História Indígena na Contemporaneidade: Diálogos interdisciplinares e pesquisas colaborativas / Mnemosine Revista / 2016

Este dossiê organizado pela Drª Juciene Ricarte, da Universidade Federal de Campina Grande e pelo professor que assina esta apresentação nasceu da constatação inevitável que cada vez mais vem sendo ampliado os estudos sobre a temática indígena e com uma característica marcante: na área de História. São diversas pesquisas realizadas nos programas de pós-graduação espalhados pelo país – e fora dele –, que juntamente com os estudos antropológicos iniciados na década de 1980 definitivamente tornaram os indígenas um tema significativo entre os nas Ciências Humanas e Sociais.

O contexto sociopolítico vivenciado nas últimas décadas, com as mobilizações dos próprios indígenas pelo reconhecimento, conquistas e garantia de direitos, os conflitos quase sempre bastante violentos enfrentados pelos índios com as invasões das terras que habitam; a constatação oficial do crescimento demográfico indígena; as reinvindicações de políticas públicas específicas para essas populações e a considerável presença indígena nos centros urbanos, dentre outros temas, desafiam os estudos acadêmicos para refletirem sobre situações supostamente resolvidas com o advogado “desaparecimento” ocorrido ou gradual dos índios, como equivocadamente se acreditava em uma perspectiva evolucionista.

Nas pesquisas recentes são revisitadas fontes conhecidas bem como novos e diversos documentos foram explorados. Os diálogos com categorias antropológicas, sobretudo, as reflexões sobre as relações socioculturais em contextos de dominação e hegemonia políticas enriquecem os estudos históricos, inclusive quando as reflexões também dão conta de temporalidades precedentes na nossa história de onde se originaram as questões contemporâneas. Os textos ora publicados situam-se, portanto, nesse esforço de discutir, buscar compreender certos aspectos de situações, contextos, evidenciando a partir de uma abordagem histórica os indígenas como protagonistas.

Nesse sentido, no texto “A experiência de trabalhadores tutelados: a presença de indígenas em obras públicas da Província de Alagoas”, Aldemir Barros da Silva Júnior pensando o indígena com a categoria “trabalhador tutelado” no Século XIX, baseado principalmente em documentos da Diretoria Geral dos Índios em Alagoas, discutiu as diversas formas e os espaços em que ocorreu o trabalho indígena naquela Província a partir de meados do Século XIX. O autor discorreu sobre a utilização compulsória da mão-de-obra indígena principalmente nas obras públicas de aterros e construções de canais na alagada Maceió, a capital alagoana.

Um trabalho em condições insalubres, do qual os indígenas fugiam antes mesmo dos recrutamentos forçados nas aldeias a mando de autoridades provinciais ou diretores dos aldeamentos. Em um contexto sociopolítico em que recrudesceram as disputas pelas terras dos antigos aldeamentos situados em regiões de férteis e bastante irrigadas, invadidas por fazendeiros, os índios elaboraram diferentes estratégias para se livrar do trabalho coercitivo, como trabalhar nas fazendas o que lhes garantia até certo ponto autonomia para negociações e o sustento para si e para as famílias.

O estudo torna-se muito importante em pelo menos dois aspectos. O primeiro, quando tratou do trabalho indígena, tema desconhecido e até certo ponto um tabu nas discussões sobre a História do Brasil. E o segundo, porque mesmo no que passou após os anos 1980 a se chamada no país como a “nova história indígena”, ainda não se debruçou devidamente sobre o assunto. Isso porque além da comum alegada ausência de fontes para abordar a temática, o trabalho indígena foi desconsiderado em razão da ênfase na utilização da mão-de-obra negra escravizada e afirmações da “inadaptabilidade” dos índios para o trabalho. O que resultou no senso comum no arraigado preconceito de “preguiçoso” atribuído aos indígenas.

Portanto, o texto de Aldemir ao evidenciar a importância, as formas, os espaços e o protagonismo, particularmente dos Xukuru-Kariri (Palmeira dos Índios / AL), no trabalho indígena, contribui sobremaneira para um tema desconhecido e além do mais em se tratando de discussões relativas ao Nordeste, onde durante muito tempo foi negada a existência de indígena nessa Região. São reflexões relevantes também porque possibilita compreender as dinâmicas das atuais relações com as disputas pelas terras e o trabalho indígena naquela localidade, inspirando pensar em outros lugares no Nordeste.

No texto “Tradições adormecidas: práticas culturais e narrativas no cotidiano das índias parteiras da Aldeia Forte-Baía da Traição”, Aline de Castro retomou uma discussão muito cara aos indígenas no Nordeste: a afirmação de expressões socioculturais, saberes, conhecimentos “tradicionais” em espaços onde a população circunvizinha não indígena, autoridades e poderes públicos em geral, negam a existência indígena. E ainda mais se tratando de mulheres indígenas parteiras, desqualificadas frente ao exaltado saber médico como “herança” Ocidental, porém que esconde interesses mercantis.

Ao discutir as práticas das parteiras indígenas na Aldeia do Forte, Baía da Traição / PB, a autora evidenciou a importância de saberes específicos no contexto e conectados com a afirmação das expressões socioculturais indígenas, notadamente como tema inédito para as reflexões históricas e como contribuição para compreensão das relações dos povos indígenas na nossa sociedade em tempos atuais.

As migrações indígenas, principalmente para os centros urbanos, tem sido um tema de alguns estudos. A contribuição original de Edmundo Monte com o texto “História e memórias de migrações no Nordeste indígena: o “vaivém” dos Xukuru do Ororubá (Pesqueira / PE)”, estar no enfoque sobre um povo indígena habitando o Nordeste. É até possível afirmar que os estudiosos sobre migrações na Região não conseguiram perceber as particularidades identitárias indígena de alguns migrantes, o que é compreensível diante do até recentemente afirmado sistemático discurso da inexistência indígena no Nordeste.

No texto, o autor discutiu as migrações de período mais longo para o Sudeste em geral São Paulo, e sazonais dos índios Xukuru do Ororubá, habitantes em Pesqueira e Poção, região do Semiárido pernambucano, que em épocas de secas se deslocavam principalmente o “Sul”: a região da Mata Sul de Pernambuco e Norte alagoana, em busca de trabalho na lavoura canavieira. Baseado em memórias orais, Edmundo Monte buscou compreender as motivações, experiências cotidianas de sociabilidades e as formas do trabalho realizado pelos indígenas nos locais para onde se destinaram. As reflexões possibilitam além de discutir o desconhecido trabalho indígena, atualizá-las nos debates contemporâneos sobre os índios no Nordeste.

Para o pesquisador que se dedica ao estudo da temática indígena no Nordeste em suas peculiaridades, as experiências de povos indígenas em outras regiões no país parece algo distante. O que pode ser relativizado na leitura de textos como o de Manoel Gomes Rabelo Filho, intitulado “Interpretações do Kanaimî no contexto religioso Macuxi” onde o autor discorreu sobre uma dimensão mítica e religiosa, fundamental para aquele povo indígena habitante em Roraima.

Baseado na categoria das representações sociais, na literatura socioantropologica que tratou do assunto e ainda em entrevistas orais com indígenas que vivenciaram experiências distintas com o Kanaimî, o pesquisador Manoel Rabelo buscou refletir sobre os significados dessa entidade mítica para o universo religioso Macuxi. Uma discussão que possibilita conhecer outras situações, bem como de alguma forma aproximar-se das abordagens sobre as expressões religiosas indígenas em nossa Região.

No texto “O Estado Novo e os povos indígenas: o silêncio das palavras”, Zeneide Rios de Jesus analisou a política de colonização empreendida naquele período com a chamada Marcha para o Oeste, quando ocorreram invasões de terras indígenas ignoradas pelas reflexões históricas da época e posteriores. A autora evidenciou a participação de intelectuais no projeto governamental e como a imprensa silenciou a respeito dos impactos das políticas governamentais sobre os povos indígenas.

A discussão sobre as relações entre políticas governamentais, violências contra os povos indígenas e atuação da imprensa são bastante atuais. E as reflexões apresentadas no texto, questionam o papel dos historiadores na escrita da História do Brasil republicano e como pensam o lugar dos povos indígenas nos processos históricos recentes. E ainda o silêncio sobre o tema no Ensino de História.

Os Tupinambá em Olivença de forma sistemática tem a identidade étnica negada por fazendeiros, imobiliárias e empresários do turismo, invasores das terras habitadas pelos indígenas, em uma região paradisíaca no Sul da Bahia. A afirmação identitária Tupinambá e as mobilizações desses indígenas por reivindicação e garantia de direitos foram discutidas por Edson Silva e Tamires Brito no texto “Índios Tupinambá / BA: ‘o manto foi roubado’! O despertar pelos encantados de uma “identidade adormecida”’.

Observando um contexto de permanentes tensões, com várias formas de violências contras os Tupinambá, desde as prisões e assassinatos de lideranças, queima de casas, perseguições e expulsões de indígenas, a partir da pesquisa historiográfica e também de memórias orais, os autores buscaram evidenciar as diferentes estratégias dos indígenas para afirmação étnica, marcada pela dimensão simbólica intimamente relacionada com as expressões religiosas. A situação vivenciada pelos Tupinambá é por demais emblemáticas para discussões de processos semelhantes vivenciados por outros povos indígenas no Brasil.

As relações entre as expressões religiosas e a identidade étnica foram também analisadas por José Peixoto e Lucas Gueiros, no texto “Religiosidade e encantamento: o pagamento de promessa no ritual indígena Jiripankó”, onde os autores trataram dos rituais desse povo indígena habitante no Sertão de Alagoas. O estudo foi baseado nas reflexões de teóricos clássicos da Antropologia, assim como estudos recentes e ainda a partir de uma pesquisa e observações de campo, buscando melhor compreender os significados da prática do ritual para a afirmação da identidade indígena.

As reflexões apresentadas no texto somam-se aos poucos estudos que foram dedicados à temática das expressões religiosas indígenas no Nordeste atual. E possibilita pensar sobre as leituras indígenas dos encontros no passado dos universos religiosos nativos e colonial, as traduções e expressões indígenas desse encontro, as (des)continuidades, ressignificações, reformulações, associações e afirmações identitárias correlacionadas no universo simbólico religioso Jiripankó, possibilitando pensar outras situações assemelhadas ocorridas em áreas mais antigas da colonização, a exemplo do Nordeste.

A este conjunto de debates somam-se outros trabalhos de fundamental importância, resultantes do III Seminário Internacional América Indígena: processos de mediação e mestiçagens, que teve lugar no campus da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro em Seropédica entre os dias 28 e 29 de setembro de 2015, sob a coordenação das profas. Izabel Missagia e Vânia Moreira e contou com o auxílio da CAPES.

Os artigos apresentados contém as reflexões do Dr. José Ribamar Bessa Freire e Ana Paula da Silva, Professor do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade do Rio de Janeiro / UniRIO e doutoranda do mesmo programa, onde discutem o protagonismo e a atuação política indígenas na dinâmica de conflitos e interesses que marcaram o período historicamente conhecido como França Equinocial, notadamente o caso dos índios embaixadores na França, sobretudo Itapucu, refletindo sobre a participação destes na produção de “redes globais de conhecimento e poder” suas estratégias em contextos de interação sociocultural e política, destacando especialmente o papel de mediadores e articuladores de alguns líderes indígenas que a exemplo dos embaixadores Tupi foram buscar uma resposta oficial para seus problemas.

Juciene Ricarte da Universidade Federal de Campina Grande discute processos de incorporação de algumas chefias indígenas na política da administração portuguesa no Brasil nos sertões das capitanias do norte e o fundamento da legislação indigenista nas fronteiras interétnicas que lhe oferecia fundamento, notadamente o Diretório dos Índios na segunda metade do século XVIII. Nesse processo as lideranças adquiriam status de intermediários políticos que os conduziram a ostentar patentes de oficiais das vilas implantadas a partir do Diretório, por vezes em favor dos seus grupos étnicos de origem trazidos a ordem. Constata-se, que as iniciativas de cooptação e valorização das chefias indígenas tornaram-se tradição do Estado monárquico português no trato com as populações conquistadas, objetivando o controle de novas populações.

Além destes, o conjunto de textos se encerra com às conferências de abertura e encerramento do evento, a primeira, realizada pelo professor Hal Langfur, da Universidade de Nova Iorque em Buffalo, que em sua conferência inaugural apresentou o estado da arte dos debates das questões etinoindigenas através de um recenseamento de pesquisas e debates sobre as questões relacionadas as populações indígenas, relacionando os estudos realizados nos Estados Unidos e no Brasil consideradas as suas convergências e singularidades. Na conferência de encerramento, a Drª. Danna Levin Rojo da Universidade Autonoma Metropolitana, México, apresentou em sua conferência a organização e a burocracia do estado colonial, investigando a relação do estado colonial espanhol como agente interventor e as populações indígenas nos diversos espaços de convívio em que estes foram assimilando os nativos como servidores o colaboradores que aparecem referidos indistintamente na documentação investigada como “índios amigos”. É uma análise comparativa de experiências nos diversos territórios ocupados que permite reconhecer que estas populações nativas agiram muitas vezes como artífices conscientes de seu próprio destino e não como meros objetos da manipulação habilidosa do espanhol invasor, num complexo tecido de relações.

Enfim, os textos que compõem o Dossiê são contribuições significativas para pensarmos os índios na História do Brasil, particularmente no Nordeste. E se revestem de igual importância quando também pensados na perspectiva dos questionamentos provocados pela demandas para efetivação da Lei 11.645 / 2008, que determinou na Educação Básica a inclusão do ensino da história e culturas dos povos indígenas, com a reclamada ausência de subsídios sobre o assunto. Além disso, o papel da academia seja de formar pesquisadores na pós-graduação e professores nos cursos de licenciatura, embora ao final todos sejam de alguma forma e em algum nível docentes, requer o (re) conhecimento sobre os povos indígenas como sujeitos sociopolíticos na História do Brasil e a superação de desinformações, equívocos e preconceitos sobre o tema. E os textos ora publicados em muito contribuirão para que isso ocorra. Resta desejar boas leituras, reflexões e discussões.

Edson Silva – Doutor Professor da Universidade Federal de Pernambuco / CA e da Pós-Graduação em História da Universidade federal de Campina Grande.


SILVA, Edson. Apresentação. Mnemosine Revista. Campina Grande, v.7, n.1, jan. / mar., 2016. Acessar publicação original [DR]

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