História Ancestral do Brasil | Revista Nordestina de História do Brasil | 2020

HISTÓRIA ANCESTRAL E O PASSADO MAIS ANTIGO DO BRASIL

Quando fomos convidados pela Revista Nordestina de História do Brasil para coordenar e prefaciar o número temático História Ancestral do Brasil, não deixamos de nos perguntar, como arqueólogos e historiadores, o que se entenderia por ancestral no contexto epistemológico. De início, pensamos em temas relativos à pré-história, termo consagrado mundialmente desde o século XIX, quando Sir Daniel Wilson a utiliza pela primeira (Prehistoric Annals of Scotland, 1851, e Prehistoric man, 1862) e por Sir John Lubbock, na sua valorizada obra Pre-historic Times (1865). O termo não seria substituído com êxito por nenhuma outra expressão, mas, seria ele suficiente dentro do espírito da Revista que é primordialmente de História do Brasil? Até onde chegaria essa ancestralidade? Vemos, pelos diversos significados da palavra, que ancestral pode ser tudo o que seja anterior a nossa contemporaneidade, embora com o suficiente peso ou significado histórico para haver influído na formação do nosso futuro.

O estudo da pré-história do Brasil nos seus fundamentos básicos pretende conhecer as origens do povoamento, as tradições culturais dos caçadores-coletores e dos agricultores, as estratégias de sobrevivência dos diferentes grupos que povoaram a região desde o fim do pleistoceno e a sua evolução para o estágio agrícola e sedentário até o contato com o europeu1.

A integração das populações indígenas na história colonial assinala também o final da pré-história, independentemente do fator cronológico, mas a ancestralidade dos novos brasileiros não será apenas europeia, pois ficará também atrelada ao elemento indígena a partir do contato. No primeiro documento oficial da história do Brasil, o cronista da expedição de Cabral fez um retrato ameno dos indígenas avistados, num relato quase bucólico do que infelizmente seria o prelúdio da tragédia anunciada, que para os povos indígenas foi a Conquista. A visão reducionista e eurocêntrica fez dos indígenas americanos seres homogêneos desde o ponto de vista cultural sob a dominação genérica de índios, mas a realidade era completamente diferente, uma vez que o elemento indígena nos tempos da Colonização compreendia a maior densidade de línguas diferentes do mundo e os grupos étnicos apresentavam categorias socioculturais que abrangiam desde bandos de caçadores nômades a Estados teocráticos2.

O que se pode entender por História Ancestral? Se buscarmos em um buscador, como o Google, fica claro que o termo se refere a questões biológicas. Se nos voltamos para o adjetivo ancestral, em particular, ainda prevalece os sentidos biológicos. Nas humanidades e ciências sociais, usa-se para terra ancestral3 ou patrimônio, em referência a comunidades indígenas ou aborígenes. Ancestrais são usados para designar objetos culturais, como as máscaras dos ancestrais na antiguidade romana, de maneira a alcançar não só nativos, mas diversos povos do passado. O termo ancestral é muito produtivo, desde sua origem: ―ir antes‖, ―precedente‖, do latim antecedere (vir antes), com o prefixo ante- e o infinitivo cedere (ceder, ir). Refere-se aos que vieram antes, como em Shakespeare (Júlio César, I, 3, 506-510; fala de Cássio):

Pouco importa quem seja. Hoje ainda, são dotados os romanos de músculos e membros como os de seus ancestrais; mas, ai que tempo!; bem morto está o espírito de nossos pais, governa-nos o espírito de nossas mães. Nosso jugo e sofrimento mostram-nos efeminados. (Tradução dos autores).

Ancestral significa ―em relação aos predecessores, pessoas e lugares (Fernando Pessoa):

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —

Eterna verdade vazia e perfeita!

Ó macio Tejo ancestral e mudo,

Pequena verdade onde o céu se reflecte!

Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!

Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

[Fernando Pessoa, Lisbon Revisited (1923), Lisboa revisitada].

Este é o contexto para entender o uso, aqui, de História Ancestral. Refere-se a todos os humanos que viveram antes de nós e são, por isso, parte de nós, não só em termos genéticos, mas também como cultura. Este é um conceito abrangente, na medida em que todos são considerados de igual relevância, em qualquer época ou lugar. Todos que estudam nossos ancestrais mais antigos partilham a atenção e reconhecimento que os caçadores-coletores são dignos de interesse como quais outros seres humanos. No caso do Brasil, estudos genéticos indicam que:

Em conclusão, nosso estudo de mtDNA de uma mostra ao acaso de brasileiros brancos revelaram uma surpreendente alta contribuição matrilinear de ameríndios e africanos. Os brasileiros atuais, assim, carregam a marca genética da colonização mais antiga: a população pioneira colonial tinha, em geral, ancestralidade ameríndia e, depois de algumas gerações, com maior presença africana, sempre do lado materno. Mas, com ancestralidade portuguesa na linha paterna (como refletido por marcadores do cromossoma Y).4 (Tradução dos autores).

Frequência

Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul

Ameríndios 33 54 22 33 22

Africanos 28 15 44 34 12

Europeus 39 31 34 31 66

Os genes dos ameríndios são, pois, bem difundidos5, mas talvez o mais importante seja a onipresença de sua contribuição cultural, da língua à culinária e muito mais6 . Entretanto, a História do Brasil é ainda considerada, mesmo em departamentos de História, como tendo início com a chegada dos portugueses, em 1500. Tanto assim, que pré-historiadores são ainda raros nos departamentos de História, com a resultante ausência de formação dos futuros professores de História, nas licenciaturas, quanto à História Ancestral. A Pré-História está bem representada em graduações e pós-graduação em Arqueologia, mas os arqueólogos não são formados em licenciaturas, mas em bacharelado, pelo que não podem ser professores no ensino fundamental e médio.

Há, ainda, um amplo espaço para a Pré-História, de modo que os licenciados em História possam aprender, de primeira mão, sobre os milhares de anos de ocupação humana da América do Sul. Este número da Revista busca contribuir para superar alguns desses desafios ao focar na História Ancestral mais antiga, a pré-histórica. Além disso, volta-se para o público mundial, de modo a alcançar um público mais amplo.

Os autores dos artigos que integram o presente número temático são todos pesquisadores experimentados e como não poderia deixar de ser, tiveram total liberdade nas escolhas dos temas apresentados, embora como num acordo não assinado, a linha do tempo foi marcada por trabalhos de cunho pré-histórico e outros nos quais o elemento indígena aparece em contato ou confronto com o português. Por decisão dos editores da Revista, a sequência de autores é alfabética e não segue assim uma ordem cronológica nem temática, mas demonstra a riqueza dos temas ligados ao mundo indígena na visão científica e pessoal dos seus autores.

O primeiro artigo, Archéologie: Du passe au présent, dês paysages au territoire, assinado por Agueda e Denis Vialou, não poderia ser mais oportuno para o início deste número da Revista. Está dedicado às ocupações do final do Pleistoceno e do Holoceno numa região onde nascem as bacias hidrográficas do Amazonas e do Paraguai-Paraná, região de dispersão de grupos étnicos que depois estarão separados por milhares de quilômetros. Roquette-Pinto7 no livro Rondônia, já comentava que quem atravessa o Mato Grosso vê, lado a lado, arroios orientados para o Norte e outros que vão se perder no Paraguai. O parágrafo final do artigo é ilustrativo e resume a importância dos registros rupestres pré-históricos como marcadores de identidades: “Les représentations rupestres reflètent la modernité dessociétés préhistoriques dans leurs irréductibles identités symboliques, confiées à la nature, aucœur de leurs territoires”

Alexandre Navarro, Dayse Marinho e João Costa Gouveia Neto são os autores de um belíssimo texto sob o título O imaginário do mundo das águas: lendas, narrativas e histórias ancestrais sobre a vida dos povos das estearias, no qual, e a partir dos assentamentos lacustres do Maranhão, recolhem as lendas que o imaginário popular teceu ao longo dos anos que se seguiram quando os construtores das estearias já as tinham abandonado há décadas. Cabe destacar, que as estearias do Maranhão significam um mundo intermediário entre as populações do litoral nordestino e as da bacia amazônica.

A longa trajetória do arqueólogo e pesquisador da Bahia Carlos Etchevarne está resumida, em parte, no seu trabalho A história da Bahia antes da colonização portuguesa, com ênfase nas populações sedentárias ou semi-sedentárias de agricultores Aratu e Tupi. A importância dos registros rupestres, tão abundantes na Bahia, é também ressaltada como indicadora da variedade de etnias indígenas que povoaram a região.

Fábio Borges entendeu qual era o espírito do dossiê temático da Revista na sua Proposta para uma abordagem arqueológica da etno-história do Seridó – RN/PB. Pernambucano de Olinda, Fábio Borges é hoje um seridoense por adoção e mérito próprio, pesquisador e professor da UFRN no campus de Caicó, suas pesquisas na Região do Seridó têm contribuído ao entendimento de uma ancestralidade indígena potiguar que se remonta desde milênios AP até o século XVII, através da conjunção dos dados fornecidos pela gloto-linguística, a etno-história e o registro arqueológico.

O artigo apresentado por Michel Justamand, Albérico Nogueira de Queiroz e Gabriel Frechiani de Oliveira, As representações rupestres de biomorfos no Parque Nacional Serra da Capivara – PI: um estudo de caso é, mais uma vez, a demonstração da importância que a interdisciplinaridade tem em Arqueologia. Os três pesquisadores estão ligados às pesquisas sobre arte rupestre, particularmente ao conjunto ímpar do Parque Nacional Serra da Capivara, embora cada um, pela sua formação, tenha um viés metodológico diferente. Dá-se especial evidência neste trabalho às figuras que representariam a transição da forma humana para a animal ou vice-versa. Não podemos deixar de evocar a figura do homem pássaro representada nos sítios rupestres dos sertões nordestinos e mais uma vez refletir sobre as identidades ancestrais que representam os nossos registros rupestres pré-históricos.

Nanci Vieira de Oliveira em Pescadores – Coletores do Litoral Fluminense: Novos olhares, velhos problemas inicia a sua contribuição ao tema básico deste número da Revista com uma reflexão acertada dos conceitos, ultrapassados às vezes, do que se entende por nomadismo e sedentarismo na arqueologia tradicional. Utilizando-se de um neologismo certeiro, – as pesquisas pronapianas – , referindo-se aos pesquisadores que integraram o famoso PRONAPA, põe em tela de juízo os horizontes culturais em que foram divididas as ocupações humanas pré-históricas entre sítios précerâmicos e sítios cerâmicos, sem aparente ligação entre eles. A pesquisadora propõe um novo olhar na procura de identidades étnicas e processos culturais capazes de identificar a atividade humana no médio da massa de materiais e fases arqueológicas que a mascaram. Os novos olhares metodológicos abrem uma nova janela ao entendimento das populações litorânea, as primeiras a serem avistadas e que sofreriam os primeiros impactos da conquista portuguesa. Para finalizar a nossa contribuição, só nos resta parabenizar a feliz iniciativa da RNHB dedicando um número temático às mais antigas origens do povo multiétnico brasileiro.

Notas

1. Cf.: MARTIN, Gabriela. Quando os índios não eram índios: reflexão sobre as origens do homem pré-histórico no Brasil. CLIO Arqueológica, Recife, n. 15, p. 1-27, 2002.

2. TOVAR, Antonio. Catálogo de las lenguas de América del Sur. 2. ed. Madrid: Ed. Gredos, 1984.

3. Cf.: TUMINEZ, Astrid S. This Land is Our Land: Moro Ancestral Domain and Its Implications for Peace and Development in the Southern Philippines. SAIS Review of International Affairs, v. 27 n. 2, p. 77-91, 2007. Project MUSE. DOI: 10.1353/sais.2007.0044; ROTARANGI, S. J. Planted forests on ancestral land: the experiences and resilience of Māori land owners. 2012. Thesis (Doctor of Philosophy) – University of Otago. Retrieved from: http://hdl.handle.net/10523/2221; DI GIMINIANI, P. The becoming of ancestral land: Place and property in Mapuche land claims. American Ethnologist, 42, p. 490-503, 2015. DOI: 10.1111/amet.12143.

4. ALVES-SILVA, J.; SILVA SANTOS, M. Da; GUIMARAES, P. E.; FERREIRA, A. C.; BANDELT, H. J.; PENA, S. D.; PRADO, V. F. The Ancestry of Brazilian mtDNA Lineages. Am J Hum Genet, n. 67, p. 444-461, 2000.

5. PENA, Sérgio D. J.; BORTOLINI, Maria Cátira. Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas? Estud. av., São Paulo, v. 18, n. 50, p. 31-50, apr. 2004. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100004&lng=en&nrm=iso. Access on: 10 jun. 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-40142004000100004.

6. FUNARI, P. P. A.; PINON, A. A temática indígena na escola: subsídios para os professores. São Paulo: Contexto, 2011.

7. ROQUETTE-PINTO, Edgard. Rondônia: anthropologia-ethnografia. Rio de Janeiro: Coedições ABL, 2005.

Gabriela Martin –  Doutora em História Antiga pela Universitat de València (Espanha) Professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Recife, PE, Brasil. E-mail: gabrielamartinavila@gmail.com

Pedro Paulo A. Funari –  Doutor em Arqueologia pela Universidade de São Paulo (USP) Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Campinas, SP, Brasil. E-mail:  ppfunari@uol.com.br  Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0183-7622


MARTIN, Gabriela; FUNARI, Pedro Paulo A. Apresentação. Revista Nordestina de História do Brasil. Cachoeira, v.2, n.4, p.7-12, jan./jun. 2020. Acessar publicação original [DR]

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Infância e educabilidades | Revista Nordestina de História do Brasil | 2020

A proposta de organizar o dossiê temático Infância e Educabilidades na Revista Nordestina de História do Brasil (RNHB) incide no interesse em divulgar este campo historiográfico e a sua produção na Bahia. Parte do interesse conjunto das organizadoras em apresentar as possibilidades de articulações e relações entre o campo de pesquisa histórica sobre a Infância com aquelas referentes às diversas formas de sua Educabilidade – na Escolarização ou Educabilidade Formal; nas Educabilidades Informais; e nas Educabilidades Não-Formais, na perspectiva daquelas que ocorrem em diversas relações socio-históricas. O âmbito espacial é o Brasil, contemplando qualquer período de sua história.

Por infância compreendemos como uma classe especial de pessoas qualitativamente e hierarquicamente diferentes dos adultos, cujos critérios para definir esta fase da vida humana são social e historicamente condicionados.

E como afirma Neil Postman:

Não devemos confundir, de início, fatos sociais com ideias sociais. A ideia de infância é uma das grandes invenções da Renascença (…) a infância, como estrutura social e como condição psicológica, surgiu por volta do século XVI e chegou refinada e fortalecida aos nossos dias.[1]

Dessa forma, alguns autores, como Postman, defendem que a ideia de infância surgiu associada diretamente ao desenvolvimento da prensa gráfica, que possibilitou a impressão de livros, e, consequentemente, o acesso democrático à leitura, alfabetização socializada. Surgindo, portanto, o fenômeno da escolarização que tinha como alvo a criança.

Outro historiador de grande destaque e um dos pioneiros em história da infância é Philippe Ariès, em seu livro História Social da Criança e da família [2]. Este autor, embora não discorde da importância da escolarização na construção da infância, enfatiza as mudanças nas relações familiares resultantes da economia capitalista e do surgimento de uma classe burguesa para explicar a origem da ideia de infância e as subsequentes práticas voltadas para promover a socialização deste grupo de forma diferenciada dos adultos. Ariès dialogou diretamente com a segunda geração da Escola dos Annales, dedicando-se à produção de uma história da infância através de uma história das mentalidades. É inegável a influência deste autor na história da família e da infância no Brasil, que, no início, recorre principalmente aos estudos demográficos para estudar estes campos historiográficos. Uma das pioneiras a estudar a história da infância foi a historiadora Maria Luiza Marcílio. Esta, a partir de pesquisas desenvolvidas no Centro de Estudos Demográficos e Históricos na América Latina (CEDHAL), publicou, em 1988, o livro História Social da Criança Abandonada. A autora demonstrou o universo da criança abandonada e sem família desde o período colonial até as primeiras décadas do século XX [3].

No final década de 1990, a história da infância no Brasil aproximou-se da história social da cultura, enfatizando os aspectos sociais, de gênero e de raça que definem e redefinem a infância, nos mais diferentes períodos históricos. Da mesma forma, a história da educação ampliou seu escopo para as questões de escolarizações e educabilidades. Incorporou também as proposições da História Cultural e da História Social. Acompanhando estas novas tendências da história da infância e da história da educação/escolarização/educabilidades, o nosso dossiê objetivou aglutinar pesquisas diferenciadas sobre estas interfaces historiográficas. Uma das propostas no dossiê temático foi a de que os artigos apresentassem pesquisas empíricas feitas para a Bahia/Brasil, espaço histórico-geográfico e sociopolítico da norma editorial da RNHB, nas suas múltiplas temporalidades, assim como, com usos de fontes históricas dos mais variados espectros.

Quanto aos recortes e problematizações, o interesse foi que estes enfoquem nas subtemáticas referentes às intersecções dos amplos campos temáticos entre Infância e Educabilidades, tais como os projetos institucionais de asilamento e proteção à infância; as infâncias, suas educabilidades e as relações de classe, gênero e raça; as propostas de instituições escolares para a infância; a infância presente nos impressos pedagógicos, livros e materiais didáticos para a educabilidade da infância: a infância nas reformas educacionais; as territorialidades e cartografias da infância e das suas educabilidades; categorizações e classificações de infância nas escolarizações e medicalizações, articuladas ou não: usos da mão de obra infantil articuladas à escravidão, liberdades, à formação de ofício e profissionalização nas suas articulações com educabilidades; resistências e táticas de sujeitos anônimos e subalternos em diversos espaços e formas de educabilidade e experiências de ou com a infância; infâncias e trabalho, bem como a idealização da infância e do amor materno e seu oposto, a negação da maternidade.

Assim, os artigos do dossiê Infância e Educabilidades apresentam algumas das atuais investigações sobre estas temáticas, no esforço de ampliar e divulgar o campo. São sete artigos, que, temporalmente, referem-se três à primeira República; um ao período do Segundo Império e sua sociedade escravista; um às lembranças e memórias deste período imperial e dois ao período mais recente do Brasil. Recobrem à Bahia, enquanto espaço geográfico e administrativo, ao enfocarem sujeitos da capital – Salvador –, dos “sertões” de Feira de Santana, Juazeiro, Caetité – do recôncavo –, São Gonçalo dos Campos, e do baixo Sul-Marau e Camamu.

São trabalhos realizados por pesquisadores (as) no âmbito de cursos de pós-graduação e graduação, assim como na pesquisa continuada de caráter profissional do (a) historiador (a). A ordem de apresentação escolhida pelas organizadoras foi a do recorte de ordem alfabética dos autores (as).

Andréa Barbosa e Camila Mota em Nem presa, nem morta: direitos reprodutivos no Brasil e o movimento feminista abordam o debate sobre a negação do mito do amor materno mediante a análise do aborto no Brasil e a associação entre a maternidade e a maternagem como atributo exclusivo da reprodução e do “destino biológico” dos corpos femininos. Para tanto, recorrem ao argumento de que a imposição da culpa e do pecado às mulheres que praticam o aborto é decorrente de uma mentalidade que impõe unicamente à mulher os cuidados e a socialização da criança. A naturalização da maternagem, ou seja, os cuidados e a educação de uma criança são atribuídos a uma suposta natureza feminina. Dessa forma, para investigar este processo de criminalização da negação da maternidade através do aborto, as autoras analisam a legislação penal brasileira que criminaliza esta prática, especificamente o Capítulo I do Código Penal de 1940 e a historicidade deste código. Da mesma forma, investigam o perfil das mulheres que abortam no Brasil mediante a análise da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), realizada no ano de 2016, assim como a posição das teorias feministas acerca da reprodução. Por fim, as autoras concluem que transpor as desigualdades de classe e gênero e alcançar a equidade dentro da sociedade de classes é preciso para dar às mulheres o direito de escolher ou não ser mãe.

Em espaço interiorano, a cidade de Juazeiro, na Bahia, o artigo O Aprendizado Agrícola de Juazeiro e o ensino para pobres e negros (Bahia, 1909-1930) de Daiane Silva Oliveira e Maurício de Oliveira da Silva trata da experiência de educabilidade da criança rural, sertaneja, no Aprendizado Agrícola instalado nesta cidade, em 1910. Apresenta pesquisa empírica sobre esta instituição entre 1919-1930, e problematiza a sua criação como parte dos desdobramentos dos projetos civilizatórios republicanos e suas elites agrárias. Os autores destacam que estes aprendizados foram instalados em outros estados do país, de acordo com um critério de “tradição agrícola”. A escrita apresentada priorizou destacar nos aprendizes desta instituição – meninos e meninas – a evidência da presença de crianças pobres e negras a partir de um conjunto de fotografias de 1920, com a metodologia de heteroatribuição da classificação racial, conforme Maria Lúcia Muller [4]. Além desse registro fotográfico, foram utilizados documentos oficiais como as mensagens de Presidentes da República, Relatórios, mensagens e diversos Comunicados oriundos do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC) do Brasil.

Ione Sousa e Bruna Santana da Silva trazem a primeira referência ao século XIX, ao Segundo Império e à sociedade escravista brasileira com Ingênuos (as) e seus serviços: estratégias de usos e modos de fuga (Bahia, 1874-1900). As autoras apresentam algumas experiências nos usos da mão de obra de ingênuos na Bahia, temática já percorrida pelas mesmas, pelo uso de dispositivos legais como a Tutoria e a Assoldada para a circunscrição do trabalho do (a) “ingênuo (a)” – o (a) filho (a) da mulher escrava nascido (a) livre por força da Lei 2040, de 28 de setembro de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre. São educabilidades no trabalho do labor na lavoura, no qual mães-cativas e sua parentela deveriam preparar futuros trabalhadores (as) na mesma sujeição. Mas nem sempre esta estratégia deu certo pelas ações contrárias de mães, parentes e dos próprios (as) ingênuos (as). Lançando mão de uma rica documentação que registra as relações entre as crianças ingênuas, suas mães, proprietários e ex-proprietários escravistas, tutores, assoldadores, Curadores de Órfãos, Juízes de Órfãos, destacam sujeitos que protagonizaram experiências contundentes nas lutas pela liberdade no cativeiro que existiu no Brasil.

Jacson Lopes Caldas n’A infância negra e o aprendizado de saberes populares femininos: memórias da ceramista Crispina dos Santos e da artesã Marilene Brito em Feira de Santana – BA traz narrativas sobre a educabilidade do saber-fazer de práticas de artesanato familiar feminino e popular via as memórias da ceramista Crispina dos Santos e da artesã Marilene Brito. São saberes transmitidos por gerações de mulheres negras – em lugares de memória – destas sujeitas na cidade de Feira de Santana, que se entrelaçam, da infância à vida adulta, em aprendizados transmitidos no cotidiano de mães/avós/tias como táticas que possibilitaram o trabalho no comércio do artesanato popular como meio de sobrevivência durante a fase adulta.

Maria Cristina Machado de Carvalho em Tradições orais: memórias transgeracionais do trabalho de crianças escravizadas – São Gonçalo dos Campos (Bahia, 1880-1950) também trata dos aprendizados familiares no trabalho cotidiano, quanto às tensas experiências do trabalho da criança escrava. Enfoca as memórias familiares transgeracionais nas narrativas sobre experiências/conhecimentos/testemunhos relacionados à vida dos antepassados, transmitidos por meio das narrativas orais através das gerações no período de 1880 a 1950, em São Gonçalo dos Campos, local de intensa produção fumageira e de subsistência.

Ainda sobre o interior da Bahia, alto Sertão de Caetité e circunvizinhanças, Miléia Almeida em “O fructo de amores ilícitos”: Infanticídios na contramão do mito do amor materno (Alto Sertão da Bahia, 1890-1940) focaliza experiências de mulheres sertanejas pobres quanto à gravidez, aborto e infanticídio. Problematiza representações sobre a infância expressas em processos judiciais, artigos da imprensa, assim como ressaltadas nas práticas femininas costumeiras que estes registros permitem evidenciar. Considera que a concepção de infância “historicamente construída nas sociedades ocidentais”, assim como “o mito da maternidade inata”, serviram de base para a condenação de mulheres que vivenciavam outros valores socioculturais. Sob uma perspectiva da análise de gênero, o texto busca colocar as mulheres como sujeitos e provocar o debate de um “tabu histórico”.

O último texto deste dossiê, de Verônica de Jesus Brandão, O jardim de infância nas teses apresentadas pelos professores primários da educação pública do município de Salvador nas Conferências Pedagógicas (1913-1915) nos faz retornar à Salvador e à primeira República ao explorar a criação dos Jardins de Infância como espaços de educabilidade. Problematiza que embora esta forma de educabilidade não estivesse oficialmente elencada nos temas das referidas Conferências Pedagógicas, a importância das mesmas nos projetos de educadores a colocou em pauta, numa variedade de temas: currículo, espaços e reflexões dos docentes sobre o Jardim de Infância.

Assim, terminamos esta primeira tentativa de sistematização do campo, óbvio que com lacunas e omissões. Agradecemos à RNHB a iniciativa de submissão de propostas e o acolhimento da nossa.

Notas

1. POSTMAN, Neil. O desaparecimento da Infância. Rio de Janeiro: Graphia, 1999. p. 12.

2. ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982.

3. MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: HUCITEC, 1988.

4. MULLER, Maria Lúcia Rodrigues. Professoras Negras na Primeira República. Cadernos PENESB, Niterói, v. 1, n. 1, p. 21-68, 1999.

Andréa da Rocha Rodrigues Pereira Barbosa –  Doutora em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) Professora da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) Feira de Santana, BA, Brasil. E-mail: andrearocha66@hotmail.com  Orcid: http://orcid.org/0000-0001-8376-1945

Ione Celeste Sousa –  Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Professora da UEFS Feira de Santana, BA, Brasil. E-mail: ionecjs@gmail.com  Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9721-750X


BARBOSA, Andréa da Rocha Rodrigues Pereira; SOUSA, Ione Celeste. Apresentação. Revista Nordestina de História do Brasil. Cachoeira, v.3, n.5, p.6-11, jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]

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História do Brasil | UFRB | 2018

Nordestina de Historia do Brasil História do Brasil | UFRB | 2018

Revista Nordestina de História do Brasil  (São Paulo, 2018-) tem como objetivo publicar artigos, entrevistas, traduções e resenhas (de livros e artigos científicos) de pesquisadores especialistas em história do Brasil a partir de uma perspectiva local, regional e transnacional. As publicações ocorrem no modelo de Publicação Contínua (PC), conforme os Guias da SciElo, que orientam a publicação nesta modalidade.

Seus objetivos são: a) divulgar o conhecimento científico produzido pelos grupos e projetos de pesquisa vinculados aos Departamentos de História (DHs) e áreas afins das diversas Instituições de Ensino Superior (IES) do país e do exterior; b) criar uma rede de sociabilidade entre os pesquisadores de História do Brasil, especialmente aqueles que partem do recorte espacial supracitado para pensar nas diversas particularidades e diversidades do país; e c) fomentar uma rede de divulgação dos estudos oriundos das investigações realizadas na pós-graduação brasileira e nos outros países.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 2596-0334 (Impresso)

ISSN 2674-7332 (Online)

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