Posts com a Tag ‘História Histórias UnB (HHr)’
Aristóteles ou o vampiro do teatro ocidental | Florence Dupont
Aristóteles | Francesco Hayez, 1808
Aristóteles ou o vampiro do teatro ocidental, de Florence Dupont, traduzido no Brasil em 2017, pode provocar em seus leitores impressões muito distintas. Não se segue, neste comentário crítico, a sequência de argumentos e capítulos da obra em questão40, apenas uma análise mais particular de determinadas perspectivas ou, até mesmo, de posicionamentos que parecem estar na base da proposta do livro.
Um dos esforços mais longamente empreendidos por Dupont em Aristóteles ou o vampiro do teatro ocidental é o de revelar o quanto a Poética – principal alvo do estudo – não dá a atenção necessária a uma série de práticas que constituíam o acontecimento teatral na Atenas clássica. Como afirmado, desde a Introdução, “Aristóteles isolou o texto de teatro para fazer dele um objeto de análise” (p. 10), produzindo uma reflexão autônoma sobre “um texto objetivável” (p. 22). Esse isolamento faz com que a Poética ignore o papel da música na tragédia antiga; do coro, transformado “em um personagem como outro qualquer” (p. 17); do destinatário dos espetáculos, celebrante de um grande evento, o cidadão ateniense que, aliás, Aristóteles não era, como lembra Dupont. Criou-se, assim, um estatuto específico para os personagens, dentre outros efeitos decorrentes da análise centrada no texto trágico. Florence Dupont é enfática ao afirmar que “nunca se insistirá o bastante na distância que separa a Poética – que é uma teoria do texto trágico – da realidade histórica do teatro em Atenas” (p. 20). O rigor com que lê o texto aristotélico – em grego, como faz questão de ressaltar – e a erudição apresentada ao tratar da experiência teatral antiga, em seu “contexto litúrgico e epidítico” (p. 21), evidenciam o quanto de anacronismo há nas nossas leituras contemporâneas das tragédias gregas, centradas nas perspectivas do filósofo. Leia Mais
El ámbito doméstico en el Antiguo Régimen: de puertas adentro | Gloria Franco Rubio
Gloria Rubio certamente não é unanimidade entre seus estudantes na Universidad Complutense de Madrid, onde leciona desde 1980 e a partir de 2011 tornou-se catedrática de História Moderna. Facilmente se encontra na web comentários pouco elogiosos a seu estilo inusitado de conduzir as aulas, exigindo silêncio absoluto, proibindo o uso de smartphones, tablets ou notebooks pelos alunos, demandando trabalhos manuscritos, sendo pouco receptiva a questionamentos e comentários ou mesmo fornecendo um cabedal gigantesco de detalhes difíceis de serem absorvidos a cada encontro semanal. No entanto, para quem já a assistiu apresentando suas pesquisas numa conferência, palestra ou mesa-redonda, o relato de tais idiossincrasias por seus ex-alunos parece só agregar certa peculiaridade a uma historiadora que prima pela análise aprofundada e arguta de seus temas de interesse, esmiuçando fontes e desvendando as relações subjacentes à superfície daquilo que, usualmente, se fazia mais perceptível no cotidiano ao longo da Idade Moderna europeia.
O presente livro é resultado de dois extensos projetos de pesquisa coordenados pela docente madrilena entre 2000 e 2008, ambos tratando da vida cotidiana na Espanha da Modernidade e financiados pela UCM e pelo governo espanhol1. Se em Cultura y mentalidad en la Edad Moderna, livro que publicou ainda em 1998, a pretensão de Rubio era construir um amplo panorama sobre a Europa ocidental entre os séculos XV e XVIII, a partir de enfoques da História Cultural e da análise da Cultura Material, a virada do século XX para o XXI levou-a a voltar o seu olhar cada vez mais para o ambiente doméstico e para o papel das mulheres neste espaço. Para aqueles que já conhecem os escritos da autora, fica fácil perceber essa trajetória em diversos de seus artigos e capítulos2 ou mesmo nos números temáticos (RUBIO, 2002; RUBIO, 2015) que organizou nos Anejos dos Cuadernos de Historia Moderna, periódico especializado que dirige há vários anos. Leia Mais
Nas memórias de Aurélia: cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX / Samuel Albuquerque
Samuel Albuquerque / Foto: Conectando Com Jota /
Ao dar visibilidade no cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX, Samuel Barros de Medeiros Albuquerque, professor da Universidade Federal de Sergipe, narrou neste livro as vivências e experiências da sergipana Aurélia Dias Rollemberg (1863-1952), futura Dona Sinhá, durante sua estada no Rio de Janeiro com sua família, e sua preceptora alemã, Marie Lassius.
Tais memórias, arquivadas em textos, são fonte de informações preciosas sobre o cotidiano feminino, incluindo o trabalho de governantas, bem como as experiências e práticas culturais de meninas, moças e senhoras na sociedade carioca.
Assim, fazendo uma breve descrição dos familiares de Aurélia, da chegada de Marie Lassius no Brasil e na casa da jovem, ainda em Sergipe, Albuquerque buscou investigar
o universo de preceptoras europeias que viveram entre os grandes centros e a periferia do Império do Brasil e, para tanto, enveredo pelo cotidiano de uma típica família da nossa antiga elite política e econômica, buscando interpretar sobretudo, as práticas culturais femininas (2015, p. 17).
Para isso, Albuquerque abordou no primeiro capítulo, intitulado “Nas memórias de Aurélia”, as experiências e vivências dessa jovem sergipana, bem como das demais mulheres da família, inclusive de sua preceptora alemã.
Ao narrar a conjuntura que levou a família do deputado geral Antonio Dias Coelho e Mello (1822-1904), Barão da Estância, a se mudar para o Rio de Janeiro, e o cotidiano das mulheres da família, Albuquerque conseguiu estabelecer pontos de convergência entre a política e cultura do século XIX.
A ligação política do Barão da Estância rendeu às mulheres da família e à preceptora alemã, o acesso a espaços de sociabilidade típicos da corte carioca, como bailes, jantares, cerimônias políticas e religiosas, inclusive contato direto com a família imperial, por meio das visitas residenciais ou cerimônias específicas.
Além disso, tal ligação política também possibilitou identificar o cotidiano dessas mulheres e suas práticas culturais. Dentre essas práticas, Albuquerque destacou as experiências vivenciadas e narradas por Aurélia nos diversos espaços de sociabilidade em que frequentou com sua família e com sua preceptora.
A frequência nesses espaços possibilitava às mulheres da corte e da elite se conhecerem, trocarem informações e experiências sociais e culturais. Assim, Aurélia, as mulheres de sua família, e sua preceptora, conseguiram se inserir no cotidiano feminino carioca e se adaptarem nessa nova realidade sociocultural, uma vez que todas elas provinham de outras realidades culturais.
Quanto à ligação cultural existente no cotidiano da família sergipana, podemos observar a atenção que o autor deu aos indícios textuais de Aurélia sobre a educação recebida pela preceptora alemã.
Da gramática ao estudo de idiomas e de música, a jovem sergipana foi educada para tornar-se uma mulher culta e preparada para um bom casamento e, consequentemente, saber cuidar da casa, do marido, dos filhos e dos criados.
Sua vivência e experiências pela cidade do Rio de Janeiro, acompanhada por sua família e por Marie Lassius, fizeram de Aurélia uma moça atenta ao cotidiano feminino e aos espaços de sociabilidade por ela frequentados.
Guiado pelos indícios das práticas culturais e dos espaços de sociabilidade acessados por Aurélia, Albuquerque continuou explanando no segundo capítulo, intitulado “No Reino Encantado de Pedro II”, o cotidiano feminino pelo Rio de Janeiro durante o reinado de D. Pedro II.
A frequência nos ritos religiosos, no estabelecimento de modistas franceses, na confeitaria Paschoal, nas residências de políticos e damas da elite carioca, em teatros, museus, passeios públicos, jardins botânicos, zoológico, praias e demais endereços ilustram a diversidade de espaços de sociabilidade existentes na cidade do Rio de Janeiro, bem como os locais permitidos ao acesso feminino.
Toda vivência e experiência obtida durante a estadia no Rio de Janeiro, provavelmente proporcionou a Aurélia noções do cotidiano e das práticas femininas, além de prepará-la para a vida de esposa, mãe e dona de casa.
Assim, com o encerramento das atividades políticas do Barão da Estância no Rio de Janeiro em 1879, ele e sua família retornam a Sergipe, deixando para trás o amigo da família Gonçalo de Faro Rollemberg, futuro esposo de Aurélia, e a preceptora alemã, Marie Lassius que faleceu no mesmo ano.
Aurélia, já amadurecida, continuou escrevendo suas vivências e experiências, porém, não da mesma forma como antes. Diante de seus retornos ao Rio de Janeiro, de seu casamento, filhos que teve, permanecia em sua memória os ensinamentos, as práticas, as vivências e as experiências deixadas por sua preceptora.
Assim, se Samuel de Albuquerque buscou destacar em seu livro a importância da prática da preceptoria no Brasil para a formação feminina, em especialde Aurélia, ele também conseguiu dar visibilidade às experiências, vivências e práticas culturais no cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX.
Everton Vieira Barbosa Correio – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP-Campus de Assis). Bolsista pelo processo 15555-8, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).E-mail: semusico@hotmail.com.
ALBUQUERQUE, Samuel. Nas memórias de Aurélia: cotidiano feminino no Rio de Janeiro do século XIX. São Cristóvão: Editora UFS, 2015, 152p. Resenha de: CORREIO, Everton Vieira Barbosa. História histórias. Brasília, v.4, n.7, p.231-233, 2016. Acessar publicação original. [IF]
Representações do Feminino nas Histórias em Quadrinhos / Amaro Xavier Braga Jr.
Amaro Xavier Braga Jr. / Foto: Cult de Cultura /
Este livro, lançado em 2015, é uma coletânea de artigos de pesquisadoras(es) brasileiras(os) que analisam como as questões de gêneros estão sendo representadas nos quadrinhos. Concentra-se na análise da representação dos papeis femininos nas histórias em quadrinhos desde o comics estadunidenses, passando pelos mangás japoneses (shonene shojo) chegando às publicações undergrounds, tiras e biografias.
O livro apresenta 16 artigos, fruto do trabalho de 18 pesquisadoras(es) e está dividido em quatro partes definidas pela estética dos quadrinhos, sendo elas: quadrinhos infantis, de super-heróis/comics estadunidenses, mangás japoneses e undergrounds, tiras e biografias.
A primeira parte da obra denominada “quadrinhos infantis” apresenta os textos de quatro pesquisadoras, são elas: Marta Regina Paulo da Silva, Denise Castilhos de Araujo, Andréia Cristina Silva e Juliane Di Paula Queiroz Odinino.
Marta apresenta o texto “Mas só se For no Campo de Menina”: Infância, Histórias em Quadrinhos e Relações de Gênero na Educação Infantil, resultado de parte da sua tese de doutorado; neste artigo, a autora analisa a partir das histórias da Turma da Mônica a relação entre infância, relações de gênero e histórias em quadrinhos e como as crianças “consomem” esses produtos. Segundo ela, o importante é saber como meninos e meninas pequenos(as) apropriam-se das HQs e nelas as questões referentes à relação de gênero e o que produzem a partir destas narrativas.
Denise Castilhos de Araujo discute os “Papéis Femininos em Mafalda”, refletindo sobre os diferentes papéis das mulheres argentinas da década de 1960, que são muito atuais na nossa sociedade, a partir da produção do desenhista argentino Joaquim Salvador Lavado, mais conhecido como Quino. Mafalda, uma personagem com idade pré-escolar, é apresentada como questionadora dos conflitos sociais, políticos, culturais mundiais e da Argentina, vivenciando no seu dia a dia as preocupações dos seus leitores e da sociedade em geral. Segundo ela, a produção do autor analisado,soube demonstrar “a busca de igualdade entre os indivíduos,… a trajetória feminina na defesa de seus direitos”.
Em seu texto “Ethos feminino nos quadrinhos infantis: ‘aniversário da Mônica ou festa do Mônico?’”, Andréia Cristina Silva, analisa a inversão dos papéis femininos e masculinos dos personagens da Turma da Mônica na festa de aniversário da Mônica, destacando como o ethos e a representação de si no discurso ganha importância na narração das histórias em quadrinho. E como essas “imagens podem facilitar ou dificultar a aceitação do discurso, e ocorre constantemente no nosso dia a dia em qualquer ato comunicativo”.
Juliane Di Paula Queiroz Odinino, no texto “Princesas, Heroínas ou Super-Poderosas? Agência e representação das personagens femininas infantis dos quadrinhos ao desenho animado”,a autora analisa as transformações das personagens femininas nos quadrinhos e nas animações destinadas ao público infantil, a partir do seu amplo alcance, tem-se um grande número de expectadores/consumidores.
A segunda parte do livro reúne os textos de Natania Nogueira, Nildo Silva Viana e Gelson Weschenfelder, as reflexões dos autores partem dos comics estadunidenses, para discutir a constituição da super-heroínas, o contexto histórico, a releitura das personagens no passar do tempo.
No texto “II Guerra Mundial e as ‘Super-Mulheres’: o Surgimento das Super-Heroínas nos Estados Unidos da Década de 1940” , Natania Nogueira discute o papel das personagens femininas nas histórias em quadrinhos e as suas transformações no pós-guerra.
Nildo Silva Viana discute o “Inconsciente coletivo feminino e valores contraditórios na Mulher-Maravilha” procurando identificar os valores e concepções presentes nas histórias da Mulher-maravilha e a manifestação do inconsciente coletivo feminino nesse universo, analisando a personagem a partir os conceitos de: valores, axiologia, axionomia, ideologema, teorema e inconsciente coletivo.
Gelson Weschenfelder, no texto “As Super-Heroínas como instrumento de gênero nas histórias em quadrinhos”, analisa a representação feminina nas histórias em quadrinhos e o papel das personagens Mulher-maravilha, da editora DC; Tempestade e Jean Grey dos X-men, da editora Marvel, num contexto da libertação feminina.
A terceira parte do livro traz os textos de Sonia Bibe Luyten, Taís Marie Ueta e Yuji Gushiken, e Valéria Fernandes da Silva, os autores analisam a produção dos mangás japoneses, principalmente o “shoujo mangá”, que é destinado ao público feminino. O papel que as personagens representam e a idealização do feminino são assuntos que os autores discutem neste bloco.
No texto “A produção e retratação da mulher nos quadrinhos ocidentais e no mangá: Romantismo e Erotismo”, de Sonia Bibe Luytentem como objetivo verificar a representação da mulher nos quadrinhos orientais e ocidentais, num contexto Brasil-Japão. A autora também analisa a participação das mulheres como produtoras/desenhistas de histórias em quadrinhos ou charges publicadas nos diferentes períodos da história.
Taís Marie Ueta e Yuji Gushiken problematizam “O Feminino na produção de Mangás”, apresentam em seu texto a contextualização da criação e o enredo dos mais variados mangás e diferentes estilos, publicados no Japão e traduzidos em diversos países. Problematizando o papel das personagens na representação do ideal feminino nessas obras.
A historiadora Valéria Fernandes da Silva, em seu texto “A Garota-Príncipe nos shoujo mangá: discutindo as fronteiras de gênero”, analisa a construção do modelo garota-príncipe, nas obras “A princesa e o cavaleiro”, de 1953; “A rosa de Versalhes”, 1972-1974; “A espada de Paros”, 1986-1987, e “A garota revolucionária”, 1996-1997, em que as protagonistas apresentam tanto atributos femininos quanto masculinos.
Otávia Alves Cé, no texto “Elas para Eles e Elas para Elas: diferenças e semelhanças na representação de personagens femininas nos mangás shonen e shojo”, a autora destaca a divulgação e da facilitação do acesso aos mangás e animes japoneses, em que muitas crianças e jovens ocidentais tiveram conhecimento e incorporaram elementos presentes no cotidiano japonês. Apresenta uma conceitualização da estética e estilo da narrativa dos mangás e a definição dos estilos shojoe shonen. Além da análise sobre a caracterização de diferentes personagens nos estilos shojoe shonen.
A quarta e última parte da obra “Undergrounds, tiras e biografias”, reúne os textos de Maria Adriana Nogueira e Daiany Ferreira Dantas, Thayse Madella, Luciana Zamprogne, Alba Valéria Tinoco Alves Silva e Karine Freitas Sousa. Coincidentemente, temos dois trabalhos sobre a mesma obra “Retalhos” (2010), demonstrando como as análises sobre as histórias em quadrinho podem ser fecundas.
Maria Adriana Nogueira e Daiany Ferreira Dantas discutem no texto “Feminino, intimidade e subversão em Bordados, de Marjane” a partir dos conceitos de resistência aos dispositivos de sexualidade presentes no pensamento de Michel Foucault (1988), analisam a obra Bordados da iraniana Marjane Satrapi procurando compreender a identidade feminina das mulheres islâmicas, a partir de conceitos como o de construção de identidade e construção do feminino.
No texto “Casamento, virgindade e falocentrismo: a subversão de tradições patriarcais no romance gráfico ‘Bordados’, de Marjane Satrapi”, Thayse Madella analisa as representações gráficas dos depoimentos das personagens, procurando mostrar as lutas diárias dessas mulheres para subverter no sistema patriarcal do Irã, as regras que as oprimem.
O texto de Luciana Zamprogne, “Como estranhos podem encontrar o paraíso: contra-discursos, ideologias e representações do feminino na sociedade contemporânea”, a autora apresenta a possibilidade de analisar a sociedade a partir da cultura pop, ressaltando que ela é produto de um contexto histórico, carregado de estruturas simbólicas, subjetividades e racionalidades individuas ou coletivas.
Alba Valéria Tinoco Alves Silva, analisa “O Traço de 3 mulheres nas tiras em quadrinhos de humor”, centralizando suas reflexões nas produções de Cecilia Whitaker de Azevedo Alves Pinto –Ciça, Pryscilla Vieira e Cibele Santos. A autora expõe o baixo número de mulheres na produção dos quadrinhos de humor e procura responder se existem divergências entre homens e mulheres na representação do humor.
O texto de encerramento “As (Sub) subalternas mulheres em Scott Adams”, de Karine Freitas Sousa procura analisar, a partir das histórias em quadrinhos fragmentos das violências simbólicas de gênero sofridas pelas mulheres profissionais presentes nessas histórias.
Concluindo, a obra Representações do Feminino nas Histórias em Quadrinhos, conseguiu reunir uma expressiva amostra de trabalhos desenvolvidos a partir da problematização da questão de gênero apresentadas nas histórias em quadrinhos. Os autores procuram demonstrar a representação dos papéis femininos nos mais diferentes formatos e estilos das histórias em quadrinhos, criticando a desigualdade entre a representação do masculino e do feminino nesse universo. Dessa forma, acredito que a intenção desse trabalho é a de demonstrar aos mais variados leitores como as HQs podem ser utilizadas como fonte para as pesquisas, nas diferentes áreas do conhecimento, proporcionando reflexões e discussões sobre as diferentes representações do mundo presentes em seus enredos.
Maycon André Zaniné – Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História do Unicentro (Universidade Estadual do Centro-Oeste–Paraná). E-mail: maycon_zanin@yahoo.com.br.
BRAGA JR, Amaro Xavier; SILVA, Valéria Fernandes da (Orgs.). Representações do Feminino nas Histórias em Quadrinhos. Maceió: Editora da Ufal, 2015. 330p. Resenha de: ZANINÉ, Maycon André. História histórias. Brasília, v.4, n.7, p.227-230, 2016. Acessar publicação original. [IF]
Historiografia e nação no Brasil: 1838-1857 / Manoel L. S. Guimarães
Luís César Castrillon Mendes – Universidade Federal de Mato Grosso.
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e nação no Brasil: 1838-1857. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2011. 284p. Resenha de: MENDES, Luís César Castrillon. História histórias. Brasília, v.3, n.5, p.223-226, 2015. Acesso apenas pelo link original. [IF]
“Zu wißen und kundt sey hiemit…”. Neue Erkenntnisse zur Osnabrücker Landes- und Stadtgeschichte aus studentischen Forschungen / Volker Arnke e Heinrich Schepers
André Gustavo de Melo Araújo – Universidade de Brasília – UnB.
ARNKE, Volker; SCHEPERS, Heinrich (orgs.). “Zu wißen und kundt sey hiemit…”. Neue Erkenntnisse zur Osnabrücker Landes- und Stadtgeschichte aus studentischen Forschungen. Osnabrück: Selbstverlag des Vereins, 2014. 328p. Resenha de: História histórias. Brasília, v.3, n.5, p.221-222, 2015. Acesso apenas pelo link original. [IF]
História das mulheres e do gênero em Minas Gerais / Cláudia Maia e Vera L. Puga
Escrever a história das mulheres e do gênero ainda é uma tarefa ousada. Desde os anos 1980, o tema chega ao Brasil e se consolida como um campo definido de pesquisa para as/os historiadoras/es ganhando visibilidade, apesar de ainda sofrer restrições no interior das instituições acadêmicas. O número significativo de publicações revela gradativo fortalecimento desse campo, como atesta o crescimento das publicações de livros, artigos em revistas especializadas, teses, dissertações e simpósios temáticos versando sobre o tema. O que significa escrever uma história das mulheres e do gênero? A história se tornou o lugar a partir do qual o feminismo questionou o sujeito universal moderno (homem, branco, heterossexual e cristão), fazendo emergir uma vasta gama de sujeitos históricos em suas especificidades de gênero, étnico-raciais, sociais e sexuais.
O livro História das mulheres e do gênero em Minas Gerais, organizado por Cláudia Maia (UNIMONTES) e Vera Puga (UFU) resulta de uma parceria de longa data entre as organizadoras, que são pesquisadoras conceituadas e bastante atuantes nos simpósios sobre “História das mulheres e do gênero” na Associação Nacional de Professoras/es Universitários de História (ANPUH). Cláudia Maia é doutora em História pela Universidade de Brasília, na área de Estudos Feministas e de Gênero, e pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Atua como professora adjunta do Departamento de História e dos Programas de Pós-graduação em História e de Letras/Estudos Literários, da Universidade Estadual de Montes Claros. Vera Puga é doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), desde 1998, e atualmente faz parte de algumas comissões: do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (ENADE-Formação Geral) e da Secretaria de Políticas para as Mulheres (Comitê Técnico-Institucional, questões de gênero). É professora Associada II da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), onde atua no Programa de Mestrado e Doutorado em História Social, no Núcleo de Estudos de Gênero e Mulheres (NEGUEM) e na Revista Caderno Espaço Feminino, como editora.
O livro em questão conta ainda com a participação de pesquisadoras/es de vários estados brasileiros que se debruçaram sobre diferentes momentos da história das mulheres em Minas Gerais, partindo de variados tipos de fontes e abordagens metodológicas. Foi publicado pela Editora Mulheres e financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). Trata-se de uma coletânea de 552 páginas, organizada em quatro partes que indicam os múltiplos olhares sobre as mulheres mineiras: 1) transgressoras e insubmissas mineiras; 2) damas, donas do sertão; 3) saberes e fazeres femininos; 4) casamento e maternidade: mecanismos de um destino social.
A primeira parte da obra é constituída por textos que tratam das variadas ações de mulheres mineiras em diferentes temporalidades e espaços, para romper com as amarras das tradições patriarcais. Através da escrita sensível da pesquisadora Diva do Couto Muniz, conhecemos professoras mineiras cujo conjunto de ações “insubordinadas, indóceis e indisciplinadas” fincaram um marco de resistência ante o conjunto das estratégias elaboradas nas Minas oitocentistas, para circunscrevê-las a um ideal de mestra, recatada e submissa. Encontramos também as mulheres que ousaram contrariar regras “sagradas” e constituíram famílias com padres, mesmo estando sujeitas a sanções sociais, conforme divisou Vanda Praxedes. Mulheres mineiras livres ou escravizadas com suas práticas e estratégias em favor da abolição, como a escravizada Catarina que se destacou pela “astúcia empreendida em seus projetos de liberdade” (p.87), são desveladas por Fabiana Macena. A mineira Maria Lacerda de Moura, sua trajetória e escrita libertárias compõem o texto escrito por Cláudia Maia e Patrícia Lessa. Os três últimos textos discorrem sobre a escrita feminina: Maura Lopes Cançado e sua vida marcada pela insanidade e transgressão das normas de gênero, cuja obra Hospício é Deus foi discutida de forma densa por Márcia Custódio e Alex Fabiano Jardim. Contribuindo para visibilizar as mulheres negras e suas escritas, Constância Duarte nos presenteia com uma análise belíssima de parte da obra da escritora mineira Conceição Evaristo. Nos contos analisados, as personagens negras nos convidam a conhecer suas trajetórias, nas quais a intersecção entre gênero, etnia e classe se fazem presentes nas suas estratégias, vivências e resistências cotidianas. Fechando a primeira parte, conhecemos Márcia, prostituta de Pouso Alegre, cujas cartas são analisadas por Varlei do Couto a partir da noção foucaultiana de escrita de si. Vivendo e lutando num contexto em que as campanhas de moralização e higienização sociais têm como foco seu local de trabalho e residência, Márcia elabora táticas de resistência, enquanto troca correspondências com pessoas de sua estima, nas quais fala de si e de sua posição frente à sociedade em que vive.
Na segunda parte da obra, intitulada “Damas, donas do sertão”, os olhares das/os pesquisadoras/es se voltam para as regiões consideradas mais distantes de Minas Gerais: os sertões longínquos, tradicionalmente considerados como espaços do desmando e poderio falocêntricos, agora são relidos sob novo viés. Assim, conhecemos por meio do texto de Gilberto Noronha as imagens contraditórias construídas sobre Joaquina de Pompéu e sua atuação no Oeste de Minas Gerais, entre os séculos XVIII e XIX. Em alguns discursos, ela é a mulher reta, recatada e justa; em outros, figura como “caudilho de saias” ou “sinhá Braba”, colérica, descomedida sexualmente e cruel com seus subordinados. Dona Tiburtina de Andrade Alves é outra mulher cuja posição ativa suscitou inúmeras representações: seu envolvimento em episódio sangrento da política de Montes Claros, no início do século XX, foi lido e relido ao longo do tempo a partir de várias perspectivas, sendo ora louvada, ora criticada, conforme destacam as autoras Maria de Fátima Nascimento e Filomena Cordeiro Reis. Correndo mundo através da literatura, as personagens femininas de Guimarães Rosa, tão vivazes quanto os viventes de carne e osso, em suas ações destecem o tecido da tradição falocêntrica e conduzem os destinos por caminhos por elas mesmas traçados. Zidica, Rivília e “Dlena, aranha em jejum” apresentam possibilidades de “desarticular o estabelecido” e nos são apresentadas com sua astúcia, pela pena sutil de Telma Borges.
Os textos que compõem a terceira parteda obra, denominada “Saberes e fazeres femininos”, têm em comum o cuidado das/o autoras/res em ouvir as próprias mulheres acerca de seus conhecimentos e práticase das formas pelas quais atuaram em suas comunidades. As falas das narradoras são permeadas de satisfação em rememorar suas trajetórias de vida e, ao mesmo tempo, reiteram sentidos tradicionais sobre as atividades consideradas como apanágio feminino ou masculino. Através do texto de Lúcia Helena da Costa, acessamos as narrativas das parteiras do norte de Minas Geraiscujas práticas de partejar sofreram a interferência dos médicos no processo de medicalização da saúde das mulheres e dos recém-nascidos, a partir dos anos de 1950. No texto de Cairo Katrib e Fernanda Naves, nas memórias de mulheres congadeiras em Ituiutaba se entrelaçam trajetórias pessoais e a prática cultural do Congado. Durante muito tempo silenciadas pela tradição judaico-cristã, as vozes das mulheres que atuaram na fundação de Igrejas pentecostais no Norte de Minas Gerais são enfim ouvidas por meio da pesquisa de João Augusto dos Santos. A ligação entre os fazeres considerados como femininos ligados à cozinha e aos hábitos alimentares mineiros são discutidos por Mônica Abdala. Ainda sobre saberes, temos as narrativas das mulheres trabalhadoras rurais no Triângulo Mineiro, visibilizadas por Maria Andréa Angelotti. A exclusão feminina do acesso à educação formal é discutida por Leila Almeida, que se debruça sobre as narrativas de mulheres de Januária acerca de suas trajetórias de escolarização. As hierarquias de gênero que comumente estabelecem restrições diversas às mulheres marcaram a vida de muitas das narradoras, que foram impedidas de estudar durante a juventude por maridos ciumentos e obrigações domésticas. Encerrando a terceira parte, conhecemos a luta pela terra travada pelas mulheres negras remanescentes de um Quilombo em Paracatu, através da pesquisa de Maria Clara Machado e Paulo Sérgio da Silva.
O casamento e a maternidade têm sido apontados enfaticamente como formas de aprisionamento das mulheres, transformados em destinos social e biológico circunscrevendo as mulheres na esfera da casa e da família, submetidas a cerceamentos e violências. A quarta e última parte do livro se caracteriza por discutir os dispositivos sociais responsáveis por restringir as mulheres às funções de esposas e mães, bem como as estratégias encontradas por muitas para se livrarem de situações de violência em casamentos infelizes. Helen Ulhôa Pimentel examina documentação do século XVIII do tribunal eclesiástico instalado em Paracatu. A autora estuda o papel da Igreja quanto ao casamento e a possibilidade de anulação do mesmo. Entre a documentação encontrou vários casos nos quais as mulheres resistiram às imposições da Igreja e a procuravam buscando se livrar de situações intoleráveis, como casamentos violentos, o caso, por exemplo, de Joana de Souza Pereira. Na sequência, também tratando de casamento e divórcio, temos o texto de Dayse Lúcide Santos, que discute a legislação brasileira, do final do século XIX e início do século XX, acerca do tema e analisa alguns processos de separação ocorridos em Diamantina. Uma das conclusões a que chega é a de que havia um descompasso entre as normas instituídas pelo Estado e pela Igreja e as vivências de homens e mulheres, o que levava a transgressões da norma. Os discursos produzidos no início do século XX sobre os papéis das mulheres na formação dos cidadãos nas regiões do triângulo mineiro constituem foco da pesquisa de Florisvaldo Ribeiro Júnior. As mulheres eram “alvos de prescrições físicas e morais de jornalistas, médicos, intelectuais, políticos e padres”, que procuravam estabelecer normas e controle sobre os seus corpos e condutas. Temos, aqui, excelente análise a respeito da relação entre as representações de gênero e os projetos de Nação Moderna do período. Na sequência, os discursos de mães adolescentes sobre maternidade e casamento, em Uberlândia, são analisados por Carla Denari, que percebe um descompasso entre os discursos do Estado acerca da gravidez na adolescência e os sentidos positivos que as mães adolescentes atribuem à maternidade e ao casamento. A educação enquanto espaço de produção das diferenças de gênero é objeto de Vera Lúcia Puga que percorre criticamente o processo educacional dicotômico, desde o século passado, com os internatos separados por sexo, até o presente, com a permanência da educação binária que se evidencia pelo funcionamento da escola deprincesas em Uberlândia.
Enfim, o livro como um todo oferece uma importante contribuição paraa história eos estudos de Gênero; seu diferencial é a abordagem centrada nas mulheres mineiras de várias regiões do estado, suas atuações em cada contexto ondese inseriram na luta pela liberdade de existir e agir. Se por um lado a obra congrega estudos variados que pretendem visibilizar as ações das mulheres mineiras, por outro tem nessa diversidade de perspectivas a emergência de alguns problemas: em alguns textos percebe-se que as mulheres estão subsumidas nas condições históricas de suas sociedades, em outros é possível vislumbrar a ideia de predestinação de determinadas mulheres para a atuação política em seus contextos. Notam-se também algumas lacunas no que tange às mulheres indígenas e às lesbianas, denotando uma ausência de estudos sobre essas mulheres em Minas Gerais e apontando, por outro lado, para a possibilidade de exploração destes campos pelas novas levas de historiadoras/es feministas. As brechas apontadas não diminuem o mérito da obra, visto que, nós historiadoras/es feministas somos conscientes de que todo texto histórico é parcial. Nesse sentido, as organizadoras na apresentação explicam que o “livro não teve a pretensão de percorrer o conjunto dos estudos que têm sido desenvolvidos sobre mulheres e gênero em Minas Gerais no campo da História, mas é uma pequena mostra desses estudos”1. Dentro do proposto, o livro contribui imensamente para que se conheça um pouco mais da história das mulheres mineiras.
Rosana de Jesus dos Santos – Doutoranda em História na Universidade Federal de Uberlândia.Bolsista Fapemig.E-mail: mariabunitaxxi@yahoo.com.br.
MAIA, Claúdia; PUGA, Vera Lúcia (Org.). História das mulheres e do gênero em Minas Gerais. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 2015. 552p. Resenha de: SANTOS, Rosana de Jesus. História histórias. Brasília, v.3, n.6, p.223-227, 2015. Acessar publicação original. [IF]
A Revolução em Película: uma reflexão sobre a relação Cinema-História e a Guerra Civil Espanhola / Rafael H. Quinsani
Uma das grandes marcas do Século XX é a sua relação com a guerra. Não há como o historiador entender o Século XX –independentemente de sua posição social ou geográfica no mundo –se fechar os olhos para esse fenômeno sempre revestido de violência e de crueldade, pois a guerra é capaz de despertar o lado mais sombrio do ser humano. O maior historiador do (e sobre o) Século XX, Eric Hobsbawm, assim sinaliza a importância da guerra para esse século:
Não há como compreender o Breve Século XX sem ela. Ele foi marcado pela guerra. Viveu e pensou em termos de guerra mundial, mesmo quando os canhões se calavam e as bombas não explodiam. Sua história e, mais especificamente, a história de sua era inicial de colapso e catástrofe devem começar com a da guerra mundial de 31 anos [1].
Além da guerra, o Século XX é também o século por excelência do Cinema. É nesse século que ele se desenvolve tanto em suas técnicas quanto em suas temáticas. Inclusive, é nesse século que é utilizado também como elemento de propaganda, tanto de regimes políticos quanto de modos de vida.
O encontro entre a Guerra e o Cinema no Século XX, então, era só uma questão de tempo:
Assim, a guerra frequentou o cinema intensamente, desde suas origens, ora sob a forma de cinejornal –poucas vezes diferenciado da propaganda política de cunho nacionalista –ora como ficção, celebrando o heroísmo nacional e a tragédia grandiosa da guerra. Algumas vezes, o cinema assumiu, de modo claro, um papel fortemente pacifista, de combate e denúncia contra a guerra, pensada enquanto irrazão [2].
Quando Hobsbawm se reporta a uma guerra mundial de 31 anos, ele quer evidenciar que há um processo de continuidade entre 1914 e 1945. Imediatamente, podemos pensar que ele se refere à Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Mas podemos depreender que ele possa estar, também, se referindo a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) dentro desse processo de continuidade. Afinal, não são poucos os historiadores que percebem o conflito da Espanha como um prelúdio da Segunda Guerra Mundial.
Um historiador que assim percebeu a Guerra Civil Espanhola, ressaltando seu caráter de “microcosmo global, pois sintetizava o radicalismo e a polarização de uma era” é Rafael Hansen Quinsani, emseu livro A Revolução em Película. [3] Logo na introdução, é realizada uma síntese eficiente do conflito entre republicanos e nacionalistas, capaz de permitir que mesmo o leitor não especialista na temática tenha uma boa noção do que representavam os dois projetos em disputa na Guerra Civil.
O autor examina, com uma riqueza de detalhes ímpar, a partir de seu método de análise histórico-cinematográficotrês filmes realizados na década de 1990: duas produções espanholas (!Ay, Carmela!, de Carlos Saura e Libertárias, de Vicente Aranda) e uma produção britânica (Terra e Liberdade, de Ken Loach). Muito mais que um historiador que comenta filmes, Quinsani, a partir de sua metodologia de trabalho, obtém uma nova forma de escrita da História, realizada a partir de três eixos articulados entre si: o cinema nahistória, a história nocinema e a história docinema. Para tanto, o autor examina alguns vestígios:
A anotação dos diálogos permitiu a análise do conteúdo histórico de cada fala e de cada personagem. Os diálogos mais irônicos de Libertárias e! Ay, Carmela! ocorrem pela formação dos cineastas espanhóis e pela maior incidência do caráter tragicômico na cultura espanhola como um todo. A anotação dos ângulos de câmera, os planos utilizados, os movimentos empregados e os recursos fotográficos presentes, permitiram o uso do plano geral para enquadrar ambientes naturais e coletividades humanas, como manifestações, reuniões e desfiles presentes nos três filmes. A alternância de planos médios e planos americanos é o que mais ocorre nos filmes. O uso do primeiro plano, o close-up, é empregado para destacar algum objeto (a carteira do Partido Comunista rasgada por David) ou alguma expressão facial (os olhos de Durruti). […] Libertárias, dentre os três, é o que mais apresenta movimentos de câmera, travellingse panorâmicas, ressaltando o caráter dinâmico da narrativa. !Ay, Carmela! também utiliza bastante movimento de câmera, mas concentrado em espaços fechados. Esta é a película que utiliza mais recursos de iluminação direcionados na composição dos personagens. O uso do claro-escuro é empregado em diversos momentos e diferencia-se do tom mais cru utilizado nos outros dois filmes. O emprego do som é utilizado de forma sincrônica à linguagem visual, sendo que algumas vezes ocorre uma transposição para o emprego ilustrativo. Somente Terra e Liberdadeutiliza narração em off, do próprio protagonista, destacando duas instâncias temporais e operando sobre o espectador uma dupla imersão: no passado representado, e no presente em que assiste a esta representação [4].
Assim como duas são também as críticas a serem realizadas perante todo e qualquer vestígio do passado: a crítica interna, capaz de avaliar o significado da fonte histórica; e a crítica externa, na qual se busca a melhor orientação acerca das condições de produção da fonte que “necessariamente está divulgando uma ‘mensagem’, uma interpretação da realidade, uma visão de mundo que pertence ao seu autor. Este é, por sua vez, o resultado de múltiplas e incontáveis relações sociais que remetem para a sociedade onde foi realizada a produção cinematográfica” [5].
Assim, é importante lembrarmos, que os três filmes são realizados na década de 1990, um período no qual a democracia voltou à Espanha após mais de 35 anos de ditadura franquista. [6] Em 1978, três anos após a morte de Francisco Franco, foi estabelecida a Monarquia Parlamentar. Quatro anos após, portanto em 1982, o Partido Socialista Operário Espanhol assumiu o poder político na Espanha. Desse período para cá, muito se debateu acerca da Guerra Civil Espanhola e do Franquismo naquela sociedade, e a produção dos filmes analisados certamente contribuiu para essas discussões. E isso não escapa ao autor, que é capaz de perceber todo o componente político que subjaz a época na qual as pessoas foram aos cinemas assistir !Ay, Carmela!, Terra e Liberdade e Libertárias:
A transição foi baseada numa anistia progressiva, onde o Franquismo se transformou e se adaptou à persistência das elites. A lei da Anistia deixou impunes os autores dos crimes de lesa humanidade, pois buscou silenciar o passado embasado numa hipótese de culpa coletiva [7].
A teoria dos dois demônios é muito propagada na sociedade: está fundamentada na noção –difundida pelos que deram o golpe –de que eventuais “excessos” cometidos pelas forças estatais se justificam em razão de evitar um “mal maior”, quase sempre associado com o comunismo. Não se menciona, no entanto, que houve o aparelhamento do Estado por longos anos de ditadura censurando obras da cultura e mesmo a imprensa, prendendo adversários que muitas vezes sequer desenvolviam atividades que poderiam ser consideradas “subversivas”, obtendo confissões à base de torturas, desaparecendo para sempre com pessoas que contestavam a força dos quartéis.
Que conste que o país em questão ainda é a Espanha. Por mais que eu esteja escrevendo essa resenha em março de 2014. E por mais que você, no Brasil, conheça bem de perto essa História!
Notas
- HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos–O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 30.
- TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. Guerras e Cinema: um encontro no tempo presente. In: Tempo. Revista do Departamento de História da UFF. Niterói: 7 Letras, Vol. 8, nº 16, 2004, p. 95.
- QUINSANI, Rafael Hansen. A Revolução em Película: uma reflexão sobre a relação Cinema-História e a Guerra Civil Espanhola. São José dos Pinhas: Estronho, 2014, p. 13.
- QUINSANI, op.cit., pp. 154-5. Interpolações minhas.
- GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. Prefácio –História e Cinema, Noves Fora? In: GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos (org.). A Prova dos 9: a História Contemporânea no Cinema. Porto Alegre: EST, 2009, p. 11.
- Para entender as bases de sustentação de uma ditadura tão longa, o trabalho de Francisco Calero é bastante oportuno. CALERO, Francisco Sevillano. A “cultura da guerra” do “novo Estado” espanhol como princípio de legitimação política. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (orgs.). A Construção Social dos Regimes Autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, Vol. 1, pp. 257-282.
- QUINSANI, op. cit., p. 160.
Charles Sidarta Machado Domingos – Instituto Federal Sul-rio-grandense (IFSUL) – Campus Charqueadas
QUINSANI, Rafael Hansen. A Revolução em Película: uma reflexão sobre a relação Cinema-História e a Guerra Civil Espanhola. São José dos Pinhais: Estronho, 2014. 224p. Resenha de: DOMINGOS, Charles Sidarta Machado. História histórias. Brasília, v.2, n.3, p.191-194, 2014. Acessar publicação original. [IF]
Estudos Feministas e de Gênero / Cristina Stevens, Susane R. Oliveira e Valeska Zanello
Entre os dias 28 e 30 de maio de 2014 foi realizado na Universidade de Brasília (UnB) o II Colóquio de Estudos Feministas e de Gênero: Articulações e Perspectivas. O evento, de caráter interdisciplinar, recebeu pesquisadoras/es de diversos lugares do país e contou com a apresentação de inúmeros trabalhos que tem como foco as mulheres, os feminismos, a sexualidade, as identidades e relações de gênero. Os trabalhos apresentados por professoras/es e pesquisadoras/es doutoras/es nas sessões de conferência e mesas redondas foram selecionados, avaliados e reunidos em um livro digital, organizado pelas professoras Cristina Stevens, Susane Rodrigues de Oliveira e Valeska Zanello. Este livro, intitulado Estudos Feministas e de Gênero: Articulações e Perspectivas, lançado em 2014 pela Editora Mulheres de Santa Catarina, contou também com o apoio da CAPES, da Universidade Livre Feminista e do CFEMEA. A obra está disponível gratuitamente para download, em formato PDF, no site do CFEMEA e do Colóquio (www.coloquiofeminista2014.com).
A realização desse Colóquio e, consequentemente, a publicação dessa obra, evidenciam que os questionamentos feitos pelos movimentos sociais continuam em vigor. Ao conquistar espaço no universo acadêmico, as reivindicações feitas por ativistas e simpatizantes encontram a oportunidade de não apenas contestar o que ocorre nas ruas e na vida cotidiana, mas também o que ocorre dentro das Universidades. Dessa forma, são apresentados novos pontos de vista e novos saberes que certamente contribuirão para a renovação das ciências. Os textos reunidos nessa coletânea seguem a tendência da intersecionalidade ao trabalhar, também, com questões raciais e de classe, tão discutidas atualmente pelos feminismos. Segundo as próprias organizadoras,
A surpreendente conclusão que podemos tirar a partir da leitura desses textos multifacetados é a de que as perspectivas feministas e de gênero nas produções acadêmico-culturais são bastante diversas em suas articulações com questões de raça, etnia, geração, sexualidade, religião, classe, dentre outras. Os textos que integram este livro incorporam novos idiomas críticos, visões políticas e ferramentas teórico-metodológicas na abordagem do binômio Feminismos-Gênero em áreas diversas como Antropologia, Artes, Cinema, Direito, Educação, Filosofia, Física, História, Literatura, Psicologia, Publicidade e Sociologia. Sem dúvida, os trabalhos são testemunhos positivos do dinamismo promissor desta relativamente recente área de estudos, experiências e práticas acadêmico-culturais [1].
O livro apresenta quarenta e sete capítulos e está dividido em sete partes, sendo elas: 1) Perspectivas feministas na pesquisa acadêmica; 2) Corpo, violência e saúde mental; 3) Mulheres e literatura: do medievo à contemporaneidade; 4) Educação, ciência e diferenças de gênero; 5) Imagens, cinema, mídia e publicidade; 6) Ações, direitos e políticas; 7) Identidades, experiências e narrativas.
A primeira parte da obra apresenta os textos de cinco conferencistas brasileiras que possuem larga experiência de pesquisa e produção intelectual feminista, são elas Débora Diniz, Susana Funck, Tania Swain, Sônia Felipe e Sandra Azerêdo. Débora Diniz apresenta as “Perspectivas e articulações de uma pesquisa feminista”. A autora defende que o gênero é um regime político que encontra na família sua instituição reprodutora e cuidadora. Diniz também recupera o conceito de patriarcado tratando-o como uma tecnologia moral. Segundo ela, é possível retomar esse conceito e ser sensível “às expressões locais de sua governança pelo presente histórico” [2]. Com isso, a autora propõe que toda pesquisa sobre gênero será feminista, uma vez que tal empreendimento é capaz de desafiar o regime político de sexagem dos corpos.
Susana Funck fala dos desafios atuais dos feminismos, com ênfase nos estudos literários e culturais e suas influências em outros campos do saber. Desse modo, a autora ressalta que, embora, muitas das agendas feministas já estejam incluídas nos estudos acadêmicos e nos movimentos sociais de grande parte das nações contemporâneas, suas metas de igualdade e diversidade ainda estão longe de serem alcançadas. Nesse sentido, observa que um dos maiores desafios talvez seja o de desmistificar a prática feminista como uma unanimidade monolítica e fazer valer as várias facetas da categoria gênero, perpassadas como são por vetores de raça, classe, nacionalidade, sexualidade, faixa etária e tantas outras diferenças.
A historiadora Tania NavarroSwain, em seu texto “Por falar em liberdade…”, analisa os dispositivos que se colocam em ação para sustentar a diferença sexual, os chamados subsistemas constitutivos do patriarcado. Segundo a autora, a diferença sexual, que é implantada no imaginário ena materialidade de corpos sexuados, constitui motor de ação patriarcal e exercício de poder. Assim, destaca que o patriarcado se impõe pela violência, pela persuasão/amor e por uma sexualidade que se impõe como centro identitário e de significação do ser.
A filósofa Sônia Felipe apresenta uma importante reflexão sobre o feminismo antiespecista. Nesse caso, o termo “especismo” pode ser compreendido como similar ao “machismo” e ao “racismo”. O termo foi elaborado pelo cientista e filósofo inglês Sir RichardRyder ainda o século XX para descrever a discriminação e exploração perpetradas pelos seres humanos contra outros animais sencientes. Para Ryder, usar, “abusar, explorar e matar animais para consumo e divertimento humano é uma forma de posicionar os seres humanos acima de todos os animais e de alimentar o padrão machista e racista que rege as relações de poder entre os humanos”. Por fim, Sônia Felipe propõe como opção ética uma perspectiva ecoanimalista do feminismo, afinal “Os machistas tratam as mulheres de forma especista: como animais. E as mulheres, incorporando e emulando o mesmo especismo, tratam os animais como matéria destituída de espírito, portanto, inferiores” [3].
Já a psicóloga Sandra Azeredo, no texto “O que é mesmo uma perspectiva feminista de gênero?”, destaca que o gênero, como uma categoria central na teorização feminista que problematiza as noções de sexo e sexualidade, tem necessariamente que incluir outras categorias, especialmente a categoria raça, em suas teorizações, de modo a contribuir para práticas de emancipação. No encerramento do texto a autora ressalta que
(…) uma perspectiva feminista de gênero significa partir da igualdade, nos abrindo para o encontro com as outras pessoas (inclusive os animais não humanos), com respeito, nos rendendo, mútua e voluntariamente, aos ditames da intersubjetividade [4].
A segunda parte do livro reúne os textos de Érica Silva, Gislene Silva, Valeska Zanello, Ionara Rabelo, Marcela Amaral, Ana Paula de Andrade, Gláucia Diniz e Cláudia Alves. Trata-se de estudos desenvolvidos no campo da psicologia e da literatura, sobre a saúde mental feminina. No texto “Gênero e loucura: o caso das mulheres que cumprem medida de segurança no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios”, Érica Silva analisa os casos de dezesseis mulheres que cumprem medida de segurança no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. A autora destaca a prevalência de mulheres pobres, de baixa escolaridade, negras e pardas que estão sob a tutela do Estado. Por terem algum transtorno mental –geralmente em decorrência do uso de álcool e/ou drogas –, elas são consideradas inimputáveis ou semi-inimputáveis pela Justiça e destinadas à Ala de Tratamento Psiquiátrico localizada na Penitenciária Feminina do Gama, ou ao tratamento ambulatorial na rede pública e privada de saúde. Silva faz importantes questionamentos sobre o tratamento dado a essas mulheres que se encontram em um contexto de marginalidade e invisibilidade na sociedade brasileira. Por sua vez, o texto de Ana Paula de Andrade tem o objetivo de problematizar os atravessamentos das questões de gênero na política pública de saúde mental em seus diferentes níveis. Já o texto “Saúde mental, mulheres e conjugalidade”, de Valeska Zanello, ao tratar do caso clínico de uma mulher internada em um hospital psiquiátrico, cujo sintoma que se destacou foi “choro imotivado”, busca apontar o que a chancela do diagnóstico psiquiátrico “depressão” escondia.
A terceira parte, “Mulheres e literatura: do medievo à contemporaneidade”, reúne textos de Cíntia Schwantes, Cristina Stevens, Janaina Gomes Fontes, Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne, Virgínia Maria Vasconcelos Leal, Wiliam Alves Biserra e Nadilza Martins de Barros Moreira. O texto de Cristina Stevens avança, especialmente, no debate e reflexão sobre as representações literárias da violência contra as mulheres; focalizando a mudança radical de tratamento desta temática na contemporaneidade, quando as mulheres assumem a posição de sujeito dessas construções ficcionais e abordam o tema da violência como consequência da injusta dominação masculina na produção do conhecimento. Sobre as mulheres na literatura, Nadilza Moreira tece um esboço comparativo entre as obras de Nísia Floresta e Júlia Lopes de Almeida, ambas reconhecidas pelo pioneirismo na luta feminista ainda no século XIX. Em seu trabalho, Moreira vai elucidar que diversas mulheres do Brasil oitocentista se dedicavam à atividade intelectual e à escrita, inclusive resistindo às campanhas contrárias dos homens escritores que temiam a concorrência. Ao concluir, Moreira faz uma provocação: que mulheres como Nísia Floresta e Júlia Lopes de Almeida continuem sendo redescobertas pela Academia, pois elas “aguardam por mentes laboriosas, por pesquisadores desafiadores que queiram lhes dar a devida relevância, para colocá-las visíveis nas prateleiras da contemporaneidade” [5].
A participação feminina na educação e as questões de gênero nas ciências, especialmente nas disciplinas de física e história, são exploradas na quarta parte do livro. Diva Muniz, no texto “Memórias de uma menina bem comportada: sobre a experiência da alfabetização e a modelagem das diferenças”, apresenta uma análise de suas próprias experiências vividas na infância, nos anos cinquenta, no processo de alfabetização. Muniz revoluciona a narrativa historiográfica ao se colocar como sujeito da própria história, utilizando a própria memória para fazer considerações sobre todas as “tecnologias de gênero” que estiveram presentes em sua vida, bem como as formas de subversão e resistência à própria realidade. Assim escreve a autora,
Submetida a esse processo de disciplinarização escolar, fui sendo “fabricada” como menina educada e aluna aplicada aos estudos. Apesar e por conta desse processo, também me produzi como pessoa crítica, questionadora e independente e até mesmo impertinente. Afinal, somos assujeitadas às prescrições sociais e escolares, mas nunca de modo pleno: resistimos, negociamos, agenciamos outros termos, condições, posições e alianças; fazemos escolhas e recusas na constituição de nossas histórias e na configuração de nossas subjetividades [6].
Valéria Silva, com base nas teorias feministas, analisa as representações das mulheres nos livros didáticos escolares. Por sua vez, Susane Oliveira trata de questões relacionadas à inclusão da história das mulheres nos currículos escolares, atentando para as demandas dos movimentos feministas e delineando algumas propostas para a efetivação dessa inclusão, tendo em vista o potencial educativo da história das mulheres na promoção da cidadania e igualdade de gênero. A autora aponta que, para os avanços existentes ocorrerem, como no caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), foi necessária a mobilização dos movimentos sociais no processo. No caso do ensino da história,
Tais mudanças, somadas às inovações que ocorreram na historiografia e nas tendências pedagógicas na segunda metade do século XX, impuseram à história, enquanto disciplina escolar, um papel fundamental no reconhecimento e valorização das identidades e memórias de diferentes grupos sociais, especialmente daqueles que haviam sido marginalizados e/ou silenciados nos discursos históricos tradicionais, como as mulheres, os jovens, os trabalhadores, as crianças, os idosos, as etnias e minorias culturais [7].
Patrícia Lessa analisa os escritos da educadora Maria Lacerda de Moura, produzidos na primeira metade do século XX, cujas ideias sobre a libertação das mulheres e dos animais não humanos é bastante atual. O texto de Ademir Santana analisa a participação masculina no movimento feminista a partir de experiências na Física. Já Adriana Ibaldo versa sobre a desigualdade de gênero nas ciências exatas e a dificuldade que as mulheres precisam enfrentar para permanecerem na área. A autora apresenta dados sobre a produtividade feminina na física, que ainda é tímida –entre 6% e 25% –e relembra as situações cotidianas que podem levá-las à interrupção da carreira nos mais diversos níveis, como o machismo arraigado em ambientes majoritariamente masculinos e o estereótipo de que mulheres são inaptas às ciências exatas. Para a transformação desse cenário, a autora propõe medidas que incentivem o ingresso de jovens alunas aos cursos de física, como o projeto Atraindo meninas e jovens mulheres do Distrito Federal para a carreira em física, financiado pelo CNPq com foco em estudantes do Ensino Médio da rede escolar.
A quinta parte do livro, “Imagens, cinema, mídia e publicidade”, reúne oitos textos. O primeiro, de Maria Pereira analisa imagens de mulheres artistas no ocidente medieval. O texto de Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro dedica-se às representações imagéticas de mulheres negras no Brasil oitocentista em “Corpos negros no/do feminino em três movimentos: um exercício de (des) construção” analisando três imagens da época: duas fotografias e um quadro. Em seu trabalho, Carneiro tece importantes considerações sobre a intersecionalidade entre gênero e raça e como os corpos das mulheres negras eram representados no século XIX. Suas palavras elucidam que no interior dessa maquinaria “política ocidental corpos negros e cativos exibem marcas de sexo-gênero e de raça, extraídas e significadas como diferenças construídas na arquitetura da dominação do patriarcado escravocrata” [8]. Os textos de Liliane Machado, Mônica Azeredo e Sulivan Barros analisam as perspectivas de gênero nas produções audiovisuais (filmes e documentários). Os textos de Sandra Machado, Ana Veloso e Cynthia debatem os processos sociais engendrados pela publicidade e propaganda que tornam as mulheres imagens-espetáculo, fetiches e objetos de consumo, impondo padrões de comportamento e preconceitos socioculturais que esvaziam o sentido político das contestações dos grupos feministas.
A sexta parte do livro apresenta seis textos que versam sobre direitos e políticas públicas para as mulheres, desenvolvidos pelas/os autoras/es Ela Wiecko, Soraia da Rosa Mendes, Wanda Miranda Silva, Camila de Souza Costa e Silva, Lourdes Maria Bandeira, Tânia Mara Almeida, Carmen Hein de Campos, Ana Liési Thurler, Sônia Marise Salles Carvalho, Nelson Inocêncio, Umberto Euzébio e José Zuchiwschi. Os textos, das oito primeiras autoras, abordam, teórica e empiricamente, estratégias atuais de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres brasileiras, a partir de um campo interdisciplinar de conhecimentos científicos, redes interinstitucionais e movimentos sociais. São discutidas abrangências e limitações na aplicação da Lei Maria da Penha frente a paradigmas, valores e práticas fundadas em representações sexistas, bem como em identidades essencializadas e referenciadas pela articulação de múltiplas desigualdades (grupos de mulheres indígenas, pobres, negras, dentre outros). Já o texto de autoria dos quatro últimos autores/as, mencionados acima, trata da proposta da Universidade de Brasília na criação da Diretoria da Diversidade no Decanato de Assuntos Comunitários, que propõe reforçar o direito à diferença e o respeito à diversidade na comunidade acadêmica.
Já a sétima e última parte da obra, intitulada “Identidade, experiências e narrativas”, reúne os textos de Águeda Aparecida da Cruz Borges, Juliana Eugênia Caixeta, Lia Scholze, Maria do Amparo de Sousa, Lia Scholze, Cláudia Costa Brochado, Gilberto Luiz Lima Barral e Tania Swain. O texto de encerramento, “Histórias feministas, história do possível”, de Tania Navarro Swain expõe uma crítica às narrativas historiográficas que muitas vezes silenciam e excluem a participação feminina na história. Sua proposta se baseia em resgatar as histórias que, apesar de possuírem vestígios materiais e simbólicos, foram negligenciadas pelos historiadores. Segundo ela, esses profissionais “enclausurados em um imaginário androcêntrico, não conseguem pensar e nem ver aquilo que se abre à pesquisa, um mundo onde o feminino atuava como sujeito político e de ação” [9].
Enfim, a obra Estudos feministas e de gênero: articulações e perspectivas reúne uma amostra bastante significativa da produção intelectual feminista que vem se desenvolvendo nas universidades brasileiras, nas mais diversas áreas de conhecimento. Trata-se de uma produção reveladora da dimensão política dos estudos feministas e de gênero, que contribui não só na denúncia e crítica às desigualdades de gênero presente nos mais diversos espaços sociais, mas também na renovação dos saberes, oferecendo novos horizontes de expectativas à produção científica.
Notas
- STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Estudos Feministas e de Gênero: Articulaçõese Perspectivas. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 2014, p. 9.
- DINIZ, Débora. Perspectivas e articulações de uma pesquisa feminista. In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 12.
- FELIPE, Sônia. A perspectiva ecoanimalista feminista antiespecista. In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 59.
- AZEREDO, Sandra. O que é mesmo uma perspectiva feminista de gênero? In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 84.
- MOREIRA, Nadilza Martins de Barros. Os manuais femininos/feministas de Júlia Lopes de Almeida dialogam com “(…) uma alma brasileira” de Nísia Floresta: esboço comparativo. In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 249.
- MUNIZ, Diva do Couto Gontijo. Memórias de uma menina bem comportada: sobre a experiência da alfabetização e a modelagem das diferenças. In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 260.
- OLIVEIRA, Susane Rodrigues de. Ensino de história das mulheres: reivindicações, currículos e potencialidades pedagógicas. In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 260.
- CARNEIRO, Maria Elizabeth Ribeiro. Corpos negros no/do feminino em três movimentos: um exercício de (des)construção. In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 356.
- SWAIN, Tânia Navarro. Histórias feministas, história do possível. In: STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Op. Cit., p. 613.
Ana Vitória Sampaio Castanheira Rocha – Doutoranda em História na Universidade de Brasília.
STEVENS, Cristina; OLIVEIRA, Susane Rodrigues de; ZANELLO, Valeska (org.). Estudos Feministas e de Gênero: Articulações e Perspectivas. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 2014. 620p. Resenha de: História histórias. Brasília, v.2, n.4, p.200-206, 2014. Acessar publicação original. [IF]
História, histórias | UnB | 2013
História, histórias (Brasília, 2013-) é uma publicação do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília (PPGHIS/UnB). De acesso livre e gratuito, publica semestralmente artigos, traduções, entrevistas e resenhas em português, inglês, espanhol e francês.
Sua missão é ser um canal relevante de difusão de pesquisas científicas no campo da História, no país e no exterior. O título abreviado do periódico é RHH, forma preferencial para menções em bibliografias, notas de rodapé, referências e legendas bibliográficas.
Periodicidade semestral.
Acesso livre
ISSN 2318-1729
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Governadores Gerais do Estado do Brasil (séculos XVI-XVIII) / Francisco C. Cosentino
Há um aspecto da carreira profissional de Cosentino que merece ser destacado logo àpartida: desde 1974 dedica-se à atividade docente, há mais de vinte anos ao ensino superior. Este dado não é irrelevante, pois nos ajuda a entender porque o autor deste livro, cujas qualidades trataremos de explicitar, não ganhou até agora a visibilidade que acreditamos merecer. Sua opção pessoal, como ele mesmo denomina, parece ter determinado que produzisse relativamente pouco em termos quantitativos, o que não deixamos de lamentar, já que seu texto não esconde sua habilidade para a investigação histórica. Para além deste livro que agora mencionamos, Cosentino contribuiu com um artigo na tão reverenciada e citada coletânea de textos intitulada Modos de Governar, publicada em 2005, e, um ano depois, com um artigo na Revista Cronos. Ao menos é o que podemos saber sobre sua obra, citada nas referências bibliográficas deste livro, uma vez que os instrumentos virtuais de busca, que usualmente fazemos uso para desvendar a trajetória das pessoas, não contribuem para sabermos algo mais.
Este livro, lançado em julho de 2009, é a sua tese de doutorado apresentada na Universidade Federal Fluminense, sob a orientação da professora Dra. Maria de Fátima Gouvêa que, infelizmente, não pode ver publicada a pesquisa de um orientando que incorpora, e dialoga constantemente, com sua perspectiva historiográfica. O objeto de investigação em causa, tal como o título anuncia, é o ofício dos governadores gerais do Estado do Brasil e suas respectivas trajetórias administrativas e sociais, dando assim continuidade, e também aprofundamento, às investigações de seus textos anteriores. Cosentino dedicou-se a analisar cinco dos governadores gerais nomeados ao longo dos séculos XVI-XVII: Tomé de Sousa, Francisco Giraldes (que não chegou a ocupar o cargo), Gaspar de Sousa, Diogo de Mendonça Furtado e Roque da Costa Barreto; três dos quais durante o período filipino.
Conforme anuncia em sua introdução, o livro está dividido em três partes. Na primeira, aborda a monarquia portuguesa no período em questão, enfatizando, sobretudo, sua natureza corporativista, jurisdicional e polissinodal. Aspectos essenciais são tratados de forma sintética e com tal clareza que por vezes somos levados a pensar que não se tratam de assuntos complexos. Preocupado em evidenciar a historicidade dos conceitos, dialoga principalmente com o que há de mais recente na historiografia luso-brasileira, mostrando o atual estado da investigação acadêmica sem deixar de mencionar, e muitas vezes criticar, interpretações anteriores sobre conceitos como absolutismo, Estado moderno e soberania. O debate historiográfico ganha destaque nestas primeiras páginas, embora deixe de lado aquele que dividiu a historiografia brasileira no que se refere à pertinência do emprego do conceito e da idéia de Antigo Regime para se analisar a realidade americana. Se assim o faz, estamos certos que não é por receio de se posicionar. Acreditamos que apenas poupou o leitor de ler mais uma vez sobre uma polêmica que, dada à dimensão que ganhou, não só na academia como nos meios midiáticos, é mais do que conhecida. Orientado por quem foi, não esconde sua filiação ao que podemos chamar “Escola do Rio de Janeiro”, que tem nos trabalhos de António Manuel Hespanha uma de suas principais referências. Cosentino analisa a América portuguesa não como um reflexo da realidade européia. Busca suas especificidades tendo, no entanto, o modelo social e político europeu como eixo analítico. Mais um ponto a seu favor.
Ainda nesta primeira parte, aplica-se a descrever o contexto que convencionamos denominar de União Ibérica, analisando a integração do Reino português ao de Castela e a repercussão deste modo castelhano de se fazer política na monarquia portuguesa após a Restauração. A nosso ver, merece referência especial o belíssimo capítulo sobre a natureza e os poderes dos governadores gerais do Estado do Brasil, não só porque aqui se evidencia a tese central do livro: “a natureza superior e régia do poder” dos mesmos, (p.101) tão clara, por exemplo, nas cerimônias de posse e nos regimentos destes governadores. O que nos entusiasmou, especialmente, foi sua preocupação com a história administrativa, discorrendo sobre pontos, como a teoria dos ofícios, que raramente merece atenção da historiografia atual, como bem notou Hespanha ainda na década de 80 ao se referir às lacunas que naquela época, mas também nesta, existem no que se refere à historia institucional.
No entanto, a partir da página 102, quando tem início a segunda parte intitulada “Carreiras e trajetórias sociais de governadores gerais do Estado do Brasil (séculos XVI e XVII)”, nosso acentuado entusiasmo foi atenuado. É certo que não desconsideramos a relevância em se fazer referência às inúmeras mercês régias conquistadas por estes cinco governadores gerais para comprovar a importância social destes indivíduos e a superioridade do cargo, provido apenas a fidalgos. Porém, a enumeração detalhada das mercês conquistadas, assim como o excesso de citações documentais e bibliográficas no corpo do texto ou em notas de rodapé, torna a leitura cansativa. Talvez, devemos dizer, esta é a parte menos original deste trabalho, e não estamos certos de que embora ajude a reforçar a importância da economia das mercês na monarquia portuguesa é a principal contribuição de sua pesquisa, como diz no último parágrafo do livro. Isto porque ultimamente proliferam estudos na área de história social que recorrem ao método da prosopografia reconstituindo trajetórias individuais, com base em documentação similar.
Ainda nesta segunda parte, o autor acaba por realizar uma versão comentada de seu próprio texto. Cada termo historicamente datado é referido em nota de rodapé a verbetes do dicionário de Bluteau, publicado somente no século XVIII, quando sabemos que Cosentino dedica-se à análise dos dois séculos precedentes. Estranha opção de quem, no inicio do livro, revelou suas preocupações teóricas com o uso dos conceitos na acepção dada à época. As afirmativas que apresenta no corpo do texto, mesmo quando corroboradas por transcrições de trechos da historiografia, ganham novas e longas citações bibliográficas nas notas de rodapé. Se este recurso revela um comportamento acadêmico virtuoso de não tomar para si ideias já anteriormente defendidas, bastaria citar as obras, sem necessidade de abusar das recopilações de textos que normalmente pouco acrescentam ao que encontramos na leitura de Cosentino.
Mas o livro volta a ganhar grande interesse na terceira parte, dedicada à atuação do oficio dos governadores gerais, analisada, sobretudo, a partir dos regimentos que deveriam nortear suas condutas. Aqui vemos comprovada outra ideia anunciada anteriormente: a de que os documentos normativos estavam também em consonância com as circunstâncias da época e que a monarquia, não obstante pretendesse garantir uma governação continuada, expressa através do cargo de governador geral, estava atenta à realidade americana. Por esta razão é que a estes agentes régios delegou a atribuição crescente de resolver problemas próprios de cada período, os quais poderiam ameaçar o sucesso da administração portuguesa na América. No entanto, seria preciso saber em que medida estes governadores administraram em conformidade com os regimentos especialmente produzidos para que agissem como era esperado. Seria preciso alargar o horizonte de pesquisa e analisar também a prática governativa para entender quais foram, de fato, os espaços de atuação que encontraram ou mesmo se obstáculos diversos, como o conflito de jurisdições, impossibilitaram o sucesso de seus governos. Cosentino dedica a este ponto poucas páginas, mas esta deficiência é de seu conhecimento, e não esconde as limitações que seu trabalho apresenta, ao menos neste aspecto.
De qualquer forma, os interessados em conhecer a história administrativa da América portuguesa nos séculos XVI-XVII encontram neste livro uma enorme contribuição, com informações ricas, cuidadosamente trabalhadas, às vezes, como dissemos, exaustivamente. Mas não podemos ver nisso um ponto desfavorável. Fiel a sua atividade docente, Cosentino produz uma obra que parece ser dedicada aos alunos de graduação em História, que estão começando a entender não só o contexto destes dois séculos, mas também como é pensar como historiador. E neste sentido, a franqueza intelectual do autor auxilia-os imensamente, pois a cada página acompanhamos o percurso que orientou o autor na produção deste livro, que tem uma hipótese claramente anunciada, e consistentemente comprovada quanto “à posição protagônica desempenhada por esses servidores maiores da monarquia portuguesa nessa parte da América portuguesa”, o Estado do Brasil (p.334).
Enfim, uma ótima opção a outros professores que desejam apresentar aos seus alunos um texto agradável e extremamente importante, em diversos pontos. Mas uma ótima leitura também para os acadêmicos, pois as contribuições desta obra não se limitam à forma de expor e comprovar sua tese, mas a tese em si, que contraria a interpretação de que o papel dos governadores gerais praticamente se resumia a uma dimensão simbólica. Eles não eram apenas fidalgos que encontravam nas terras americanas uma possibilidade servir ao Rei para assim aumentarem a importância de suas casas. Como mostra Cosentino, acabaram também por contribuir para a administração dos domínios da América, e com protagonismo.
Roberta Giannubilo Stumpf – Centro de História de Além-Mar. Universidade Nova de Lisboa.
COSENTINO, Francisco Carlos. Governadores Gerais do Estado do Brasil (séculos XVI-XVIII). Ofícios, regimentos, governação e trajetórias. São Paulo/ Belo Horizonte: ANNABLUME/ FAPEMIG, 2009, 366p. Resenha de: STUMPF, Roberta Giannubilo. História histórias. Brasília, v.1, n.1, p.227-230, 2013. Acessar publicação original. [IF]