Traços e paisagens: a educação matemática nas décadas de 1960 e 1970 – BARALDI; GARNICA (Bo)

BARALDI, Ivete Maria; GARNICA, Antonio Vicente Marafioti. Traços e paisagens: a educação matemática nas décadas de 1960 e 1970. Bauru: Canal 6, 2005. Resenha de: GODOY, Elenilton Vieira. BOLEMA, Rio Claro, n.34, p.303-308, 2009.

O livro foi dividido em três volumes, cada um deles identificado pela primeira letra dos alfabetos latino (A), grego (– Alfa) e hebraico ( – א Alef). Com isso, os autores pretendiam mostrar a in(ter)dependência dos volumes em relação à leitura. O resultado dessa in(ter)dependência pode ser observado no volume Alfa (“Vozes da literatura”), pois no início de cada “Ponto de Fuga” (nome dado aos autores para os textos específicos gerados a partir dos depoimentos dos professores), é apresentada uma síntese dos depoimentos dos professores acerca daquela “tendência”. A palavra “tendência” foi usada pelos autores para significar temas que aparecem no discurso dos diferentes depoentes, os “… elementos de convergência detectados a partir dos depoimentos coletados…”.

O volume Alef, intitulado “Nossa voz”, traz algumas considerações a respeito da relação entre a História Oral e a Educação Matemática; sendo a História Oral uma metodologia de pesquisa qualitativa que, segundo Garnica, ainda não é muito utilizada nas pesquisas em Educação Matemática, sendo poucos, à época, os trabalhos conhecidos que, explicitamente, a assumiam como fundante metodológico. Neste volume são apresentados alguns trabalhos em Educação Matemática que tomam a História Oral como metodologia de pesquisa. Baraldi e Garnica trazem à tona as diferentes formas de conceber a História Oral, posto que alguns autores a percebem como técnica, disciplina e também como metodologia científica. Ainda neste volume, os autores estabelecem relações entre História, História Oral e Educação Matemática e, também, acerca das concepções de História e Historiografia.

Sem querer alongar minhas considerações sobre este volume, gostaria de mencionar ainda que, conforme destacado pelos autores, embora muitos historiadores recorram às fontes orais, o padrão historiográfico positivista, imposto no século XIX, privilegiava o uso de fontes escritas. Sob esses parâmetros, os documentos orais passam a ser questionados. O domínio da Historiografia clássica, com o tempo, vai sendo flexibilizado a ponto de, no século XX, surgir formas alternativas como a História Oral. A implantação e evolução dessa metodologia, no Brasil, é também tema deste volume do livro, no qual Baraldi e Garnica também delineiam o cenário da pesquisa; descrevem a organização do trabalho que é pautada nas vozes da cada um dos interlocutores – os professores de matemática depoentes, a literatura sobre o tema em questão e os próprios autores e seus pontos de vista. Por fim, apresentam alguns elementos acerca da formação do professor de Matemática e destacam um fato que é notório no início da carreira docente de qualquer professor, seja ele de Matemática ou não: a reprodução da prática em sala de aula de seus antigos professores, ou seja, os docentes ministram suas aulas tal como a vivenciaram anteriormente como estudantes. Uma questão sobre a qual outros estudos poderiam debruçar-se seria – Quais são os motivos que levam o professor a reproduzir a prática de sala de aula de seus antigos professores? Os autores destacam, ainda, que, para seus depoentes, muitos conceitos matemáticos foram aprendidos sozinhos, quando da necessidade de ensiná-los.

No volume Alfa, “Vozes da literatura”, os autores discutem os Pontos de Fuga “A região de Bauru”, “Trens e Trilhos, “CADES”, “Matemática Moderna” e “A Lei 5692”. No Ponto de Fuga “A região de Bauru” são apresentadas algumas características, da cidade de Bauru e das cidades ao redor dela (Botucatu, Jaú, Pederneiras e São Carlos), contexto geográfico em que estão situados os depoentes. Em “Trens e trilhos”, os autores fazem uma breve retrospectiva histórica do papel das ferrovias brasileiras que costuraram a região de Bauru, os aspectos positivos, negativos e um outro, no mínimo curioso, que foi o crescimento do “comércio do prazer” em torno da ferrovia. Além disso, neste “Ponto de Fuga” dá-se atenção às três ferrovias que atendiam a região de Bauru (a Companhia Paulista, a Noroeste do Brasil e a Sorocabana), destacando o início, o ápice e o declínio de cada uma das três companhias; No Ponto de Fuga “CADES”, Campanha de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário, os autores destacam os fatores que motivaram a sua criação, as suas finalidades, o início das atividades da CADES, os cursos preparatórios promovidos pela Campanha, a relevância destes cursos para a formação do professor, ou melhor, para a atribuição, aos aprovados, do registro de professor do ensino secundário e o direito de lecionar onde não houvesse disponibilidade de licenciados por Faculdade de Filosofia e, por fim, discutem sua extinção, no final da década de 1960, quando do surgimento das primeiras faculdades no interior de São Paulo. Considerações acerca da Orientação Educacional cadesiana também apareciam nos documentos e livros da CADES, e foram destacados pelos autores neste “Ponto de Fuga”, bem como as atividades do professor Júlio Cesar de Mello Souza (Malba Tahan) junto aos cursos oferecidos pela CADES.

No Ponto de Fuga “Matemática Moderna”, Baraldi e Garnica destacam os fatores que determinaram o nascimento desse movimento no mundo, a chegada do Movimento da Matemática Moderna (MMM) no Brasil, a importância da criação do GEEM (Grupo de Estudos do Ensino de Matemática), em São Paulo, pela CENP (Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas), o impacto do MMM na educação brasileira, e o seu declínio, na época da organização dos guias curriculares estaduais.

No último Ponto de Fuga “A lei 5692”, inicialmente, os autores apresentam aspectos da Lei 4024/61, até então vigente e, posteriormente, destacam as alterações no ensino geradas pela Lei 5692/71, criada com o objetivo de atualizar e expandir o ensino a crianças e adultos. A LDBEN 5692/71 teve seu modelo importado de países estrangeiros e a discussão sobre esta lei é motivada pelas freqüentes menções que os depoentes do estudo fazem a ela. Segundo esses depoentes, a importância dessa legislação não se deve somente à mudança por ela causada na seriação do sistema educacional brasileiro, mas também por a considerarem responsável tanto pela desvalorização dos salários e das condições de trabalho dos professores, quanto pela falta de investimento no setor, que se expandiu consideravelmente graças à obrigatoriedade do ensino até a última série do primeiro grau.

No volume A, “Vozes de professores de matemática: mosaico de vidas”, os autores trazem à tona os depoimentos de oito professores de matemática da região de Bauru, que estavam em exercício do magistério nas décadas de 1960 e 1970 em escolas de ensino fundamental ou médio. O período escolhido pelos autores compreende uma época em que não havia faculdades ou universidades para a formação de professores de Matemática na região e também pela relação – pessoal e profissional – que os autores têm com a região de Bauru.

Os professores depoentes3 tinham um roteiro não fechado a seguir. Nele, o depoente falava, dentre outras coisas, sobre a sua formação profissional, a diferença entre a formação universitária no interior e na capital, o trabalho como professor de matemática no início e no final da carreira, os educadores matemáticos significativos para sua formação, sobre os alunos que formaram, o trabalho na época do regime militar, a degradação da carreira docente e a importância da região de Bauru na formação do professor de Matemática e na difusão da Educação Matemática.

No relato dos depoentes, percebem-se diferenças entre a formação do professor da capital e do interior, pois na capital as possibilidades de cursos para formação eram mais variadas. Esses professores, via-de-regra, assumem como negativas as influências do Movimento da Matemática Moderna, e afirmam que na década de 1950 não existia, na região, professores com formação específica; que a Matemática a ser ensinada deveria estar mais próxima dos alunos, do cotidiano deles, ser mais prática e, por fim, que os professores de Matemática pouco ou nada se envolveram nas questões e atividades políticas da época da ditadura militar.

Ainda dos relatos dos depoentes surge a crítica aos cursos de licenciatura, que não focavam o ensino real, as atividades de sala de aula. Os relatos ainda apontam para a carência de materiais didáticos que apresentassem diferentes abordagens aos conteúdos matemáticos em sala de aula.

Um último ponto fortemente marcado nos relatos dos professores foi a degradação do ensino público, o desinteresse dos alunos e, por conseguinte, o desrespeito ao docente, o desestímulo do professor devido à redução brusca da remuneração, o declínio do status da profissão e a decorrente queda de prestígio da carreira. O salário que nas décadas de 1950, 1960 e 1970 era um atrativo para a profissão, a partir da década de 1980 começou a ter quedas bruscas, obrigando bons profissionais a migrarem para outras áreas. Destacam ainda os depoentes que, segundo suas perspectivas, a escola pública era melhor do que a escola privada, e que os alunos procuravam instituições particulares, via-de-regra, quando não havia vagas ou eram reprovados no exame de admissão aos colégios estaduais.

Ressalto a riqueza do trabalho desenvolvido por Baraldi e Garnica, a relevância das questões consideradas no roteiro e conseqüentemente, dos depoimentos dos professores que, no mínimo, nos fazem parar e refletir sobre o atual momento da educação básica brasileira.

Notas

1 O livro “Traços e paisagens: a educação matemática nas décadas de 1960 e 1970” é um recorte (uma adaptação) da tese de doutorado de Ivete Maria Baraldi, intitulada “Retraços da Educação Matemática na região de Bauru (SP): uma história em construção”, defendida em 2003, na UNESP de Rio Claro, sob a orientação do professor Antonio Vicente Marafioti Garnica.

3 Os professores depoentes foram João Linneu do Amaral Prado, Vera Macário, Rubens Zapater, Miriam Delmont, Vilma Maria Novaes da Conceição, Ana Maria Cardoso Ventura, Antonio Augusto Del Preti e Milton de Oliveira.

Elenilton Vieira Godoy – Doutorando da FEUSP, docente do Centro Universitário Fundação Santo André e do Centro Universitário da FEI. E-mail: elenilton@usp.br

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Osvaldo Sangiorgi – um professor moderno – VALENTE (Bo)

VALENTE, W. R. (Org.). Osvaldo Sangiorgi – um professor moderno. São Paulo: Editora Annablume/CNPq/GHEMAT, 2008.Resenha de: WANATABE, Renate. BOLEMA, Rio Claro, n.32, p.255-258, 2009.

Escrito por membros do GHEMAT (Grupo de Pesquisa da História da Educação Matemática no Brasil), sob a coordenação do professor Dr.Wagner Rodrigues Valente, o livro contém uma coleção de textos que retrata, fortemente apoiado em depoimentos e documentos, o Movimento da Matemática Moderna no Brasil, nas décadas 60, 70 e início de 80, movimento este, bem como o livro, centrados na figura carismática do Professor Osvaldo Sangiorgi.

O livro inicia com um tocante prefácio, escrito pela filha Vera Maria Sangiorgi, seguido de uma apresentação feita pela professora Regina Maria Pavanello, testemunhando a influência que Sangiorgi teve na sua vida e na de tantos outros professores de Matemática.

O Capítulo I foi escrito por Wagner Rodrigues Valente. Após uma breve descrição do ambiente educacional da primeira metade do século XX, o autor analisa a trajetória de Osvaldo Sangiorgi, dos livros didáticos de Matemática da Editora Nacional e os anos iniciais do Movimento da Matemática Moderna. O autor apóia-se em cartas, publicações, entrevistas com Osvaldo Sangiorgi, em dados estatísticos obtidos da Editora Nacional e em artigos publicados em jornais, revistas da época. Os três temas, fortemente interligados, descritos numa linguagem atraente, de fácil leitura, oferecem um quadro global do ensino da Matemática no Brasil nas décadas de 50 a 80.

O Capítulo 2, escrito por Elizabete Búrigo, retrata o pensamento de Sangiorgi e de matemáticos de outros países nas passagens do ensino “antigo” da Matemática para um ensino “moderno” e deste para a fase pós-matemática moderna. Descreve os considerados defeitos do então ensino tradicional da Matemática, ressalta a necessidade de mudança sentida em vários países e o desejo de tornar prazeroso e eficiente o ensino de uma Matemática ao mesmo tempo mais fácil e mais próxima daquela ensinada nas universidades. O capítulo contém muitos trechos transcritos de livros das coleções “Matemática-curso ginasial” (edições dos anos 60-65) e “Matemática-curso moderno” (edições dos anos 67-71), mostrando como conceitos básicos – número natural, fração e muitos outros – são apresentados numa e noutra coleção. O capítulo destaca as crenças fundamentais de Sangiorgi, que o levaram à introdução da Matemática Moderna no ensino brasileiro, e analisa quais crenças permaneceram e quais sofreram mudanças com o passar dos anos.

O Capítulo 3 é dedicado à Geometria e foi escrito por Maria Célia Leme da Silva. Menciona três correntes para o ensino da Geometria que tiveram defensores na Europa e nos Estados Unidos: o ensino via Álgebra Linear, via Transformações Geométricas e um ensino modernizado, porém apoiado nos postulados de Euclides. Novamente, a ênfase do capítulo é mostrar como Sangiorgi transferiu as várias idéias “modernas” para os seus livros didáticos, sem se comprometer com nenhuma das correntes. O procedimento segue as linhas do Capítulo 2: é feita uma comparação entre a Geometria apresentada no livro “Matemática para a 3ª série ginasial” (78ª edição, 1964) e “Matemática-curso moderno”, 3º volume, 1969. São comparados os prefácios, nos quais Sangiorgi expõe seus pensamentos sobre Geometria e o seu ensino, antes e após o aparecimento da Matemática Moderna. Comparação análoga é feita com os índices dos dois livros, bem como com alguns conceitos. O capítulo contém também uma listagem de livros e documentos produzidos em outros países que embasaram a Geometria apresentada por Sangiorgi em seus livros da coleção “Matemática-curso moderno”.

O Capítulo 4 tem como tema o GEEM – Grupo de Estudos do Ensino da Matemática, tratado pelas professoras Laurizete Passos e Flainer Lima. Contrariamente aos anteriores, esse capítulo, ligeiramente confuso, parece apoiar-se, na sua essência, no depoimento de duas pessoas. Descreve atividades do GEEM, mas contém alguns erros factuais, principalmente nas páginas 112 e 113 que poderão ser corrigidos por meio de uma errata. Há uma omissão: uma das atividades mais importantes do GEEM foi a publicação de livros, dez ao todo, destinados a professores do primário e secundário, que continham as idéias e tópicos da Matemática Moderna. No início da década de 60, esses tópicos estavam contidos apenas em livros avançados de Matemática, a maioria deles em inglês ou francês e, portanto, fora de alcance para a maioria dos professores. Os livros publicados pelo GEEM, escritos por professores universitários, usados nos cursos, continham os conhecimentos básicos da Matemática Moderna, num nível e numa dosagem considerados adequados para a atualização dos conhecimentos dos professores de Matemática da época.

No Capítulo 5, de autoria da professora Neuza Bertoni Pinto, lê-se a história de uma professora normalista que no início dos anos 60 foi convidada a assumir as aulas de Matemática da 1ª série ginasial, numa pequena cidade do Paraná. A professora (hoje doutora e titular da PUC do Paraná) relata a influência muito positiva dos livros de Sangiorgi no seu aprendizado, no seu desempenho na sala de aula e a sua reação, bem como a de seus alunos, perante a adoção dos livros de Matemática Moderna do mesmo autor.

O Capítulo 6, escrito por Viviane da Siliva e Wagner Rodrigues Valente, descreve a desilusão face à Matemática Moderna que começou ganhar vulto, no Brasil e em outros países, na segunda metade dos anos 70. Estão transcritos vários trechos do livro O Fracasso da Matemática Moderna de Morris Kline, “referência internacional para as críticas ao ensino da Matemática Moderna” (p.146). Concentra-se, a seguir, na leitura que Sangiorgi fez dessas críticas e, apoiado em documentos por ele escritos a partir de 1976, mostra sua inabalável fé nos benefícios do movimento que ele iniciou e liderou aqui no Brasil.

O livro termina com cerca de 80 páginas contendo uma lista dos 1600 itens que constituem o APOS (Arquivo Pessoal Osvaldo Sangiorgi), material esse que está à disposição dos interessados no GHEMAT, em seu Centro de Documentação.

Em poucas palavras, “OSVALDO SANGIORGI – Um Professor Moderno” é um belo livro do ponto de vista humano, bem como um precioso registro do Movimento da Matemática Moderna no Brasil.

Renate Watanabe – Professora titular do Centro de Ciências e Humanidades da Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail: watanabe@if.usp.br

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