História em Quadrinhos em perspectiva histórica / História, Histórias / 2016

Apresentação

De mídia desacreditada à forma de expressão cult, muita coisa aconteceu com as histórias em quadrinhos (HQs). O fato é que a indústria cinematográfica, editoras e a internet se renderam aos quadrinhos nos últimos anos. E assim também a academia. Certamente tal fato não é de todo novo: desde os anos 1960 os quadrinhos já chamavam a atenção de nomes como Umberto Eco, Luc Boltanski, Marshall McLuhan e Pierre Bourdieu. Neil Gaiman relembra com certo cinismo e ironia “(…)[d]aqueles remotos dias de felicidade e prosperidade antes de cada Universidade ter um curso sobre ‘O Romance Gráfico’[1]”.

O estabelecimento dos quadrinhos enquanto tema de estudos na universidade é bem claro no hemisfério norte. Todos os componentes usualmente esperados para o reconhecimento acadêmico e social de uma área de estudos podem ser encontrados. Nos mundos anglo-saxão e franco-belga, encontram-se pesquisadores que se reconhecem como comics scholarse que integram uma comunidade acadêmica de comic studies, reunidos em associações [2] e contam com uma série de periódicos especializados em HQs [3]. Em 2009 foi lançado o primeiro reader sobre o tema, logo seguido por outros [4]. Editoras acadêmicas como University Press of Mississipi, Routledge e Palgrave Macmillian contam com séries exclusivamente dedicadas aos quadrinhos, contribuindo para boa parte da bibliografia sobre o tema que não para de crescer.

Acima de tudo, o melhor é constatar o esforço pelo estabelecimento de diálogo entre ambos os mundos. Isolados em outros contextos pela barreira linguística e mesmo pelos diferentes desenvolvimentos históricos que os quadrinhos tiveram em cada contexto, as redes comunicacionais e as interações internacionais contribuem para análises que buscam superar as barreiras nacionais. Destacam-seestudos que sugerem um olhar transnacional sobre os quadrinhos, buscando entender sua construção a partir das apropriações e usos que cada contexto proporciona a eles [5].

No Brasil, o cenário para os estudos de quadrinhos apresenta muitos desafios, mas as perspectivas são animadoras. Tal como lá, a interdisciplinaridade norteia as pesquisas sobre eles. Nos eventos e publicações especializados, não raro podem ser encontrados historiadores ao lado de críticos literários, estudiosos da comunicação, sociólogos ebibliotecários [6]. Além disso, o campo parece aberto às iniciativas que buscam pensar caminhos distintos para as análises sobre quadrinhos: crescem as publicações, interações entre pesquisadores e revistas acadêmicas dedicadas a eles.

Os desafios que se colocam possivelmente são os mesmos que se apresentam aos pesquisadores anglo-saxões e franco-belgas. No interior da interdisciplinaridade, como estabelecer as especificidades de cada disciplina quando o assunto são quadrinhos? Seria possível pensar em abordagens próprias a cada campo de saber sobre o tema? O que significa, em resumo, elaborar um problema sobre os quadrinhos –no caso do presente dossiê, sob um ponto de vista histórico?

Longe de ter qualquer interesse em responder de forma unívoca a tais perguntas, o dossiê “Quadrinhos em perspectiva histórica: temas e abordagens” busca sugerir algumas estratégias para historiadores interessados em enveredar por tal campo de estudos. Ao mesmo tempo, ele permite vislumbrar algumas das tendências e perspectivas presentes nos estudos de quadrinhos no Brasil, além de alguns desafios a serem enfrentados por pesquisas futuras. De início, cabe ressaltar a diversidade de vozes, resultado da integração entre diversos campos de saber: alguns historiadores, mas também pesquisadores da Comunicação, Filosofia, Teoria Literária e Sociologia, vindos de três das cinco regiões do Brasil, além de dois artigos internacionais.

Um primeiro aspecto que chama atenção é o fôlego crítico dos artigos, produzidos a partir de pesquisas em andamento ou concluídas em nível de pós-graduação. Possivelmente isso explica a quantidade de trabalhos que procuram discutir a historicidade da própria reflexão crítica sobre o tema. O artigo de Victor Callari (Unifesp/FMU) e Karoline Kuneida Gentil (Fecap) apresenta uma análise da recente produção acadêmica em diversas áreas do conhecimento a partir de levantamentos de dados quantitativos.

Outro conjunto de trabalhos problematiza aspectos teóricos ligados àquilo que, seguindo as leituras de Howard Becker e Bart Beaty, pode ser chamado de “mundo dos quadrinhos [7]”: a construção da ideia de “quadrinho autoral”, de “quadrinho adulto” e de “cânone” a partir da sua recepção. Tais são as leituras de Alexandre Linck Vargas (Unisul), Sylvain Lésage (Université de Lille III) e Sebastian Horacio Gago (CEA-UNC/Coniset), respectivamente. Os três artigos permitem vislumbrar uma compreensão do fenômeno histórico das HQs em escala global: enquanto Linck Vargas parte de um olhar panorâmico sobre contextos específico como os EUA, Japão, França e Brasil, Lésage se detém no caso francês dos álbuns de bande dessinée e sua relação com a “adultização” do leitor, ao passo que Gago prioriza a construção histórica do olhar sobre a obra de Héctor Oesterheld. Em comum, a necessidade de assumir um olhar que situe historicamente a produção e o consumo de HQs para além de leituras excessivamente formalistas, que perceba a historicidade dos discursos que buscam legitimá-la no mercado de bens culturais [8.]

Muita da reflexão recente sobre quadrinhos parte de questões políticas e culturais que se encontram no calor do momento. É daí que se observa a necessidade de os pesquisadores de HQs refletirem sobre o recente ataque terrorista à redação do hebdomadário francês Charlie Hebdo. Sob um olhar próprio da filosofia, Fabio Mourilhe (UFRJ) discute temas como morte, sagrado e a condição trágica da arte para sugerir uma leitura crítica em torno do acontecimento.

Outro tema sensível aos pesquisadores de HQs trata da questão da mulher. Polêmica e sempre retomada de forma problemática a cada nova representação (ou silenciamento) da condição feminina, motivou análises de dois artigos do dossiê. Valéria Fernandes da Silva (UnB) debate de forma propositiva as representações do feminino no shoujo mangá, entendendo as implicações editoriais e os limites e possibilidades de tal formato para o público feminino. A partir de uma série de tiras cômicas e outras imagens gráficas, Cintia Lima (UFSC) sugere a emergência de uma forma específica de humor, que classifica como “riso feminista”, caracterizado por “(…) questiona[r] o sistema patriarcal que promove uma cultura baseada na desigualdade e na exploração”.

Dois outros campos temáticos se encontram presentes no dossiê. O primeiro deles, representado pela análise de editoras e obras consideradas clássicas dentro do que usualmente se entende como “cânone” das HQs. Os formatos da tira, revista e da graphic novel são contemplados a partir de personagens e séries específicas. Dilbert é objeto de análise de Luiz Ricardo Linch (UFPR), preocupado em discutir seu potencial crítico sobre temas relacionados ao mundo do trabalho. A Marvel Comicsé discutida por Fábio Guerra (UFF), que parte de três personagens (Namor, Doutor Destino e Pantera Negra) para discutir temas como política e nação nos Estados Unidos. Sin Cityé o mote para Adérito Schneider (UFG) discutir o conceito de noir. Sua abordagem procura discutir a série em articulação com sua adaptação cinematográfica, mantendo o diálogo intermidiático entre quadrinhos e cinema, característica marcante do meio.

Como que indicando as possibilidades das HQs enquanto fontes históricas, os dois últimos artigos discutem temas distintos, ainda que ambos possam ser articulados em torno da questão da modernidade técnica. Historicamente forjadas a partir da integração dinâmica de diversas artes técnicas como a fotografia, o cinema e a publicidade [9], as HQs parecem estimular a análise da história da técnica. A tais temas, Rafael Venâncio (UFU) articula a análise da história do automobilismo enquanto categoria esportiva, discutindo como a velocidade e o esporte foram representados a partir da linguagem das HQs francesas, com ênfase no uso da ligne clairepara expressar maior realismo gráfico. Marilda Queluz (UTFPR) parte de um recorte preciso para analisar as Aventuras de Kaximbown, série de Yantok publicada na revista ilustrada brasileira O Tico-Tico. Por meio da análise de suas aventuras fantásticas, repletas de máquinas e artefatos técnicos, a autora sugere uma leitura original da Primeira República no Brasil.

O dossiê também conta com duas resenhas de trabalhos recentes relacionados aos estudos sobre HQs. Comics and the senses, de Ian Hague, é objeto de análise porIvan Lima Gomes (UEG); Maycon André Zanin (Unicentro) resenha a coletânea Representações do feminino nas histórias em quadrinhos, organizada por Amara Braga Jr. e Valéria Silva.

Boa leitura!

Notas

  1. GAIMAN, Neil. Introdução. In: WAY, G.; BÁ, G. The umbrella academy. São Paulo: Devir, 2011,p. 8.
  2. Dentre as em atividade no momento, destaca-se a Comics Studies Society. Seu interesse abrange “todos os tipos de arte sequencial” –de tiras e revistas em quadrinhos a animações e “outras formas e tradições relacionadas” –e procura estimular a “diversidade nos comic studies”, entre outros objetivos. Cf.: http://www.comicssociety.org/(acesso em 15 jul. 2016). No Brasil, a Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial (ASPAS) foi fundada em 2012 e busca promover academicamente os quadrinhos por meio de encontros periódicos reunindo pesquisadores de diversas áreas. Cf. https://aspasnacional.wordpress.com/(acesso em 15 jul. 2016).
  3. A lista é longa, mas devem ser mencionados periódicos como Studies in Comics(http://www.intellectbooks.co.uk/journals/view-Journal,id=168/), ImageText(http://www.english.ufl.edu/imagetext/), Journal of Graphic Novel and Comics(http://www.tandfonline.com/toc/rcom20/current) e European Comic Art (http://journals.berghahnbooks.com/eca), além do pioneiro International Journal of Comic Art,que não dispõe de versão online.
  4. HEER, Jeet; WORCESTER, Kent (orgs.). A comics studies reader. Jackson: University Press of Mississipi, 2009. Outros readerssão: HATFIELD, Charles; HEER, Jeet; WORCESTER, Kent (orgs.). The superhero reader. Jackson: University Press of Mississipi, 2013. MILLER, Ann; BEATY, Bart. The French comics theory reader. Leuven: Leuven University Press, 2014.
  5. BRIENZA, Casey. Manga in America: transnationalbook publishing and the domestication of Japanese comics. London: Bloomsbury, 2016. STEIN, Daniel; DENSON, Shane; MEYER, Christina (org.). Transnational perspectives on graphic narratives. Comics at the crossroads. London/New York: Bloomsbury, 2013. GOMES, Ivan Lima. Os novos homens do amanhã: o mundo dos quadrinhos na América Latina (Brasil e Chile, anos 1960-1970). Curitiba: Prismas, 2016 [no prelo]. Para uma orientação mais ampla da problemática da circulação dos impressos, cf. ABREU, Márcia; DAECTO, Marisa Midori (orgs.). A circulação transatlântica dos impressos: conexões. Campinas: UNICAMP/IEL/Setor de Publicações, 2014.
  6. No Brasil, os estudos de HQs devem muito às reflexões pioneiras promovidas pela ECA/USP e seu Observatório de Histórias em Quadrinhos –mas não só. Cf. http://observatoriodehistoriasemquadrinhos.blogspot.com.br/(acesso em 15 jul. 2016). A eles se encontra vinculada a revista Nona Arte, dedicada às HQs: http://www2.eca.usp.br/nonaarte/ojs/index.php/nonaarte/index(acesso em 15 jul. 2016). Para citar exemplo caro à área de História, mais recentemente, um grupo de pesquisadores das HQs se reúneanualmente junto à rede Biblioteca Parque, em parceria com o Programa de Pós-Graduação em História da UFF. Os dois últimos encontros ocorreram na Biblioteca Pública de Niterói. Cf.: http://www.bibliotecasparque.rj.gov.br/ii-seminario-de-historia-em-quadrinhos/(acesso em 15 jul. 2016).
  7. BECKER, Howard. Los mundos del arte. Sociología del trabajo artístico. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 2008. BEATY, Bart. Comics versus art. Toronto/Buffalo/London: University of Toronto Press, 2012.
  8. Para uma avaliação mais recente sobre o tema, cf. GUILBERT, Xavier. La légitimation em devenir de la bande dessinée. Comicalités[tema: Théorisations et médiations graphiques], mai. 2011. Disponível em: http://comicalites.revues.org/181[acesso em 15 jul. 2016]
  9. GROESTEEN, Thierry. Naissance de la bande dessinée: de William Hogarth à Winsor McCay. Bruxelas: Les Impressions Nouvelles, 2009. GARDNER, Jared. Projections: comics and the history of twenty-first-century storytelling. Stanford: Stanford University Press, 2012.

Goiânia, 28 de julho de 2016.

Prof. Dr. Ivan Lima Gomes (UEG)

ORGANIZADOR

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