Posts com a Tag ‘História medieval’
Ensinando História Antiga e Medieval no Brasil: Da inércia à potência | Brathair | 2021
“E não te esqueças de que a hora de partir chegou.
O vento levará para longe os teus olhos”.
Alexandre, o repórter (O Passo Suspenso da Cegonha).
Seis anos atrás, um grupo de professores de História Antiga e Medieval das regiões Norte e Nordeste do Brasil reunimo-nos e redigimos uma carta contra a ameaça de retirada dos conteúdos de História Antiga e Medieval do ensino escolar brasileiro, texto esse retomado na íntegra no epílogo da coletânea Antigas Leituras: Ensino de História (Recife: Edupe, 2020, organizada por mim mais os companheiros Guilherme Moerbeck e Renan Birro). Naquela carta, enfatizávamos a importância da presença curricular dos assuntos dessas temporalidades e denunciávamos a miopia de determinados segmentos que viam nesses estudos verdadeiros cavalos de Troia da história eurocentrada e colonizada que deveria ser extirpada (ou quando menos reduzida ao mínimo) das salas de aula em prol de outras narrativas, especialmente afro-ameríndias e contemporâneas. Mas por mais que discordemos dessa miopia, ela não surgiu do acaso. Leia Mais
Ensaios de História Medieval: temas que se renovam | Renata Cristina de Souza Nascimento
O livro Ensaios de História Medieval: temas que se renovam é um exemplo, junto a outros publicados nos últimos anos1, da consolidação dos estudos universitários brasileiros sobre a Idade Média. Desde meados da década de 1990 o medievalismo no Brasil vem crescendo influenciado por diversos fatores2. A fundação da ABREM (Associação Brasileira de Estudos Medievais), em 1996, foi um marco desse sucesso. Nesse processo, grupos de estudos, periódicos especializados e eventos regulares na área também se estabeleceram nas regiões Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Em Goiânia, por exemplo, nas dependências da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás), Área II, foi realizado nos dias 20 e 21 de maio de 2019 o Colóquio de Estudos Medievais & Curso de Atualização: “Ensaios de História Medieval: temas que se renovam”. Nesse evento, foi lançado a obra aqui resenhada, organizada pelos professores doutores Renata Cristina de Sousa Nascimento (UEG/ UFG/PUC-GO) e Paulo Duarte Silva (UFRJ). Leia Mais
A História Medieval entre a formação de professores e o ensino na Educação Básica no século XXI: experiências nacionais e internacionais | José Luciano Vianna
Falar do Ensino de História no momento tão complicado da política e da economia do Brasil, sem esquecer dos já existentes problemas estruturais educacionais da sociedade, é um grande desafio. Vivemos em um tempo em que as narrativas de Fake News estão presentes nos meios de comunicações, e os discursos negacionistas contra a ciência ocupam espaços, plantando as discórdias sobre as teorias e os métodos utilizados pelos pesquisadores científicos de diferentes áreas do conhecimento. Leia Mais
Atlas de la France médiévale. Hommes, pouvoirs et espaces du Ve au XVe siècle – Antoine Destemberg
Antoine Destemberg / Foto: Book Note /
DESTEMBERG, Antoine. Atlas de la France médiévale. Hommes, pouvoirs et espaces du Ve au XVe siècle. Paris: Autrement, 2017. rééd. 2020. 96 p. Resenha de: PIERROT, Loïc. Association des Professeurs d’Histoire et de Géographie (APHG) 20 nov. 2020. Disponível em: Disponível em < https://www.aphg.fr/Antoine-Destemberg-Atlas-de-la-France-medievale-Hommes-pouvoirs-et-espaces-du>Consultado em 11 jan. 2021.
Parmi le flot de publications de la rentrée académique, on a pu apercevoir une nouvelle édition de l’Atlas de la France médiévale conçu en 2017 par Antoine Destemberg, maître de conférences en histoire médiévale à l’Université d’Artois, en collaboration avec le cartographe Fabrice Le Goff. La première édition avait en effet connu un juste succès et appelait un nouveau tirage. L’édition de 2020 comporte peu de modifications hormis quelques actualisations de la bibliographie, mais l’occasion est bonne pour rappeler la qualité de ce travail de synthèse riche de près de soixante-dix cartes.
Conçu dès l’origine comme un complément de l’Atlas de la France médiévale (2005) d’Olivier Guyotjeannin et Guillaume Balavoine, l’Atlas d’Antoine Destemberg propose de parcourir les dix siècles du Moyen Âge en se focalisant sur les aspects politique, économique, social et culturel de la période. Les cartes se distinguent par leur précision et leur clarté que complètent habilement quelques graphiques soignés. L’historien et le cartographe proposent une approche multiscalaire en donnant à voir aussi bien des cartes régionales que locales, voire quelques plans simplifiés de bâti. Ces derniers ne concernent toutefois que des espaces bien connus des médiévistes – ainsi l’Île de la Cité à Paris, le palais des papes d’Avignon ou l’abbaye de Cluny – et, en dépit de leur intérêt pédagogique, on regrette que d’autres tentatives de représentation à une échelle locale n’aient pas été esquissées. Quoi qu’il en soit, la conception de l’Atlas ne manque pas de recul critique et rend compte de la difficulté d’appréhender l’espace au Moyen Âge. Le jeu d’échelles cartographiques, commenté au fil des pages par A. Destemberg, permet de faire remarquer que les notions de « territoire » et de « frontière » n’étaient pas aussi nettement définies au Moyen Âge qu’aujourd’hui. Il rappelle aussi que toute production cartographique a son histoire et sa perspective et que ni la carte ni les concepts ne sont anodins. Il faut ainsi souligner l’efficacité du dialogue entre les figurés et les explications historiques : c’est là que l’atlas trouve sa pertinence et son utilité. Les textes se veulent accessibles à un
public large, historien ou non, et l’ensemble peut servir de matériau solide pour les étudiants et les enseignants. Antoine Destemberg se dit conscient des limites de son ouvrage, ayant renoncé ici et là à l’exhaustivité en privilégiant l’intelligibilité de la synthèse, mais cet aveu l’honore : c’est bien d’un plaidoyer pour une vulgarisation scientifique avertie dont il s’agit. Une de ces entreprises éditoriales dont notre discipline a besoin, autant que des études scientifiques de fond.
Loïc Pierrot – Élève à l’École nationale des Chartes, étudiant à l’École normale supérieure de Paris.
[IF]
História medieval – SILVA (S-RH)
SILVA, Marcelo Cândido da. História medieval. São Paulo: Contexto, 2019, 160p. Resenha de: SILVA, Kléber Clementino da. SÆCULUM – Revista de História, João Pessoa, v. 24, n. 41, p. 453-463, jul./dez. 2019.
A vinda a lume do novo livro do professor da USP Marcelo Cândido da Silva, História medieval, pela editora Contexto, deve sem dúvida dar motivo a comemorações por parte de estudantes e professores de história, bem como do mais público interessado. Apesar dos recentes avanços da medievalística em terras tupiniquins, por mérito de pesquisadores como Neri de Barros Almeida, Renato Viana Boy, Johnni Langer, entre outros, sem excluir o próprio autor ora resenhado – que já publicou sua tese doutoral sobre a monarquia franca, um conhecido livro discutindo a “queda” do Império Romano do Ocidente e outro sobre o crime no Medievo – sínteses atualizadas e de qualidade, ao alcance do leitor brasileiro, sobre os dez séculos em que, na periodização tradicional, se alonga a Idade Média são ainda produtos raros. E é precisamente esta a lacuna que a recente publicação procura preencher: uma obra de pequena extensão e linguagem simples, tecida com sólida erudição e rigor acadêmico, revisitando tópicos julgados basilares para o primeiro contato com o campo da medievalística: o debate sobre as migrações germânicas e a “queda” do Império Romano do Ocidente; a dominação senhorial; a Reforma da Igreja; a crise dos séculos XIV e XV, entre outros. A opção pela exposição que combina capítulos temáticos com um discernível encadeamento cronológico, ademais, diferencia o novo texto do já clássico Idade Média: o nascimento do Ocidente, de Hilário Franco Jr., publicado em 1986, cujos blocos temáticos pensam o tempo medieval a partir de “estruturas” (políticas, econômicas, sociais, culturais, etc.), faceta teórico-metodológica recorrente nos estudos daquele professor. Este, aliás, como veremos, não é o único elemento que aparta ambos os estudos. Leia Mais
Mundo Antigo | UFF | 2012-2017
A Revista Mundo Antigo (Campos dos Goytacazes, 2012-2017) é um periódico científico e de acesso aberto (Open Access Journal). A revista é especializada em História Antiga, História Medieval e Arqueologia, e é publicada pelo Núcleo de Estudos em História Medieval, Antiga e Arqueologia Transdisciplinar (NEHMAAT) subordinada ao Departamento de História de Campos dos Goytacazes – Universidade Federal Fluminense. Este periódico tem por objetivos:
- Promover o intercâmbio entre pesquisadores, professores e pós-graduandos do Brasil e do exterior.
- Disseminar pesquisas de professores e pós-graduandos do Brasil e do exterior.
- Permitir acesso mais ágil e fácil a produção acadêmica de modo a ser usada em pesquisas futuras por discentes e docentes.
- Estimular a produção de conhecimento sobre a História Antiga, História Medieval e Arqueologia Antiga.
- Divulgar publicações, eventos, cursos e sites, quando possível, de modo a contribuir com a pesquisa docente e discente.
- Estabelecer uma relação entre mundo antigo e mundo contemporâneo, quando possível, para uma melhor compreensão dos processos históricos.
Periodicidade semestral.
Acesso livre.
ISSN 2238-8788
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Clio and the crown: the politics of history in Medieval and Early- Modern Spain – KAGAN (HH)
KAGAN, Richard K. Clio and the crown: the politics of history in Medieval and Early- Modern Spain. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2009, 376 p. Resenha de: SILVEIRA, Pedro Telles da. Qual o lugar da história oficial na história da historiografia? História da Historiografia. Ouro Preto, n. 7, p. 338-344, nov./dez. 2011.
Sublinhar que o panorama da produção historiográfica na Idade Moderna é mais variegado do que durante muito tempo se tendeu a imaginar não deixa de ser uma espécie de lugar-comum nas obras – não tão recentes assim – dedicadas ao tema. De fato, já nos ensaios e conferências de Arnaldo Momigliano1 tal apelo era feito, e ele se repete e se complexifica nos livros de Donald R. Kelley (KELLEY 1991, p. 14-15) e Anthony Grafton (2007), para ficarmos apenas com alguns dos mais conhecidos nomes associados ao estudo desse tipo de historiografia. As obras destes e de outros autores procuram todas resgatar a vivacidade, a diversidade e a pertinência dos debates historiográficos anteriores à formação da historiografia enquanto disciplina científica, processo que ocorre, grosso modo, no decorrer do século XIX. E, mesmo assim, aspectos importantes dessa produção continuam negligenciados, como é o caso da história oficial. É tendo em vista esta situação que se insere Clio and the crown, de autoria do historiador norte-americano Richard L. Kagan.
Afiliado ao influente grupo da atlantic history, tendo editado junto com Geoffrey Parker, um volume em honra a John H. Elliott,2 Richard L. Kagan fez sua carreira estudando a Espanha dos séculos XVI e XVII e a administração de seu então poderoso império. As marcas dessa atuação aparecem logo no início do primeiro capítulo, onde afirma que apesar de muito da historiografia produzida nos reinos espanhóis nos séculos que lhe interessam terem sido objeto de estudos recentes, estes têm como foco as características estilísticas e retóricas destes textos, e não suas funções e seus usos (KAGAN 2009, p. 18). Também a filiação institucional de Kagan, professor na universidade Johns Hopkins, permite compreender o amplo recorte temporal que o livro abarca. Partindo das primeiras crônicas escritas em vernáculo em Castela no século XIII, o livro se fecha na passagem do século XVIII para o XIX, quando a falência da Real Academia de la Historia em cumprir seus objetivos indica que a era da história oficial chegara ao fim. Com esse recorte em mente, Richard L. Kagan paga tributo a dois de seus colegas de departamento, Gabrielle Spiegel e Orest Ranum, que já atacaram questões semelhantes a respeito, respectivamente, da historiografia francesa medieval e da historiografia seiscentista deste mesmo reino.3 Para Kagan, história oficial é a historiografia produzida visando a defesa dos interesses tanto de um governante quanto de uma autoridade religiosa, de uma corporação urbana etc. Para o autor, esse tipo de historiografia é um instrumento que visa divulgar uma imagem positiva daqueles nela interessados – do mesmo modo, ela também pode ser escrita para contradizer uma narrativa previamente formada (KAGAN 2009, p. 3). Seu caráter agonístico, portanto, tornou o número de narrativas e contra-narrativas produzidas por cronistas, historiógrafos e outras personagens protegidas por um ou outro mecenas extremamente alto; como o próprio autor indica, adaptando a expressão de um dos autores debatidos, trata-se de um “mar de histórias” (KAGAN 2009, p.42). Essas mesmas características, argumenta o autor, frequentemente impediram uma consideração mais atenta a esta historiografia, facilmente rotulada como derivativa, pouco inspirada ou outras qualificações menos lisonjeiras (KAGAN 2009, p. 4-6). Trata-se de um dos méritos do trabalho que Richard L. Kagan consiga desfazer estes estereótipos com uma obra ao mesmo tempo sintética e informativa, que analisa a fundo seu objeto sem perder de vista os processos mais amplos nos quais ele se insere.
Esta mirada simultaneamente ampla e detalhada marca o primeiro capítulo, no qual o autor traça um quadro da historiografia hispânica entre o final da Reconquista e o reinado de Isabel e Fernando, os reis católicos. Destaca- -se, no texto, a estreita relação entre os projetos imperiais acalentados pelos mais diversos governantes castelhanos e a as características da historiografia por eles patrocinada. Serve particularmente a estes propósitos o trabalho do taller historiografico organizado por Afonso X, responsável pelas crônicas produzidas durante seu reinado, em especial a “General estoria”, uma crônica da história universal até o século XVIII, a qual apresenta a narrativa da criação de um imperium hispânico através da inserção dos feitos ocorridos na Península Ibérica numa história mundial. A visão de um império que reina sobre a Espanha mas também se alastra pelos territórios dominados pelos mouros direciona também muito das crônicas produzidas sob o reinado de Sancho IV, demonstrando a imbricação entre historiografia e projeto político.
Richard L. Kagan direciona, portanto, ainda que de maneira um tanto quanto breve, sua argumentação em direção ao debate acerca da importância da própria historiografia em período tão recuado quanto o da Reconquista.
Para o autor, ao contrário do que uma de suas interlocutoras – Gabrielle Spiegel – argumenta, o nascimento de uma historiografia em vernáculo na Espanha teve menos relação com a criação de narrativas que legitimassem as pretensões da nobreza do que “com a determinação de Afonso X de aumentar sua autoridade real e [com] seus esforços de fazer o castelhano (i.e., espanhol) a língua oficial tanto da administração quanto da lei”. O rei sábio, dessa forma, antecipou em cerca de dois séculos a preocupação de Antonio de Nebrija de que língua e império deveriam andar lado a lado (KAGAN 2009, p. 24).
O segundo capítulo, por sua vez, trata justamente de um desses governantes influenciados pela visão de império cuja semente foi plantada no século XIII, Carlos V. A historiografia oficial elaborada sob a proteção deste monarca indica um caso bastante acentuado da dinâmica que, para o autor, é uma das características da historiografia oficial hispânica: a tensão entre uma historia pro persona, centrada nos feitos do rei, e uma historia pro patria, cujo foco está nas conquistas realizadas pelo reino como um todo. O capítulo também desenvolve uma outra tensão que atravessa a história oficial, e não apenas a de matriz hispânica, qual seja, a entre as demandas de um governante, as funções de um cargo – o de cronista, no caso espanhol – e as características da formação dos letrados, personagens recrutadas para escrever essas mesmas histórias. No caso de Carlos V, a pretensão de glorificar o próprio nome choca- -se com a ojeriza de humanistas como Juan Ginés de Sepúlveda e Paolo Giovo ante os projetos imperiais e dinásticos do governante, atravancando e, no fim, impossibilitando a escrita de uma crônica de seu reinado enquanto o próprio governante vivia. A tensão entre os governantes e aqueles que compunham suas histórias indica também as transformações por que passa a historiografia, que se aproximava cada vez mais da política e da concepção de Quintiliano segundo a qual à história interessava mais a persuasão que a instrução (KAGAN 2009, p. 88).
O autor, dessa forma, insere-se diretamente no debate acerca da escrita da história na passagem do século XVI para o XVII, colocando em questão a conotação muitas vezes negativa dessa mesma passagem.4 Richard L. Kagan faz questão de frisar a impossibilidade de se separar as razões pelas quais a história é escrita das formas que ela irá assumir e, por conseguinte, também a indistinção entre forma e conteúdo da narrativa da historiográfica. Como afirma, “as negociações do imperador com Giovio tratavam tanto da substância […] quanto do estilo, ou seja, da maneira particular na qual os fatos eram apresentados” (KAGAN 2009, p. 89).
A tensão entre a historia pro patria e a pro persona e a difícil relação os monarcas e seus escribas enquadra a discussão dos três capítulos seguintes, não por acaso dedicados à historiografia durante o reinado de Filipe II. No terceiro capítulo, o autor aborda a recusa do monarca de patrocinar uma obra de história com os contornos de uma historia pro persona, laudatória de sua figura; a atitude, muitas vezes interpretada como sinal de modéstia, na verdade indica que frente ao “mar de histórias”, Filipe II procurava escapar à natureza agonística da história oficial. Para isso, segundo Kagan, o rei espanhol apoiava a escrita de uma história que celebrasse os feitos antigos dos espanhóis e, ao mesmo tempo, defendesse a unidade de seu reino resultando dos acontecimentos passados.
Não deixa, portanto, de se situar no âmbito dos projetos imperiais, como já abordara anteriormente. A recusa de Filipe II, entretanto, não pôde se estender à totalidade de seu reinado, já que frente aos ataques à sua monarquia, ele passou a se inclinar em direção ao apoio de uma história de sua própria época. Essa transformação no pensamento de Filipe II, objeto do quarto capítulo, é enquadrada, no quinto capítulo, no debate relativo às possessões hispânicas na América e na Ásia.
Richard L. Kagan estuda a criação do cargo de cronista das Índias tendo em vista justamente o pano de fundo dos ataques à monarquia universal de Filipe II, argumentando mais uma vez pela ligação entre as políticas relacionadas à história e a própria produção historiográfica. Significativamente, tendo em vista as preocupações do monarca espanhol em sustentar uma historiografia que não fosse mera rival de suas contemporâneas, o próprio cargo de cronista das Índias demonstra a união entre preceitos políticos e os princípios elaborados pelos historiadores para certificarem e justificarem suas histórias. Segundo o autor, o ocupante do cargo não se dedicava apenas ao registro das ações que tomassem lugar no Novo Mundo, pelo contrário, pois
seguindo os trabalhos de de historiadores tão influentes como Francesco Guicciardini e os ditados do gênero da ars historicae, ele [o cronista] também tinha de refletir sobre as causas dos eventos e sobre os motivos por trás das ações individuais e incluir, por motivos didáticos, exemplae de vários tipos (KAGAN 2009, p. 151).
A conjunção de todas estas preocupações – à maneira peculiar que lhe era possível de realizar tendo em vista ocupar um cargo oficial – está presente no trabalho do primeiro cronista das Índias, Antonio de Herrera y Tordesillas, personagem central deste quinto capítulo.
É neste momento que a proposta do autor rende mais frutos, pois Kagan consegue tecer de modo mais detido a trama entre todos os fios de sua obra: o imperativo dos monarcas, as necessidades de um gênero e as capacidades – tanto intelectuais quanto políticas – daqueles dele encarregados. Se na introdução de seu livro o autor afirma que, no cenário intelectual da época, era o historiógrafo a pessoa mais autorizada para escrever sobre o passado, pois apenas ele tinha acesso aos documentos necessários para tal (KAGAN 2009, p. 6), a análise que faz da obra de Antonio de Herrera, cronista das Índias entre 1596 e sua morte, em 1626, permite justamente compreender como trabalhava esse mesmo historiógrafo. Taxado muitas vezes de plagiário (KAGAN 2009, p. 172- 173), a fina análise de Kagan permite reconstruir a imagem do autor como um leitor judicioso das obras que utilizava para compor sua própria história – mais do que como um investigador em busca de informações novas; simultaneamente, permite compreender que a tarefa à qual se dedicava enquanto cronista não era tanto a escrita de uma nova história quanto a reelaboração das narrativas já existentes, de modo a adequá-las à defesa daquele para quem escreve. Se se tornou um tanto quanto comum fazer o paralelo da figura do historiador com aquela do juiz, Richard L. Kagan, através do exame do trabalho de Herrera, faz um sonoro argumento a favor da comparação – que já aparece na introdução de seu livro (KAGAN 2009, p. 6) – entre o historiógrafo e o advogado. Para ambos não se trata nem de garimpar informações novas nem de inventar fontes, isto é, de revolver os materiais da história imbuído de má fé; pelo contrário, o que está em questão é utilizar as possibilidades do trabalho histórico para manipular seus enunciados a favor ou contra aqueles a quem a narrativa se endereça (KAGAN 2009, p. 5). Tarefa que, mostra Kagan, depende tanto das regras de verificação do discurso histórico, então objeto de um intenso debate, quanto qualquer outra narrativa pertencente ao mesmo gênero. Ressalta, também, a compreensão da obra do historiador oficial como uma empresa coletiva mais do que resultado da iniciativa individual, algo que também a historiadora francesa Chantal Grell destaca em obra recente (GRELL 2006, p. 13).
A trama dessas tensões constitui, sem dúvida, o aspecto mais importante do livro, e é apenas de lamentar que, por vezes, tentando costurar entre os mais diversos autores e contextos, Richard L. Kagan aborde demasiado rapidamente estes temas, sem reproduzir análise como a que faz a respeito de Antonio de Herrera. Mesmo assim, ele é feliz ao tratar, no sexto capítulo, a incapacidade de Filipe IV e de seu ministro, o conde de Olivares, de controlarem a circulação de obras históricas no interior da fronteira de seu próprio reino como indício da existência, já no século XVII, de uma opinião pública capaz de contradizer a propaganda oficial (KAGAN 2009, p. 204). A intersecção entre a legitimação perante o público e a atividade do historiógrafo adiciona outra camada de significação ao trabalho do autor no livro.
Também no sétimo e último capítulo o autor aborda parcela dessa dinâmica, ao demonstrar que a proposta de uma renovação intelectual feita pelos novatores e pela Real Academia de la Historia acaba por sucumbir às pressões e às intrigas da vida cortesã. A assimilação das pretensões críticas desta última instituição ao funcionamento da máquina administrativa da qual a história oficial faz parte resultou na própria perda de sua importância. Ao cabo, a Real Academia de la historia foi ultrapassada – assim como a história oficial (GRELL 2006, p. 16) – pela evolução da própria historiografia.
A dinâmica entre a história oficial e as demais províncias da história é o aspecto que garante a relevância da obra de Richard L. Kagan. Para além da preocupação com o estudo da historiografia do período – uma área particularmente forte no meio historiográfico de língua inglesa –, Clio and the crown também se insere, como se tentou demonstrar aqui, num debate que começa a ganhar corpo a respeito das relações entre a história dos historiógrafos e a narrativa de constituição da própria historiografia. Para Kagan, autores como Grafton e Kelley acabam por definir de forma demasiado rígida a linha divisória entre a historiografia oficial e a daqueles autores não ligados a qualquer cargo.
Em passagem carregada de ironia, na qual faz um inventário dos celebrados historiadores que foram também historiógrafos – uma lista que vai de Fernão Lopes a Voltaire –, Kagan destaca a dificuldade de situar a fronteira entre a historiografia “acadêmica” – isto é, motivada pela comunidade de historiadores e destinada a ela – e a historiografia “polêmica”, ou seja, a história oficial, direcionada a leigos e submetida a inúmeras flutuações políticas (KAGAN 2009, p. 4). Da mesma forma, ser um historiador oficial não significava necessariamente ser um mau historiador.
Conforme a historiografia avança para a era dos cronistas e historiógrafos, a obra de Richard L. Kagan lembra que para analisá-la não é o bastante reproduzir os limites disciplinares modernos como conceitos analíticos da historiografia passada. Se a necessidade de situar os discursos em seus contextos é cada vez mais premente, perguntar-se pelo que há de oficial ou patrocinado em muitas das obras historiográficas do período moderno pode ser maneira de historicizar o próprio trabalho do historiador. À medida que a historiografia brasileira avança, por sua vez, rumo ao século XVIII, é interessante perguntar como conectar uma história do método histórico a uma história social da historiografia, preocupações por vezes tão distantes. Seja qual for a pergunta, considerar o lugar da história oficial na história da própria historiografia passa pela resposta que Richard L. Kagan acabou de dar.
Referências
GRAFTON, Anthony. What was history? The art of history in early modern Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
GRELL, Chantal. Les historiographes en Europe de la fin du Moyan Âge à la Revolution. Paris: Presses de l’Université Paris-Sorbonne, 2006.
KAGAN, Richard L. Clio and the Crown: Writing History in Habsburg Spain. In: KAGAN, Richard L.; PARKER, Geoffrey. Spain, Europe, and the atlantic world: essays in honor of John H. Elliot. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 73-99.
KELLEY, Donald R. Versions of history from Antiquity to the enlightenment. New Haven: Yale University Press, 1991.
MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna. Bauru: EDUSC, 2004.
SPIEGEL, Gabrielle. Romancing the past: the rise of vernacular prose historiography in thirteenth-century France. Berkeley: University of California Press, 1993.
RANUM, Orest. Artisans of glory: writers and historical thought in seventeenthcentury France. Chappell Hill: University of North Carolina Press, 1980.
Notas
1 Para ficar numa obra de fácil acesso pelo leitor brasileiro, ver MOMIGLIANO 2004.
2 A contribuição de Kagan ao volume compartilha o título com o livro aqui analisado, demonstrando a permanência das preocupações do autor ao longo de sua atuação, muito embora a ênfase e a extensão temporal do capítulo – restrito ao reinado de Filipe II – sejam muito mais limitadas que no livro que publica cerca de quinze anos depois; ver KAGAN; PARKER 1995, p. 73-79.
3 Refiro-me a SPIEGEL 1993 e também a RANUM 1980.
4 Como transparece, por exemplo, no trabalho já referenciado de Anthony Grafton, para quem, no século XVII, a história era uma narrativa política escrita por estadistas ou funcionários – historiógrafos profissionais –, dos quais muitos poucos preocupavam-se com as maneiras a partir das quais escolher, justificar e examinar as evidência (GRAFTON 2007, p. 230-231).
Pedro Telles da Silveira – Mestrando da Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: doca.silveira@gmail.com Rua Novo Hamburgo, 238 – Passo d’Areia 90520-160 – Porto Alegre – RS.