História e Literatura / Estudos Históricos / 2017

História e Literatura Afinidades eletivas? A literatura nos pródromos da História

A escolha de um dossiê para a revista Estudos Históricos costuma levar em consideração ao menos três aspectos: o ineditismo de determinado tema, sua relevância na historiografia contemporânea e a aderência às linhas de pesquisa do CPDOC. A introdução de um assunto inédito pode causar certa surpresa aos próprios editores, sobretudo quando se deparam com esta ou aquela lacuna temática em um periódico que já conta com quase 30 anos de existência. Ausências em áreas centrais de atuação da “casa” tendem a chamar mais atenção, como ocorreu com “Patrimônio” (n. 57, 2016), dossiê que tardou a ser contemplado num conjunto de mais de 60 números publicados.

Algo semelhante parece ter-se passado com “História e Literatura”. Escritores e suas obras, movimentos literários e suas revistas, redes de sociabilidade e sua circulação de ideias estiveram presentes na agenda da instituição desde antes da criação da revista, em 1988. Em parte, o interesse pela literatura derivou do próprio material que compõe o acervo original do CPDOC. Arquivos inicialmente voltados para as elites e para a história política traziam consigo a visão de bacharéis, jornalistas, ensaístas e polígrafos, entre os quais se encontravam, não raro, romancistas, poetas e toda sorte de homens de letras.

Fontes primárias do arquivo privado de Gustavo Capanema, por exemplo, são pródigas em informações sobre a atuação pública de Carlos Drummond de Andrade na chefia de gabinete do Ministério da Educação e Saúde (MES) entre 1934 e 1945. Com base neste e em outros arquivos, mobilizaram-se diversos investimentos de pesquisa, que resultaram em livros como Guardiães da razão: modernistas mineiros, de Helena Bomeny, Essa gente do Rio: modernismo e nacionalismo e História e historiadores: a política cultural do Estado Novo, os dois últimos de autoria de Ângela de Castro Gomes.

Enquanto Helena Bomeny se deteve nas especificidades e nas raízes da geração mineira que tomou parte no modernismo dos anos 1920 e 1930, Ângela de Castro Gomes, professora emérita do CPDOC, dedicou-se em História e historiadores à análise dos escritos de Graciliano Ramos para o periódico estadonovista Cultura e Política. Já em Essa gente do Rio, a autora estudou revistas, prosadores e poetas do movimento simbolista no Rio de Janeiro, grupo literário ligado tanto à linhagem espiritualista mais conservadora da intelectualidade católica radicada na capital da República quanto ao efervescente projeto estético modernista, em contraponto aos próceres mais conhecidos do modernismo de São Paulo.

Para ficar apenas com esses exemplos, trata-se de documentos e de produções relevantes, porquanto contribuíram para iluminar questões centrais da vida republicana brasileira. Durante mais de quatro décadas, pesquisadores do CPDOC envidaram esforços coletivos para analisar a dinâmica do pensamento social no Brasil da primeira metade do século XX, dentro da qual se inscrevia uma galeria de literatos envolvidos com a vida intelectual e com a esfera pública do país.

Apesar disso, um olhar retrospectivo pelas edições anteriores da revista não identifica um dossiê consagrado à literatura. Chega-se, quando muito, a lograr aproximações, mediante interesses afins ou mais amplos, como foram os números dedicados a “Viagem e narrativa” (n. 7, 1991), a “Intelectuais” (n. 32, 2003) ou a “Arte e História” (n. 30, 2003). Neste último, entretanto, a literatura sequer comparece, com textos em sua maioria voltados para a arquitetura, a pintura e a música, entre outras expressões, linguagens e manifestações artísticas.

Uma visada mais benevolente seria, no entanto, capaz de reconhecer que, embora lhe falte uma edição exclusiva, o interesse literário reponta aqui e ali no corpo da revista, disperso ao longo de suas dezenas de números e de suas centenas de artigos. Sem a preocupação de um levantamento exaustivo, é possível compulsar pouco mais de 20 artigos acerca do tópico. Machado de Assis, Oliveira Lima, Graça Aranha, Ronald de Carvalho, Mário de Andrade, Paulo Prado e Murilo Mendes, entre outros, pontificaram na revista no decorrer de 60 números.

Temas “clássicos” da vida literária foram abordados, tais como o modernismo, a identidade nacional e a sociabilidade urbana. Assuntos menos centrais também se fizeram presentes e deram a conhecer a literatura regional no Rio Grande do Sul, o movimento modernista na Amazônia, o novo romance histórico no Brasil, o gênero autobiográfico e memorialístico, a questão do sujeito na narrativa, a correspondência epistolar, os concursos literários, os projetos enciclopédicos, a presença de literatos na diplomacia, o neorrealismo em Portugal e a sociologia da literatura.

Mas o ineditismo no histórico da revista e a aderência às áreas de concentração da instituição que a publica não bastam para justificar a decisão em favor de um dossiê. A relevância da questão na contemporaneidade é fundamental para sua escolha como tema. Neste sentido, é sabido que as gerações de historiadores formadas no último quartel do século XX e nos primeiros anos do século XXI vêm enfrentando o problema epistêmico da escrita da história. Esta questão vem de par com a polêmica em torno das fronteiras da narrativa historiográfica em face da literatura e, mais precisamente, da ficção.

Desde a chamada “virada linguística” nos idos de 1970, como se sabe, revolve-se a antiga querela que opõe o mito à ciência e avança-se nos questionamentos filosóficos de um Michel Foucault ou de um Paul Ricoeur acerca das maneiras de narrar dos historiadores profissionais. Em paralelo, a teoria literária estadunidense, com Hayden White e Dominick LaCapra à frente, aprofundou ainda mais a crítica aos fundamentos epistemológicos da narração na história e postulou o protagonismo da linguagem figurada e da imaginação no processo de reconstituição do passado histórico. Em razão disto, assestaram-se as baterias contra estatutos canônicos da ciência e buscou-se desconstruir a técnica tradicional de composição de textos científicos.

De sua parte, longe de apenas rebater ou esquivar-se defensivamente das críticas, a História procurou nos últimos decênios ser também propositiva e ampliar seus domínios. Para tanto, em meio à decantação da interdisciplinaridade e à própria renovação da historiografia em países centrais como Estados Unidos, França, Inglaterra e mesmo Itália, os historiadores penetraram na seara antes exclusiva dos Departamentos de Letras.

Com efeito, munidos de pressupostos teóricos da Sociologia para fustigar a redoma estetizante das belas-letras – evoquem-se tão-somente o Flaubert de Pierre Bourdieu e o Kafka de Pascale Casanova –, os historiadores apropriaram-se a seu modo da literatura como objeto de estudo. Desde então, interpelam as formas materiais e simbólicas de fruição do livro, examinam as práticas e representações da leitura, preconizam o polo da recepção na compreensão mais plena do sistema literário, emulam o desenvolvimento de subáreas como a história literária, a história social e a história cultural.

A falta de consenso gera ruídos de comunicação de ambas as partes. Grosso modo, para a crítica literária de extração acadêmica, o imbróglio diz respeito à utilização documental, por assim dizer, que o historiador pode fazer da ficção. O fato de um romance, um poema ou um conto ser considerado fonte, documento ou testemunho para escrutínio da História tende a ser visto como reducionista por críticos e teóricos do métier.

A comunidade de historiadores, por sua vez, rechaça de maneira taxativa a redução das suas atividades à produção de enredos mais ou menos arbitrários, mais ou menos fictícios. Embora o britânico R. G. Collingwood entrevisse, no livro A ideia de história, de princípios do século XX, as afinidades eletivas entre o romancista e o historiador, para os profissionais da História as categorias temporais não são artefatos ou construtos mentais a serviço da verossimilhança ou da trama romanesca. Cumpre, segundo eles, refutar o argumento de que o tempo constitui uma variável neutra na narrativa, mero adorno ou pano de fundo a emoldurar a ação dramática, destituído de dinamicidade e de significado social mais amplo.

A recusa à condição fática de registro do real, por meio do material ficcional, leva, pois, a infindáveis controvérsias acerca dos condicionantes do imaginário de um escritor, que se acredita idealmente autônomo, coerente e indiviso. Tais discordâncias acionam tensões, quase sempre regidas sob a égide de uma razão dualista. Esta tanto une quanto separa vida e obra, texto e contexto, reflexo e autonomia, imanência e transcendência, matéria e espírito, real e imaginário, documento e monumento, numa palavra lukácsiana: forma literária e processo social.

Uma exceção nessa cena é Antonio Candido, cujo método dialético, amadurecido entre os anos 1950 e 1970, procurou superar o binarismo estruturalista e, com ele, a suposição apriorística de um “dentro” versus um “fora” do texto. Ao propor um terceiro eixo sintético, Candido tinha como premissa a necessidade de um esquema analítico ternário, pois tencionava dar conta do sistema literário triangular: autor – obra – público. Nesta esteira, perseguiu, nos ensaios antológicos que se sucederam a Formação da literatura brasileira, uma síntese capaz de fundir os pares antitéticos invocados por “internalistas”, de um lado, e “externalistas”, de outro.

A despeito das tentativas conciliatórias, o peso dos referentes internos versus externos compele historiadores e teóricos literários a debater não apenas os contornos como também os nervos da criação de uma obra de arte. A fatura literária continua a ser apreciada ora em função da intencionalidade do autor e da lógica interna que conforma a mimesis, ora em virtude dos nexos sociológicos que demandam a realidade, o cotidiano, a memória, o verossímil, a experiência vivida, narrada e transfigurada.

O presente dossiê almeja ser uma ocasião para a atualização de um debate cujas implicações teóricas e conceituais permanecem a desafiar a historiografia e a epistemologia nos de dias de hoje. A impossibilidade de esgotá-lo ou de superá-lo em suas discussões mais controversas não impede de reconhecer os rendimentos analíticos, bem como os avanços das várias frentes de pesquisa nesse âmbito.

Se as Ciências Humanas e Sociais lidam com o assunto desde a segunda metade do século XX, informadas por vertentes críticas que vão do marxismo ao estruturalismo, do funcionalismo ao culturalismo, da fenomenologia à semiótica, da filologia ao existencialismo, da estética da recepção ao círculo hermenêutico, dos cultural studies aos estudos pós-coloniais, a historiografia nacional principiou a se debruçar sobre a temática somente a partir dos anos 1980.

A proposição de um ponto de partida é sempre um risco, com eventuais omissões ou injustiças, mas seria o caso de arriscar aqui apontando a publicação de Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República (1983). A tese de doutoramento de Nicolau Sevcenko, defendida em 1981 na USP, configura uma espécie de momento fundante de uma perspectiva intelectual-cultural calcada na literatura.

De início o impacto do livro foi diminuto no interior da comunidade científica, mas a repercussão mostrou-se significativa fora da universidade, junto ao público leitor não acadêmico e aos meios editoriais. Estava-se diante de uma primorosa reconstituição da trajetória intempestiva de dois literatos-missionários, Euclides da Cunha e Lima Barreto, a contrastar, cada um a seu modo, o teor de suas “ideias em movimento” com os ideais reacionários dos conservadores de seu tempo.

De forma mais orgânica e institucionalizada, o estudo acadêmico da literatura se consolidou no cenário universitário durante os anos 1990 e 2000. No âmbito da pós-graduação em História, merece destaque a atuação de um grupo de pesquisadores reunidos na Unicamp. A convergência entre as linhas de pesquisa da História Social do Trabalho e da História Social da Cultura permitiu que investigadores de ponta da área renovassem interpretações consagradas. Estas evidenciaram uma capacidade de formular questões e fontes próprias do ofício do historiador, para lançar luzes menos reverentes sobre ícones da literatura, a exemplo de Machado de Assis ou de Coelho Neto.

Dissertações e teses defendidas na Unicamp, muitas delas publicadas em livro, vêm contribuindo para um conhecimento sólido, produzido coletivamente nesse centro universitário. Seus egressos têm dado continuidade ao debate, mediante, por exemplo, a organização de sucessivos Simpósios Temáticos nos encontros da ANPUH, “Literatura, História e Sociedade”, estimulando a formação de jovens discentes em nível de mestrado e doutorado e ensejando a sua renovação geracional.

Longe de ser um polo único e exclusivo, via de regra adstrito ao eixo Rio – São Paulo, outros programas pós-graduação em História têm-se notabilizado por linhas de pesquisa com esse foco. Bastaria lembrar universidades federais e estaduais de cidades como Belém, Florianópolis, Goiânia, Ouro Preto, Porto Alegre, Recife, Salvador, Teresina e Uberlândia, entre outras, para aferir uma realidade que é hoje plural e multifacetada.

O presente dossiê pretende ser também uma amostra de tal diversidade. Enfeixa-se a seguir um total de dez textos, publicados após um notável número de submissões recebidas e avaliadas por quase duas centenas de pareceristas. A marca interdisciplinar, cultivada pela revista, faz-se igualmente perceptível neste número, com a abertura para abordagens que não se restringem a esta ou aquela escola de pensamento, a esta ou aquela filiação departamental, a este ou aquele recorte histórico.

Num arco temporal que vai do século XVI à contemporaneidade, e num horizonte espacial que não se limita à fronteira nacional, a díade história-literatura encontra aqui um apanhado do estado da arte do universo literário, tal como vem sendo estudado em determinados programas de pós-graduação do país. Fornecem-se elementos para entender como os estudiosos das gerações atuais têm respondido, por meio de estudos de caso e de trabalhos empíricos – valendo-se de obras, cartas, arquivos, manuscritos, jornais, biografias, memórias, escritas de si, correntes estéticas, traduções, edições e reedições –, ao conjunto de questões sumariamente esboçadas acima.

Além dos textos submetidos e aprovados na seção “Artigos”, este dossiê dá espaço para a série “Colaboração Especial”, com o artigo assinado pelo professor Roger Chartier, do Collège de France. Trata-se de versão apresentada pelo historiador francês em palestra proferida no CPDOC em 2013, quando da comemoração dos 40 anos da instituição, na abertura da quarta edição do Ateliê do Pensamento Social, evento promovido pelo Laboratório de Pensamento Social (LAPES).

Na ocasião, conforme consta do texto aqui publicado ineditamente em língua inglesa, Chartier revisitou o cerne de suas inquietações intelectuais ao perquirir as formas de comunicação facultadas pelas correspondências epistolares no alvorecer da Idade Moderna europeia e ao indagar a tensão das formas literárias com a cadeia comunicacional emissor / mediador / receptor, na esteira do advento da tipografia e da imprensa, nos séculos XV e XVI. Chartier analisa ainda a irrupção da figura autônoma do Autor na chamada República das Letras francesa, entre os séculos XVII e XIX. Considera, para tanto, seus corolários imediatos, quais sejam, a consagração da ideia de indivíduo e a conversão da noção de autoridade em autoria intelectual personalizada na Era Moderna.

Por último, mas não menos importante, a seção “Entrevista” traz o depoimento transcrito e editado de Heloísa Starling, professora titular do Departamento de História da UFMG, concedido a mim e ao professor Marcelino Rodrigues da Silva (Dep. Letras / UFMG) em fevereiro de 2017, na cidade de Belo Horizonte. Em seu percurso acadêmico, sempre sensível à sonoridade e à poética das criações artísticas, as reflexões da entrevistada vêm ao encontro do presente volume, ao rememorar a experiência de realização de sua tese de doutorado, que versa sobre a obra magna de João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas.

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Bernardo Borges Buarque de Hollanda – Doutor em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). E-mail: bernardo.hollanda@fgv.br

Editor convidado.


HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.30, n.62, set. / dez. 2017. Acessar publicação original [DR]

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