilizou-se da epopeia, porque a “narrativa heroica de ações grandiosas, a construção da memória do aedo e a descoberta de um regime de historicidade são, nas palavras de Hartog, as condições que possibilitaram o que, alguns séculos mais tarde, será nomeado por Heródoto, história” (p. 16). Nesse processo, demonstra que questões como: verdade, testemunho, diferenças entre realidade e imaginação, real e ficção, e “o fato de ver paralelamente os dois lados abre a possibilidade de pensar […] [qual o] papel para o historiador” (p. 17). Por isso, também ressalta o que caracterizou a epopeia, com os exemplos da Ilíada e da Odisseia, e quais as diferenças e aproximações entre ela e a (escrita da) História, por que: A organização do texto épico se pautava na narrativa dos feitos dos homens e dos deuses. Com Heródoto, a história não pretendeu romper completamente com essa característica central da palavra épica, mas, sem dúvida, provocou algumas fraturas. […] a preocupação com a memória; a renúncia às certezas do aedo; a narrativa dos feitos dos homens, pois os feitos dos deuses escapam às possibilidades do historiador investigar; diferente do aedo o historiador viaja com os próprios pés e pelos relatos de outros e não mais por inspiração divina (p. 21).

Com Tucídides (455-404 a.C.), a escrita da história agrupa o valor de “prova”, seja com a participação direta do historiador quanto aos eventos narrados, seja por demarcar uma abordagem adequada ao espaço do observador no presente (que, evidentemente, será depois criticada por visualizar a “história política”, com esta exclusividade). Ao eleger a Guerra do Peloponeso, um fato marcante em sua época, Tucídides começou a dar ênfase à história baseada em “exemplos”. Ainda que ambos considerassem “a tradição oral superior à tradição escrita” e confiassem “em primeiro lugar em seus olhos e ouvidos e depois nos olhos e ouvidos de testemunhas confiáveis”, diferenciavam-se na medida em que “Tucídides nunca se contentava em registrar algo sem assumir a responsabilidade pelo que registrava” e também “raramente indicava as fontes porque queria ser digno de confiança” (p. 25-26). Outro aspecto importante, ao comentar tais autores, foi o destaque que a autora deu ao informar os diferentes usos (e abusos) que tanto a obra como os autores tiveram ao longo do tempo, em função das características políticas e culturais de cada momento, que fará com que em cada período histórico “os textos” tenham “significados diferentes e que, por isso, precisamos ficar atentos para questionarmos os cânones literários, filosóficos e, sobretudo, historiográficos” (p. 29).

Com Aristóteles (384-322 a.C.) e Políbio (210-130, aprox.) houve uma preocupação especial em se diferenciar os papéis de cada campo do saber, que, para o primeiro, a História seria incumbida do “particular”, enquanto a Poesia (épica) do “geral” (fato marcante durante séculos, por excluir a capacidade de reflexão filosófica nos estudos históricos), e o segundo lhe responde ao pretender escrever a “primeira história universal”. Com Cícero (106-43 a.C.), a escrita da história passará a dar importância sobre alguns temas, como: “exemplos, imparcialidade, biografia, história dos grandes homens e imitação”. Para ele, “a história, para ser verdadeiramente escrita, para deixar de ser apenas o registro nos anais, deve ser escrita para o orador e ninguém melhor que ele, o próprio orador, para escrever tal história, pois domina a arte da palavra, a eloqüência”.

Não será sem razão que a história passara a ser mestra da vida, ao fornecer os exemplos descritos pelo orador. E: Para escrever a história são necessários fatos e palavras. O historiador pode ordenar esses fatos, apresentá-los por meio das palavras, mas nunca poderá instaurá-los, criá-los, instituí-los. Os fatos são verdadeiros, eles existem, seu aproveitamento e composição pertencem à competência do orador (p. 37).

Por outro lado, as críticas levantadas por Luciano de Samósata (125- 181) são descritas pela autora como um momento de reflexão teórica pouco usual na Antiguidade, e de profundo interesse para se entender os caminhos da escrita da história, e os usos políticos a que foi submetida. Ao demonstrar como Flávio Josefo se utilizou das características desse modelo de “escritura da história”, com vistas a criticar tanto gregos como romanos que foram seus criadores, por a praticarem de forma inconsistente e inadequada, este acreditará que “sua história é verdadeira não somente pelos procedimentos da autópsia aprendidos com Tucídides, mas porque uma instituição [a Igreja] atesta a veracidade dos fatos narrados” (p. 47). O aparecimento de uma instituição, neste caso a Igreja, para demarcar a autenticidade e veracidade dos fatos narrados pelo historiador, constitui o início da fundação do “lugar”. Com Eusébio de Cesareia (265-340) e Santo Agostinho (354-430) essa questão será ainda mais marcante nos contornos que tomaram a escrita da história, tendo em vista a importância que terá a instituição na demarcação dos temas e objetos a serem escolhidos, analisados e descritos pelo historiador.

Depois de descrever as variações e a durabilidade da história mestra da vida na “escritura da história”, a autora, tendo por base a obra de Reinhart Koselleck (Futuro passado), passará a demonstrar a sua dissolução no século XVIII. Para isso foi necessária a formação de “novas” expectativas sobre o passado, o presente e o futuro. E que se deram em função de uma mudança na compreensão da História (enquanto processo contínuo), não mais como fornecedora de exemplos sobre o passado, mas como indicação da maneira que se dará o processo histórico (no presente e no futuro), apreendendo o “conceito de coletivo singular”, ao destacar que “acima das histórias” está a História. Nesse aspecto, o surgimento, nesse momento, das “filosofias seculares da história” fará com que a história adquira “um caráter processual cujo fim é imprevisível” (p. 72) e, com isso, favorecerá a inauguração de um novo futuro, por meio da reelaboração do passado. Além disso, a modernidade marcará o aparecimento de uma experiência conjunta de aceleração e de retardamento, com as revoluções e suas contraofensivas. Para ela, Koselleck explicará como a “aceleração causada pela Revolução Francesa modifica a forma de compreensão do tempo e, portanto, altera o próprio tempo” (p. 74).

Nesse sentido, além de fornecer subsídios para que o ingressante ao ofício de historiador possa compreender o que é a teoria da história, e de que modo a escrita da história muda com o tempo, a autora também dá base para que este perceba que qualquer modelo de “escritura da história” não é homogêneo, que sua elaboração é mediada por questões políticas e culturais, que este traz as marcas de seu tempo, que seus fundamentos visam atingir a um fim e este fim pode também direcionar a maneira com que os dados são apresentados (seja numa forma narrativa ou outra). Contudo, mesmo considerando seus objetivos didáticos, não há como negar que em alguns pontos os argumentos poderiam ter ficado mais consistentes, com o aporte de outros autores, como: Carlos Ginzburg (de Relações de força, e de O fio e os rastros), Luiz Costa Lima (de História.Ficção.Literatura, e de O controle do imaginário & a afirmação do romance), François Cadiou (de Como se faz a história) e Maria das Graças de Souza (de Ilustração e história) – para ficar apenas em alguns. Muito embora essa questão e alguns pequenos erros tipográficos da edição, que em nada interferem nos méritos da obra, esta deve ser muito elogiada pelo seu caráter didático. A lamentar apenas a política editorial da Universidade Estadual do Centro- Oeste (a Unicentro/PR), que, com pequenas tiragens (como a deste livro de 400 exemplares, ainda que reconheçamos a especificidade do projeto em questão), não comercializa suas obras, que seriam fundamentais para um intercâmbio entre outros cursos de história e de ciências sociais, além de disponibilizar as obras para um público mais amplo.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando Universidade Federal do Paraná (UFPR) diogosr@yahoo.com.br Rua Tibagi, 404/100 – Centro Curitiba – PR 80060-110 Brasil.