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História e Direitos da Criança e do Adolescente na América Latina / Revista Brasileira de História & Ciências Sociais / 2020
O menino Miguel, a menina Ághata. O garoto João Pedro, as garotas Emilly e Rebeca… O que essas crianças têm em comum? Tiveram suas vidas ceifadas, tornando-se vítimas da violência, de um adultocentrismo [1] estrutural, que insiste em negar a condição da criança como sujeito de direitos. A História das infâncias e das juventudes na América Latina é marcada por práticas sociais e culturais que objetificam meninos e meninas, levando-as a conviver com diferentes formas de violação dos direitos humanos.
O presente dossiê temático intitulado História e Direitos da Criança e do Adolescente na América Latina na Revista Brasileira de História & Ciências Sociais visa contribuir com a historiografia das infâncias e juventudes no Brasil e na América Latina, buscando colocar em tela estudos que estão sendo produzidas em diferentes instituições de pesquisa no Brasil, com interfaces na América Latina. Registramos que este Dossiê contará com duas edições, haja vista o número expressivo de artigos recebidos.
Organizamos os artigos a partir de uma cronologia que nos permitiu perceber as mudanças das politicas públicas no Brasil e na Amarica Latina através dos tempos. Para entender os que chamamos de “direitos humanos” é necessário perguntar ao passado como foram produzidas as práticas de assistência no campo da política e da legislação.
Marcia Cristina Ribeiro Gonçalves Nunes, no artigo intitulado O “velho” Lemos como transformador do Orphanato Municipal, problematiza a questão da educação das meninas a partir da atuação de Antônio Lemos, em Belém do Pará, na Primeira República. Ainda sobre este período, as contribuições de Fabiano Quadros Rückert, em A infância pobre no Brasil da Primeira República: um panorama das pesquisas, possibilitam analisar como a relação entre infância e pobreza passou a ser colocada em tela pela historiografia nacional.
Seguindo em direção aos anos de 1930 e 1940, os artigos A Institucionalização do Atendimento aos Menores – O SAM, de Fabíola Amaral Tomé de Souza e A “mocidade brasileira” em formação: concepções e investimentos sobre os corpos jovens, escrito por Sonia Deus Rodrigues Bercito, colocam na seara de debates as políticas nacionais voltadas para crianças e jovens, impulsionados pelo Governo Vargas.
Para contemplar a chamada “era dos direitos”, os artigos de A responsabilidade compartilhada no Direito da Criança e Adolescente como dimensão da solidariedade: intersecção entre público e privado, escrito por Ismael Francisco de Souza e Tijolo por tijolo num desenho lógico: crianças e adolescentes brasileiros, de objeto de medidas a sujeitos de direitos, de Elisangela da Silva Machieski, iniciam o debate as questões referentes sobre os direitos humanos de crianças e adolescentes no Brasil, buscando produzir reflexões sobre a historicidade das legislações nacionais.
As contribuições de Alessandra Nicodemos, em Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua: aspectos históricos e conceituais na defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente no Brasil, e da pesquisadora Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura, em Infância, adolescência e direitos humanos no conflituoso século XX: o direito à informação no contexto da árdua construção da democracia brasileira, contribuem para o debate sobre os movimentos sociais e as tensões que marcam as mobilizações em torno dos direitos humanos.
Já o artigo de autoria de Silvia Maria Fávero Arend e Reinaldo Lindolfo Lohn, intitulado Sobre a oitiva de crianças e adolescentes na justiça: protagonismo em debate (1989-2017), contempla a complexa questão da cidadania infanto-juvenil e sua relação com o Sistema de Justiça. Ainda sobre a questão dos dispositivos legais, o texto Referências institucionais para a produção descolonial dos direitos das indígenas crianças: os casos do trabalho infantil e da violência sexual, de Assis da Costa Oliveira, coloca na seara de debate a questão das violências praticadas contra as indígenas infâncias.
Por fim, dois artigos trazem abordagens transdisciplinares sobre os conceitos de infância e direitos humanos. Referimo-nos aos artigos A noção de infância e adolescência: inflexões decoloniais sobre os direitos de crianças e adolescentes na América Latina, escrito por Norberto Kuhn Junior e Bárbara Birk de Melo, e De Menores Incapazes e Imputáveis a Sujeitos de Direitos: os Direitos Humanos das Crianças e Adolescentes desde as Históricas normativas Internacionais, de autoria de Sheila Stolz. Eles nos fazem pensar como problematizar o conceito de infância e a relação com os direitos humanos. Além desses 12 artigos que compõem o dossiê temático, temos a resenha, de autoria de Thiago Nascimento Torres de Paula, sobre um livro clássico que neste ano ganhou sua segunda edição: História das crianças no Brasil meridional.
Debruçar-se sobre os esses estudos nos faz perceber que o século XX não foi “perdido” e que o XXI vem sendo marcado por grandes desafios no campo da política e da legislação, inclusive, para produção historiográfica. A reunião dessas pesquisas, que compõe um efetivo “dossiê” e que traz para a leitora e para o leitor a possibilidade de conhecer a produção de trabalhos, tem como objetivo protagonizar o lugar das infâncias e juventudes como sujeitos históricos e suas histórias.
Contudo, é importante perceber a produção história do conceito de direitos humanos, que por sua vez é marcado por mudanças e permanências. Pelo tempo de caridade e do assistencialismo, pelo tempo do “bem-estar” e das mobilizações em torno da chamada cidadania infanto-juvenil.
Diante das reflexões, é importante afirmar que ao produzir este trabalho assistimos os meninos Miguel (5 anos de idade) e João Pedro (14 anos de idade) perderem suas vidas. Testemunhamos as meninas Ághata (8 anos de idade), Emilly Victoria (4 anos de idade) e Rebeca Beatriz (7 anos de idade) perderem suas vidas.
É neste tempo nebuloso que somos provocados a (re)pensar o “fazer história” nos arquivos, nas bibliotecas e nos espaços de memórias… O “fazer história” é chamado a pensar o compromisso social do ofício das historiadoras e historiadores como uma questão ética e com a política científica, uma vez que negar-se ou silenciar-se diante do extermínio de meninos e meninas é uma forma de “violência epistemológica”, marcada neutralidade científica, firmada na racionalidade disciplinar, que busca se dissociar dos valores sociais e políticos (SANTOS, 2007).
Mas, silenciar ou negar-se a discutir é uma forma de se posicionar no mundo e nós decidimos que não vamos silenciar e negar que este Dossiê foi produzido no período pandêmico [2], onde a vida de meninos e meninas foram (e estão sendo) exterminadas. Neste “tempo sombrios, falar de mortes é se comprometer com a vida. Especialmente, com as vidas negras, pobres e periféricas. Netos ou bisnetos da escravidão, da relação entre a “casa grande e a senzala”, de um passado colonial que insiste em permanecer no tempo presente. É para essas meninas e meninos que este Dossiê é dedicado.
Rio Grande / RS-Recife / PE, Verão de 2020
Notas
1 Sobre adultocentrismo, ver: ABRAMOWICZ, Anete; RODRIGUES, Tatiane C.. Descolonizando as pesquisas com crianças e três obstáculos. Educação e Sociedade. Campinas, v. 35, n. 127, p.461-474, abr-jun. 2014.
2 Em 2020 o mundo foi obrigado a viver a Pandemia do Novo Corona Vírus – Covid 19. No Brasil, a crise pandêmica foi marcada por tensões sociais e políticas, onde a sociedade assistiu o crescimento da violência praticada contra crianças e adolescentes negros. Sobre a Pandemia ver: SANTOS, 2020.
Referências
ABRAMOWICZ, Anete; RODRIGUES, Tatiane C.. Descolonizando as pesquisas com crianças e três obstáculos. Educação e Sociedade. Campinas, v. 35, n. 127, p.461-474, abr-jun. 2014.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. VOL.: 1. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2007. _______. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Edições Almedina, 2020.
Humberto da Silva Miranda – Doutor e Pós- Doutorando em História. Professor Adjunto na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).
José Carlos da Silva Cardozo – Doutor e Pós-Doutor em História Latino-Americana. Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
Organizadores do dossiê temático
MIRANDA, Humberto da Silva; CARDOZO, José Carlos da Silva. Apresentação. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v.12, n. 24, jul. / dez., 2020. Acessar publicação original [DR]