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História e Inteligência / Varia História / 2012
O presente Dossiê História e Inteligência é dedicado ao estudo de temas vinculados à atividade de inteligência, a qual lentamente vem sendo reconhecida como legítima e necessária por grande parte das sociedades, inclusive daquelas que emergiram recentemente de ditaduras civis e / ou militares. Tal reconhecimento tem impulsionado uma ampla gama de pesquisas, permitindo que os Estudos de Inteligência constituam-se em uma área acadêmica multidisciplinar, cada vez mais reconhecida internacionalmente.
A pesquisa sobre a atividade de inteligência desenvolveu-se nas últimas décadas principalmente por meio da discussão sobre a reforma institucional dos serviços de inteligência em contextos políticos pós-autoritários, sobre a constituição de organismos internacionais de cooperação no contexto pós-guerra fria, de análises institucionais sobre a distribuição de poder entre civis e militares, bem como dos debates em torno do acesso à informação.
No país, o número de pesquisas historiográficas relacionadas ao tema ainda é muito pequeno. Nesse sentido, o Dossiê ora apresentado é constituído de uma diversidade de temas correlatos à atividade, cujo recorte cronológico marcadamente recente expõe faces da incipiente emergência do tema enquanto esfera de pesquisa acadêmica no Brasil, ainda fortemente impactada pela produção de cientistas políticos.
Diante da diversidade dos artigos, optamos por dividi-los de acordo com os temas. Nesse sentido, os dois primeiros abordam questões vinculadas à história da atividade de inteligência no Brasil de pontos de vista distintos. O primeiro enquanto evento, uma ditadura militar caracterizada pelo processo de institucionalização do seu sistema repressivo, e o segundo enquanto análise dos produtos desse mesmo evento, dos registros da violência presentes nos acervos documentais produzidos no período.
De forma mais detalhada, o trabalho de Samantha Viz Quadrat, A preparação dos agentes de informação e a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), aborda o processo de formação e capacitação dos agentes responsáveis pelo desenvolvimento da atividade de inteligência no país durante a recente ditadura militar. Eles, aqui compreendidos como um dos principais atores no desenvolvimento da repressão política no Brasil. Para tanto, a autora discorre sobre o conceito de segurança nacional e os impactos que a Doutrina de Segurança Nacional (DSN) produziu na própria forma de se perceber a missão militar, bem como analisa a influência que o conceito de guerra revolucionária, desenvolvido pelos franceses após a derrota na Guerra da Indochina, acarretaria para o processo repressivo brasileiro. Essa análise é elaborada, sobretudo, amparada nos manuais elaborados pela Escola Superior de Guerra (ESG), desde um período que precede a própria ditadura militar.
O investimento no binômio informação-repressão analisado por Samantha durante a ditadura teve como consequência, além da institucionalização do uso da violência por parte das Forças Armadas no campo interno, uma gigantesca produção de arquivos sobre ações, suspeitos e análises sobre o comportamento daqueles pejorativamente qualificados como subversivos e terroristas, cuja dimensão de papéis reflete uma tradição caracteristicamente cartorial do comportamento das Forças Armadas. Nesse sentido, em seu artigo, História do Tempo Presente, eventos traumáticos e documentos sensíveis: o caso brasileiro, Carlos Fico realiza uma análise sobre a existência e o desafio de acesso aos fundos documentais produzidos por esse sistema repressivo, considerando o enfoque da História do Tempo Presente e os dilemas enfrentados pelos historiadores nos campos metodológicos e epistemológicos, cuja pesquisa muitas vezes pode acarretar na invasão da privacidade e intimidade das pessoas – tensão que permeia todo o debate em torno desse acesso – , além da intervenção do historiador na sociedade, a partir do momento que ainda predomina um anseio de sua parte pelo direito à verdade. A tensão entre estado e cidadão no acesso à informação constitui ponto crucial do debate.
No terceiro artigo é realizado um debate sobre como no período pós Guerra Fria, o Estado tem que gerenciar sua produção de informação, não mais como forma de construir verdades sobre sua atuação, mas como modo de potencializar a administração de informações sensíveis em um contexto de pretensa liderança regional. Assim, em seu trabalho Estado Informacional: implicações para as políticas de informação e de Inteligência no limiar do século XXI, Marta Kerr analisa o processo de transformação do estado burocrático, característico dos séculos XIX e XX, em um chamado “estado informacional”. A ênfase recai sobre o desenvolvimento das novas Tecnologias de Informação (TI’s), e como essas demandam mudanças em relação às políticas de informação praticadas nos anos de 1960 e 1970. Mais especificamente, como essa emergência, associada à nova dinâmica da globalização e da distribuição multipolar do poder, tem demandado eficácia à atividade de inteligência, essencial não apenas para a segurança, como também para viabilizar a competitividade das estruturas econômicas e o desenvolvimento de diferentes nações, em um contexto mundial regido pelo paradigma técnico e econômico das TI’s, fortemente marcado pelo crescimento das rivalidades econômicas.
Já no quarto artigo os autores procuram identificar padrões de comportamento institucionais e políticos que têm conduzido as falhas e ineficácia da atividade de inteligência desde a Guerra Fria. No trabalho Explicando falhas da inteligência governamental, Marco Cepik e Christiano Ambos procuram identificar, nos estudos de caso narrados pela literatura de inteligência, padrões de comportamento que obstruíram um desempenho eficaz da atividade em distintos países, em diferentes momentos. As análises consideram desde a Crise dos Mísseis em Cuba, na década de 1960, até os ruidosos fracassos do começo do século XXI, como a avaliação realizada pelos EUA que o conduziram à invasão do Iraque, aos atentados à Madrid e à Rússia em 2004. A ênfase recai tanto sobre as distorções cognitivas produzidas pelos analistas de inteligência no processo de produção de inteligência, quanto na interação produtor e consumidor desta mesma inteligência.
Encerrando o Dossiê, o conjunto dos últimos três artigos leva em consideração análises regionais. Peter Gill, em seu artigo Alguns aspectos da reforma da inteligência na América Latina, procura identificar as principais características da reforma no setor de inteligência de segurança na América Latina, considerando as relações ente o estado e outros atores relacionados à área de segurança. No desenvolvimento de sua análise, o autor dialoga com a literatura relacionada às relações civis militares, aos legados autoritários, e aos processos de transição e consolidação democrática, sendo que sua ênfase recai sobre os casos brasileiro e argentino.
Também trabalhando com a América Latina, José Manuel Ugarte, em seu artigo El ámbito normativo de la inteligencia interior en América Latina, além de estabelecer um debate conceitual sobre o termo domestic intelligence analisa, de forma comparada, a legislação criada para regular a atividade de inteligência interna após os atentados às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001. Apesar de o foco do trabalho recair sobre a América Latina, sua análise considera modelos de países os quais identifica como “de significativa evolução institucional”, tais como EUA, Canadá, Itália e Reino Unido, de modo a estabelecer parâmetros de comparação. O objetivo do autor é verificar se a expansão do setor de inteligência interna promovida após os atentados foi ou não acompanhada do fortalecimento dos mecanismos de controle, estabelecidos para resguardar a população do próprio país.
Encerrando o Dossiê, com seu artigo Evolución de la Cooperación Europea em Inteligencia, Antonio Diaz analisa a evolução do processo que tem conduzido à cooperação europeia em termos de inteligência, cujo início remonta à década de 1970, em resposta ao crescimento de ameaças tais como o narcotráfico e o terrorismo. O autor enfatiza como essa cooperação influenciou e foi influenciada pelas mudanças institucionais produzidas no âmbito da inteligência em vários países europeus, as quais, inclusive, fomentaram a institucionalização da atividade de inteligência no campo da segurança pública. Os desafios da instrumentalização dos órgãos, da classificação da informação (a questão do “secretismo”), as dificuldades de interoperabilidade e compartilhamento são aspectos essenciais do debate abordado pelo autor.
Enfim, na expectativa de que o Dossiê História e Inteligência contribua para incrementar no país os estudos relativos à atividade de inteligência, sobretudo no campo da História, agradeço a participação de cada um dos autores e convido os leitores a desfrutarem dos resultados de pesquisa ora produzidos.
Belo Horizonte, abril de 2012.
Priscila Brandão – Organizadora. Departamento de História, UFMG. E-mail: priscilahis@gmail.com
BRANDÃO, Priscila. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.28, n.47, jan. / jun., 2012. Acessar publicação original [DR]