História e Direitos / Projeto História / 2006

História – Direitos / Projeto História / 2006

Na série sobre Las Manos, o pintor equatoriano Oswaldo Guayasamín (1919-1999) plasma a resistência e rebeldia daqueles que são secularmente explorados, expropriados, mutilados, torturados, mas que com suas energias e capacidades subjetivas humanas constroem a riqueza genérica das alteridades, trabalho objetivado na forma da alienação e do estranhamento por conta da reprodução ampliada do capital. A pintura Las manos de la protesta desse artista revolucionário expressa o símbolo das lutas dos de baixo, mas também as possibilidades de conquistas sociais, para além do capital e do Estado, voltadas para uma nova forma de sociabilidade.

História e Direitos oferece reflexões que abarcam as mais variadas formas dessa resistência de indivíduos atuantes, que protagonizam respostas e alternativas às demandas sociais inscritas no próprio evolver histórico. Nem sempre vitoriosas, em tempos e lugares díspares, essas lutas sociais que emergem das contradições materiais da relação-capital buscam formas de hegemonia e contra-hegemonia, que vão dos seringueiros brasileiros às “coordinadoras interfabriles” da Argentina sob terror genocida, das lutas de gênero aos direitos de criação cultural, da luta pela terra à afirmação dos descendentes africanos.

O metabolismo social do capital tem se reproduzido como mundo da mutilação do humano, que impede a plena realização da liberdade dos indivíduos como finalidade intrínseca ao processo de constituição de seu próprio ser genérico. O sonho do desenvolvimento das capacidades humanas sem interdições postas por essa forma societária repõe a luta sem tréguas pela liberdade concreta, como reconhecimento das necessidades do outro, em sua multiplicidade e infinitude, uma vez superadas as contradições imanentes da sociedade atual.

Adentrando nas páginas da Projeto História, detemo-nos na fina e densa reflexão do historiador Pierre Vilar sobre “História do direito, história total”. Ainda que o termo direitos, tal como nasceu a propositura temática para este número, não se restrinja somente às estruturas políticas e jurídicas – pois buscou-se a reflexão dos direitos sociais que brotam da práxis cotidiana das classes subalternas e que buscam erradicar injustiças e chagas sociais –, Pierre Vilar, assumindo os lineamentos ontológicos de Marx, assegura que “é a sociedade civil que faz o Estado e não o Estado que faz a sociedade civil”. As formas políticas e jurídicas são sempre produtos da história, exprimem antagonismos próprios à atividade prática sensível de indivíduos sociais. O reconhecimento do primado da vida prática ancora-se na dinâmica da forma de produção e reprodução da existência material. Vilar atenta para o momento específico em que Marx, dirigindo a antiga Gazeta Renana, se vê diante dos interesses materiais, do vínculo entre forma jurídica e a propriedade privada, que se afirma ante seus olhos e o seu arsenal teórico arrimado na filosofia idealista alemã e não lhe permitia desvendar a natureza efetiva da politicidade. No fundo, Vilar mostra a gênese dos direitos burgueses precisamente assentado na dominância dos proprietários privados: “Trata-se da transição de um modo de produção para outro modo de produção, da morte da sociedade feudal, e a cristalização no direito dos princípios fundamentais do capitalismo”.[1]

Não há como subtrair o papel da subjetividade na produção da riqueza genérica humana. Na história, os seres autoproducentes em sua historicidade – mesmo sob o entulho da exploração e desumanização – ampliam as potencialidades e capacidades humanas para a recriação de si e de seu mundo. A consciência é elemento de impulso da transformação, mas também da acomodação a uma determinada ordem social. “História total”, aqui, significa compreender, sempre de modo aproximativo, o “concreto como síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso”. Reconhecendo, na práxis, a contínua transitividade que envolve os pólos heterogêneos da subjetividade e da objetividade, no processo de objetivação.

Nesse sentido, não há como tomar a liberdade como pura abstração, mas sim referida ao campo de possíveis de seu solo histórico. A forma societária moderna, com seu modo determinado de vida, que imprime a defesa da liberdade do indivíduo circunscrita aos proprietários privados, teve de se confrontar com a resistência dos não-proprietários. As revoluções burguesas cristalizaram em suas fórmulas constitucionais os princípios liberais que são expressões dos pilares ordenadores desse metabolismo social. Basta recordar a legislação sangüinária contra os vagabundos de fins do século XV ao século XVI na Inglaterra, os dispositivos cerceadores dos direitos dos trabalhadores com a Lei Le Chapelier em pleno processo revolucionário francês, a luta de ludistas e cartistas, até as barricadas de 1848, das lutas por emancipação nas colônias à Comuna de Paris, no século XIX. A luta pela inscrição dos direitos sociais no Estado liberal por meio do embate classista levou a que essa forma de dominação cedesse a sua transformação num Estado liberal-democrático, todavia, como poder que atua na auto-reprodução ampliada do capital.

O historiador Francisco Iglesias assinalou que “o liberalismo é mais um ideal que realidade; a filosofia liberal é uma das utopias que raramente se concretizam, mesmo nesse século [XX], que a proclama, ela só existe em certas áreas e em raros momentos, pois comum é a herança de antigos privilégios ou o aparecimento de novos”.[2] Contudo, há que especificar essa ideologia em seus nexos constitutivos, em sua produção social. Em sua “pergunta constrangedora” sobre, afinal de contas, o que devemos entender por princípios liberais, o filósofo Domenico Losurdo se indagou se é possível separá-lo da prática dos proprietários, se é possível a coexistência da defesa da liberdade do indivíduo, da defesa da propriedade privada e sua conservação contra a interferência do poder do Estado, em comunhão com a defesa das minorias contra o “absolutismo democrático”, porém, com a preservação da escravidão? Quais razões levaram os campeões do liberalismo, tais como John Locke, Francis Hutcheson e John Stuart Mill, a sustentarem a necessidade da escravidão? “O fato é que, ao ressaltar a necessidade da escravidão, eles pensam em primeiro lugar não nos negros das colônias, mas nos ‘vagabundos’, nos mendigos, na plebe ociosa e incorrigível da metrópole. Devemos considerá-los iliberais por esse motivo?”.[3]

Por essa razão, rebatendo a apologética do argumento econômico “puro”, Vilar adverte que essa ideologia, ao naturalizar as relações sociais burguesas “esquece os fundamentos jurídicos da sociedade civil capitalista – propriedade absoluta e liberdade de empreender; ora, estes fundamentos só valem se garantidos pela autoridade do Estado”. Além disso, o monopólio da lei e da violência se vêem preservados por mecanismos do anel autoperpetuador entre propriedade privada e Estado. “Ora, um aparelho repressivo nunca é totalmente descolado das regras de direito que se costuma respeitar, seja porque escolhe transgredir sem proclamá-lo, seja porque decide suspender, como se diz, as ‘garantias constitucionais’. Direito público e direito privado, história jurídica e história política são constantemente mescladas: e a própria economia depende disso”.[4]

Como salientou Vieira,[5] até mesmo a “ilimitada” liberdade de expressão de Stuart Mill, definida em seu Ensaio sobre a Liberdade, que afirmava a soberania da pessoa sobre si mesma, com a autoridade do Estado intervindo apenas para impedir danos entre os membros da comunidade, viu-se implementada de forma restrita, dada a manutenção das leis que coibiam a livre expressão e organização dos trabalhadores, a restrição ao voto feminino e às “massas despreparadas”, “incultas e rudes”, conforme propositura de Alexis de Tocqueville, que ponderava sobre o risco de ocorrer uma tirania dessas massas sobre uma minoria, cerceando a competência natural de as elites dirigirem a sociedade de forma ordenada e processual.

Como se pode observar, no interior das contradições entre o conservadorismo e o progressivismo, entre o internacionalismo econômico e os nacionalismos políticos ou no debate sobre a relação indivíduo / coletividade levado a cabo pelo liberalismo, as bandeiras dos trabalhadores que serão consolidadas pela nova ordenação de categorias sociais sem ruptura, restringem-se àquelas que interessavam também à burguesia, como a abolição da servidão – dadas as necessidades da nova ordem capitalista em curso – e a ampliação do direito de voto, que garantia maior possibilidade de integrar a burguesia na representação parlamentar através dos mecanismos constitucionais, sob os auspícios da fraternidade, equivocadamente, conforme já o demonstrava Jules Michelet, no século XIX, imputada às bandeiras revolucionárias francesas.

Sob a égide da igualdade de todos perante a lei, manifestas as desigualdades pelo mérito e não mais por nascimento (mas mantidas e justificadas, é evidente), o século XIX implantou os preceitos do liberalismo calcado na defesa dos direitos naturais, parametrado pelas concepções de Locke, os formuladores da Declaração da Independência norte-americana e da Declaração dos Direitos Humanos, segundo a qual ao governo competiria afirmar os direitos à vida, à liberdade e à propriedade. Implantou também os preceitos do liberalismo utilitarista dos seguidores de Jeremy Bentham, que mesclavam seu racionalismo ao empirismo inglês, exigindo do governo a prova utilitarista da promoção de ações que resultassem no “maior bem para o maior número”.

Mas o cerne da dualidade do mundo moderno figurado na cisão entre vida privada e vida pública, da contraposição de interesses dos proprietários e dos cidadãos, foi desvendado com a identificação do caráter ilusório de uma comunitariedade universalizada no Estado como instituição racional e necessária para harmonizar as contradições reais. Em suas “Glosas críticas ao artigo ‘O rei da Prússia e a reforma social’”, ao rebater as teses de Ruge, Marx buscou decifrou a natureza social do Estado e do caráter impotente de toda e qualquer administração:

“A menos que suprima a si mesmo, o Estado não pode suprimir a contradição entre o papel e a boa vontade da administração, de um lado, seus meios e seu poder, doutro. Ele é fundado sobre a contradição entre a vida pública e a vida privada, entre os interesses gerais e os interesses particulares. Por conseqüência, a administração deve-se limitar a uma atividade formal e negativa, pois seu poder pára precisamente lá onde principia a vida civil e seu trabalho. Em verdade, a impotência é a lei natural da administração, quando ela é posta diante das consequências que resultam da natureza anti-social desta vida civil, desta propriedade privada, deste comércio, desta indústria, desta pilhagem recíproca das múltiplas esferas civis. Pois este esquartejamento, esta baixeza, esta escravidão da sociedade civil constituem o fundamento natural sobre o qual repousa o Estado moderno, do mesmo modo que a sociedade civil da escravidão é o fundamento natural do Estado antigo. A existência do Estado e a existência da escravidão são indissociáveis”.[6]

Vamos repisar num ponto essencial. Essa sociedade de equivalentes – proprietários dos meios de produção, do dinheiro e da riqueza são postos na mesma situação como possuidores de alguma mercadoria, do mesmo modo que os possuidores da capacidade subjetiva do trabalho – coloca os indivíduos numa situação de igualdade e liberdade na esfera da troca. Há que recordar que o possuidor da força de trabalho, “solto e solteiro”, se põe como pessoa livre que detém sua mercadoria, mas também por ter uma existência livre das condições objetivas do trabalho. Ora, a lógica própria do sistema do capital, no ato da troca, converte os possuidores de mercadoria como equivalentes e mutuamente indiferentes. Se o capital busca permanentemente aumentar o tempo excedente dos trabalhos dos produtores efetivos, sua teleologia visa a extração de valor e não a realização das necessidades humanas por meio dos valores de uso. Nesse quadro, assentada nos pilares profundamente iníquos do modo de produção, qual é a gênese e necessidade históricas dessa liberdade limitada? “O interesse geral é justamente a generalidade dos interesses egoístas. Se, portanto, a forma econômica, a troca, põe sob todos os aspectos a igualdade dos sujeitos, o conteúdo, a matéria, tanto individual como objetiva e que leva à troca, põe a liberdade. Igualdade e liberdade, portanto, não são apenas respeitadas na troca que se baseia em valores de troca, mas a troca de valores de troca é a base real, produtiva, de toda igualdade e liberdade. Como puras idéias, são meramente a expressão idealizada dessa base; como desenvolvidas nas relações jurídicas, políticas e sociais, são elas apenas esta base em uma outra potência”.[7]

Na atualidade, vivemos em tempos sombrios, que petrificam as possibilidades humanas, promovendo o desfazimento das alternativas da lógica onímoda do trabalho, assim como entronizando a naturalização da propriedade privada e de sua forma societária. A correta crítica à vulgata marxista, com seus determinismos, em especial o do acento numa inevitabilidade lógica da progressão histórica rumo ao comunismo, todavia, tem se curvado à obediência necessária requerida pelo capital. A apologética acaba por decretar um “fim da história”, conduzindo, dessa maneira, à resignação e ao conformismo a uma ordenação capitalista. Para superar as iniqüidades, as injustiças próprias à concentração e centralização da riqueza, o distributivismo é o aceno possível da sociedade de equivalentes. O indivíduo expropriado, mutilado e resignado atua na direção querida e, portanto, mais apropriada ao prolongamento da utilidade histórica do capital.

O ideário do liberalismo nesta sua forma mais conservadora adquirirá diferentes contornos, nas diferentes vertentes que assumirá este capitalismo em sua internacionalização, garantindo o arcabouço teórico que justifica a correspondente ordenação política. A herança dessa vertente conservadora do liberalismo será assumida por suas categorias sociais dominantes, como sua forma mais “perfeita”, como é o caso das formações dos estados nacionais latino-americanos. Ao analisar a ditadura militar argentina (1976- 1983), Christian Castillo mostrou como, na engrenagem montada pelo terrorismo oficial, se perpetrou o monstruoso genocídio contra a sociedade civil, apontando para o momento essencial dos antagonismos sociais: o controle e desarme das ações autônomas da classe operária.

Nas últimas décadas, ultrapassadas as ditaduras militares, instauradas as distensões democráticas, o tema da violência, sob as mais variadas formas, tornou-se um dos principais objetos de estudos de várias disciplinas na América Latina e particularmente no Brasil. Entidades de direitos humanos e especialistas debruçam-se sobre suas variadas formas: violência doméstica, violência da criminalidade, violência dos organismos policiais, violência no sistema penitenciário, violência no campo, etc. – evidenciando-se que essas violências têm raízes, causas e dinâmicas de natureza diferente. É claro que a situação social exacerba mesmo as violências de cunho privado, como a violência doméstica – de maridos contra esposas, de pais contra filhos – que sempre existiram, mas que, em virtude da tensão existente na sociedade, da precariedade das vidas nas condições do mundo neoliberal, com a formação do desemprego estrutural, tornam-se mais concretas e atuantes.

Quanto à violência que se exerce na esfera pública, sua exacerbação nos dias atuais tem a ver com o quadro da evolução recente do sistema capitalista, em sua fase de globalização, com suas políticas neoliberais implementadas a partir da década de 1980. A revolução tecnológica sem precedentes, a chamada terceira revolução industrial e a introdução da microeletrônica no processo de produção de mercadorias têm levado a uma verdadeira devastação no mercado de trabalho internacional. Um vasto contingente de pessoas em todo o mundo tornou-se dispensável ao processo produtivo e a tendência é que o desemprego aumente ainda mais nas próximas décadas. Esse é um processo irreversível que está mudando o panorama do mundo e atinge não apenas pessoas, mas também países, aprofundando a diferença internacional entre países ricos e pobres, e promovendo exclusão em continentes inteiros. Com isso, levas de marginalizados arriscam-se todos os dias nas fronteiras da Europa e da América do Norte, para tentar entrar no “paraíso” do capitalismo do Primeiro Mundo. E, de modo geral, em todas as grandes cidades do mundo mais pessoas empobrecem e vêm engrossar o bloco dos sem moradia e sem trabalho, das pessoas com empregos precários informais e às vezes considerados ilegais, e por isso sujeitos à repressão institucional.

Paralelamente, no quadro no neoliberalismo, observamos a diminuição dos gastos públicos em políticas sociais abrangentes e universais. Ao contrário, são propostas e implementadas as chamadas “políticas focalizadas”, projetos que só atingem as comunidades mais miseráveis ou pedaços dela, aparecendo como uma vitrine da boa índole dos governos, enquanto cresce, como complemento de toda essa política, o Estado Penal. Para os marginalizados e excluídos que não se mantêm na estrita ordem, o Estado reserva a construção de cada vez mais prisões e a implementação de penas cada vez mais rígidas para os crimes contra o patrimônio dos ricos.

O que se observa é que em tais países, genericamente falando, não se configura um Estado de natureza liberal nos moldes como se configura na Europa após as revoluções burguesas no marco do capitalismo de ponta. Aqui, a configuração do Estado alterna períodos ditatoriais com períodos de dominação de classe que configuram muito mais autocracias burguesas institucionalizadas do que a propalada, mas não concretizada, democracia social. No Brasil em particular, apenas para tomarmos o período posterior à última ditadura e a aprovação da Constituição de 1988, persistem, na ação do aparato repressivo do Estado, mecanismos de tipo ditatorial, porém aplicados seletivamente. Essas contradições também aparecem em outros Estados latino-americanos, onde a remoção do “entulho autoritário” sofre idas e vindas. No Brasil, é como se o Estado democrático de Direito tivesse sido restabelecido apenas em algumas parcelas do território brasileiro e apenas para alguns efeitos. As instituições do Estado democrático funcionam até o limite em que a desigualdade social de classes aparece.

Os atos praticados quotidianamente pelo Estado, inclusive a manutenção de práticas de tortura, cometidas em espaços institucionais pelo aparato policial e infelizmente aceitas pela sociedade em geral e banalizadas pelos noticiários, pouco têm sido objeto de estudos considerados acadêmicos e, não fosse a ação de algumas e poucas entidades a denunciarem tais arbitrariedades, essa impunidade passaria incólume. Nesse sentido, é possível constatar como tais análises tendem a ficar circunscritas ao universo das políticas e denotam o ardil do politicismo, forma de dominação que permite a continuidade da lógica perversa da reprodução ampliada e subordinada ao capitalismo financeiro internacional e modela a dominação política a seus fins específicos. A dominação dos proprietários, reduzida em sua possibilidade de atuar com autonomia e de cumprir sua função de classe nessa particular forma de regime liberal-democrático quanto ao atendimento às demandas sociais (imprescindíveis ao próprio desenvolvimento do capitalismo, sob pena de rompimento da sua própria lógica), reduz sua ação à dimensão do político, enquanto a ordem econômica realiza sua lógica perversa, iníqua e subordinada.

As políticas públicas, fundadas na lógica da “integração” da América Latina aos países hegemônicos, significam a permanência dos vínculos sociais, políticos, econômicos, científicos, culturais, diplomáticos e militares na condição de subordinação. Nessa lógica, o Estado – que, classicamente, aparenta ser distinto das forças sociais que o engendram – gesta políticas que não só não atendem às necessidades sociais, mas se contrapõem a elas, atingindo, por vezes, até mesmo os segmentos da burguesia que lhe dão sustentáculo.

Nesse contexto e diferentemente do processo de ascensão da burguesia européia e do ordenamento do seu correspondente aparato estatal, a burguesia nacional mostra-se incapaz de promover sua revolução, pois isso demandaria unificar-se internamente e apoiar-se na forças sociais que exclui. Nessa condição, essa classe, no limiar das necessidades de promover reformas impostas pelo próprio desenvolvimento do capitalismo, mantém os “enclaves autocráticos” vigentes nos períodos de ditaduras bonapartistas, consolidando a dominação. Longe ficamos do preceito que as leis são a exteriorização das vontades dos indivíduos como um corpo único, isto é, cidadãos fazendo as leis e se reconhecendo nelas. As leis coagem arbitrariamente os indivíduos, porque impostas de cima para baixo e apenas vigorando conforme a lógica da dominação que expressa uma categoria social cuja potência auto-reprodutiva do capital é extremamente restringida, uma categorial social que é incapaz de exercer sua hegemonia e, com isso, incorporar e representar efetivamente os interesses das demais classes subalternizadas numa dinâmica própria.

Os processos de distensão democrática que reinserem formas autocráticas após os períodos ditatoriais ocorrem com muitas semelhanças entre os países latino-americanos submetidos a ditaduras ou “autoritarismos”. Nestes, as lideranças no novo poder concordam em manter preceitos autocráticos em nome da segurança nacional, da manutenção da ordem, dos compromissos internacionais assumidos (pagamento das dívidas nos mesmos moldes preconizados). Não se trata apenas de uma composição, mas da permanente recomposição pelo alto, que se evidencia ao longo da história de nossas formações sociais, que conheceram um caminho sinuoso, tortuoso e hipertardio que gesta o capital atrófico, que reproduz o arcaico, no qual a burguesia, por sua incompletude de classe, mostra-se incapaz de liderar as reformas necessárias ao desenvolvimento do próprio capitalismo, fazendo alianças com segmentos do historicamente antigo, a fim de lhe garantir a força suficiente, ante sua debilidade estrutural, do Estado autocrático burguês.

Caracteriza-se, assim, um poder político em que as decisões políticas, sejam de ordem social, econômica ou cultural, não conseguem atender às demandas sociais, reordenando permanentemente as mesmas categorias dominantes no bloco do poder, mantendo núcleos autocráticos que ensejam o “cesarismo militar”.

“A reflexão contemporânea sobre a politicidade, o entendimento político e as formas de poder, nessa quadra histórica, têm sido tomados permanentemente como uma recorrência ao aperfeiçoamento dessas formas, visando a corrigir os seus defeitos e, com isso, alcançar a sua perfectibilidade. Desconhecendo, desse modo, a razão das taras sociais. Há que reconhecer, no entanto, que ‘Por natureza, a política sendo a administração do domínio de uns sobre outros, jamais pode ser a sagração da santidade’”.[8]

Num universo em que se descartou a perspectiva de futuro, há que resgatar um antigo lema do movimento dos trabalhadores, segundo o qual a emancipação humana implica a superação da parcialidade inerente à liberdade política em direção à liberdade social. “Liberdade da vida cotidiana que passa a compreender a relação ativa e consciente do homem com a forma societária que o engendra e que por ele é engendrada. Liberdade da vida cotidiana que requer muito mais do que a universalidade abstrata da cidadania, pois exige a possibilidade da autoconstrução cotidiana do homem e de sua mundaneidade. O que significa que pela potência onímoda da lógica do trabalho, difundida por toda a enervação da convivência, o indivíduo recupera em si mesmo o cidadão abstrato, não mais separa de si força social sob a forma de força política, reconhece e organiza suas próprias forças como forças sociais, de modo que converte, por tudo isso, na vida cotidiana, no trabalho individual e nas relações individuais, em ser genérico, em individuação atual pela potência de seu gênero”.[9] É o que se impõe, ao menos enquanto aposta futura, como sendo o próprio exercício da liberdade concreta, num revolucionamento permanente, mediante a comunidade interativa de indivíduos em seu processo de individuação social.

Notas

1. VILAR, P. História do Direito, História Total. Projeto História – História e Direitos, n. 33. Trad. Ilka Stern Cohen. São Paulo, Educ, 2006, p. 27.

2. IGLÉSIAS, F. História e Ideologia. São Paulo, Perspectiva, 1981, p. 72.

3. LOSURDO, D. Contra-História do Liberalismo. Trad. G. Semeraro. Aparecida, SP, Idéias & Letras, 2006, p. 17.

4. VILAR, op. cit., p. 34.

5. VIEIRA, V. L. “Autocracia Burguesa e Violência Institucional”. Paper tematizado nos Seminários de Marxismo do Núcleo de Estudos de História: trabalho, ideologia e poder. Departamento de História da Faculdade de Ciências da PUC-SP, 07 de dezembro de 2006.

6. MARX apud CHASIN, J. A determinação ontonegativa da politicidade. Revista Ensaios Ad Hominem, T. III, Política. Santo André, SP, Estudos e Edições Ad Hominem, 2000, p. 95.

7. MARX, K. Troca, Igualdade, Liberdade. Revista Temas de Ciências Humanas, n. 3. São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1978, p. 06.

8. RAGO FILHO, A. “O ardil do politicismo”. Revista Projeto História, n. 29, T 1. São Paulo, Educ, 2004, p. 156.

9. CHASIN, J. A determinação ontonegativa da politicidade. Revista Ensaios Ad Hominem, T. III, Política. Santo André, SP, Estudos e Edições Ad Hominem, 2000, pp. 126-127.


FILHO RAGO, Antonio. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v. 33, 2006. Acessar publicação original [DR]

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