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São Paulo nos séculos XVI-XVII | José Jobson de Andrade Arruda
A Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, em parceria com a Organização Social de Cultura POIESIS, publicou recentemente a Coleção História Geral do Estado de São Paulo, de cinco volumes, coordenada por Marco Antonio Villa. Além de uma produção gráfica capaz de embelezar as prateleiras de qualquer biblioteca, cada volume inclui uma apresentação do ex-governador paulista José Serra, um prefácio produzido pelo empresário e então secretário da Cultura Andrea Matarazzo, e algumas considerações escritas por Villa e pelo diretor-presidente da IOESP, enfatizando o caráter didático da coleção. O teor político da iniciativa assemelha-se a diversos outros projetos que nos últimos dois séculos foram pensados para contribuir à construção de identidades regionais favoráveis aos interesses daqueles que os governam, o que demonstra a vocação dos atores já citados como representantes de uma classe dominante no Brasil: tratar-se-ia de estabelecer os traços distintivos do espaço e da população paulista (cosmopolitismo, pluralidade demográfica, dinamismo econômico etc.), mostrar aos líderes estrangeiros “a história e a pujança do estado” (p. VII), sustentar a condição e o valor de São Paulo no conjunto do país.
Não obstante, o objeto de reflexão da presente resenha não é a referida coleção em seu conjunto, mas apenas o primeiro volume que a compõe, intitulado “São Paulo nos séculos XVI-XVII” e escrito por José Jobson de Andrade Arruda, conhecido sobretudo por suas contribuições aos debates marxistas que entre as décadas de 1960 e 1980 refletiram sobre a realidade colonial brasileira, advogando com Fernando Novais a favor da tese do Antigo Sistema Colonial.
A influência teórica do materialismo histórico sobre o autor é sensível já no primeiro capítulo de seu livro. Intitulado “O longo século do sertanismo paulista”, sintetiza a história de São Paulo nos dois primeiros séculos desde o primeiro contato de ameríndios e europeus, e propõe uma temporalidade que não se enquadra nos limites cronológicos formais da categoria século (enquanto rígido intervalo de cem anos). Se, por um lado, a maior parte das expedições dos moradores paulistas ao sertão ocorreu durante o século (cronológico) XVII, por outro lado a prática deitou raízes no século anterior, prolongando-se por algumas décadas além de 1700. Já por volta de metade da obra, Arruda esclarece:
Se identificarmos o sertanismo como movimento organizado, constituído por expedições de caráter oficial, privado ou misto, das mais ou menos abrangentes, sem se considerar se estão à procura de ouro ou do apresamento de índios, poderíamos demarcá-lo, grosso modo, entre 1522 e 1722: da infausta incursão do náufrago Aleixo Garcia ao Peru até a expedição de Bartolomeu Bueno da Silva, o Moço, que vagueou pelo sertão no rumo das Gerais, tentando lembrar-se do roteiro que seu pai percorrera 40 anos antes, e do qual ele participara, acabando por encontrar amostras de ouro nas proximidades de Goiás. (p.85)
Nem a passagem reproduzida, nem o capítulo mencionado são explícitos quanto à conceituação exata de “longo século do sertanismo paulista”, cuja compreensão de suas páginas requer certo grau interpretativo. Tal como o assim chamado sertanismo, o conjunto da história de São Paulo nos séculos XVI e XVII não equivale, conforme sugere Arruda, ao recorte 1501-1700, mas se iniciaria com a chegada de Martim Afonso em 1532 e se encerraria entre 1709 e 1711, com a criação da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro e com a elevação da vila São Paulo de Piratininga à condição de cidade, o que basicamente corresponde à periodização sertanista descrita acima. Duas conclusões são disso decorrentes: em primeiro lugar, que a história geral de São Paulo nos séculos XVI e XVII equivale à história particular das expedições sertanejas, ambas constituintes do “longo século” de sertanismo no planalto. A outra conclusão é a de que “o movimento ondulante da história não obedece à compartimentagem astronômica do tempo” (p. 2). É certo que, neste ponto, o autor não considera que o que chamou de “compartimentagem astronômica do tempo” constitui também referencial socialmente construído, não sendo simples dado natural e não podendo, portanto, ser apresentado como deslocado da própria história. De qualquer maneira, o ângulo de percepção relacionado ao uso da expressão “longo século” deve remeter o leitor às interessantes controvérsias historiográficas travadas no interior do materialismo histórico sobre as diferentes formas de se caracterizar (como “breve” ou “longo”) o século XX, envolvendo intelectuais como Eric Hobsbawm e Giovanni Arrighi.
O autor demonstra notável capacidade para transportar-se livremente entre as diferentes esferas de nosso passado colonial: da procura europeia pelo maravilhoso e pelo desconhecido (capítulo 2) aos primeiros esforços de ocupação e colonização do Novo Mundo, particularmente das terras de Piratininga (capítulos 3 e 4); da tentativa e posterior fracasso em fazer emergir a economia açucareira exportadora no litoral vicentino (capítulo 5) às relações entre os principais agentes históricos dos séculos XVI e XVII paulista – basicamente jesuítas como Nóbrega e Anchieta e colonizadores como João Ramalho, cujos principais detinham poder exclusivo na câmara municipal – (capítulo 6); do complexo de atividades sertanistas (capítulo 7) à configuração espacial e econômica do planalto (capítulo 8); por fim, dos costumes domésticos e familiares (capítulo 9) ao produto cultural resultante da interação entre saberes e práticas de portugueses e nativos (capítulo 10).
Tudo isso sustentado num conjunto documental e bibliográfico extenso, especialmente se comparado ao de outras obras voltadas à divulgação para o público iniciante. São mencionadas cartas, descrições, relatos e memórias de viajantes e missionários que viveram ou estiveram na América ao longo dos primeiros dois séculos após o contato (Anchieta, Nóbrega, Cardim, Gandavo, Léry, Staden, Thevet etc.). Cita igualmente produções historiográficas consagradas (como, por exemplo, a de Afonso de E. Taunay, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Jaime Cortesão e Richard Morse), artigos diversos e dissertações não publicadas.
No plano geral do livro, o saldo de sua abordagem que procura sintetizar as conclusões de um amplo material de pesquisa historiográfica sobre São Paulo colonial é positivo. Segundo o autor, a prática sertanista condicionara a dinâmica espacial, política, econômica e cultural da região meridional da América Portuguesa, ou seja, “foi a mola mestra de sua propulsão histórica, a energia vital que conferiu um sentido de formação a São Paulo de Piratininga” (p. 7). Arruinada a maior parte dos engenhos e plantações de açúcar no litoral vicentino, devido à escassez de mão de obra nativa (fruto das epidemias que assolaram a região entre 1559 e 1562), restava aos moradores repor essa força de trabalho a partir de novas investidas ao sertão, dada a dificuldade de “reprodução organizada da população nativa” (p. 57). Especialmente em torno dos índios conduzidos à povoação através dos descimentos, se estabeleceu a oposição entre jesuítas e colonos. Para estes, tratar-se-ia de arrematar braços para a lavoura; para os outros, em linhas gerais, possibilitar o seu trabalho missionário. O mote de toda a vida no planalto resultaria do contato entre brancos e nativos e do uso da mão de obra indígena, o que condicionara a São Paulo uma “experiência [histórica] absolutamente nova” (p.121), definida no intercurso cultural entre as duas partes. Aqui, porém, reside grave exagero, já que a interação social entre índios e europeus como elemento central da evolução histórica está longe de ser aspecto particular do caso paulista, sendo patentemente análogos os exemplos paraense e de outras tantas áreas coloniais então pertencentes à Coroa espanhola.
Passagens com explanações lacônicas, ainda que de dimensão meramente localizada, também estão presentes no volume produzido por Arruda. Por exemplo, no quinto capítulo Arruda explica que a substituição do trabalho autóctone pelo dos negros de origem africana nas áreas centrais da colônia, a partir de fins do século XVI, se deveu a dois aspectos primordiais. Em primeiro lugar, o impacto sofrido pelos negros em seu deslocamento ao continente americano, o que teria impedido sua resistência organizada. Em segundo, o comércio de africanos, vendidos a exorbitantes preços, representou uma atividade cuja lucratividade atraiu fortemente os mercadores europeus e, posteriormente, brasílicos. “Lucratividade que se tornou elemento importante no circuito ampliado de acumulação de capitais” (p. 57).
Todavia, quando o autor transporta sua análise ao espaço periférico paulista, apenas justifica a necessidade de expedições sertanejas pela impossibilidade de reprodução endógena da população escrava nativa já submetida ao cativeiro. Inexiste, neste ponto, qualquer esclarecimento sobre por que não se considerou naquele momento, como de fato se considerou em outras regiões, a possibilidade de reposição da força de trabalho com cativos provenientes do tráfico ao invés de índios ainda em condição tribal. Percebido o problema, Arruda poderia tê-lo atribuído, por exemplo, à oferta relativamente parca de cativos pelo comércio negreiro ainda em expansão, que devia privilegiar as áreas produtivas mais rentáveis, e à riqueza insuficiente dos paulistas para adquirir negros africanos, aspectos talvez pressupostos, mas ainda assim ausentes da análise do autor.
A questão poderia perfeitamente passar despercebida pela maioria dos leitores, sem lhe resultar qualquer incômodo. Mas há algo que dever causar grande desconforto a todos nós, aspecto que não se localiza propriamente no conteúdo da obra, mas no plano geral de sua linguagem. A fim de instrumentalizar a exposição da análise, Arruda faz largo uso de recursos metafóricos, especialmente aqueles de teor mecânico, técnico e biológico: “dilatação”, “contração”, “mola mestra” e “propulsão histórica” (pp. 4 e 7); “vigas mestras”, “peças fundamentais” e “suporte” (pp. 63, 67 e 73); “energia vital”, “eficiência adaptativa”, “semente” e “fruto”, “atmosfera” (pp. 7, 22, 49 e 90). Quando utilizada para descrever a dinâmica de funcionamento e/ou os processos de mudança a partir dos quais interagem coletivamente homens e mulheres no tempo e no espaço, esta forma de linguagem figurativa é benéfica por ser capaz de ilustrar o movimento concreto da história, o que em alguns casos pode ser difícil realizar-se de outra maneira. Porém, quando aplicada à caracterização de personagens ou, no limite, de grupos sociais determinados, o procedimento transforma-os em mero monumento, passando-se a defini-los não pela relação com os diferentes agentes históricos, mas por meio de um retrato formal, um estereótipo.
José Jobson Arruda transita entre uma e outra forma de utilização das figuras de linguagem. Quando as utiliza para caracterizar os colonizadores paulistas dos séculos XVI e XVII, elabora construções como as seguintes: “Figuras estranhas, envoltas em densas brumas” (p.31); “Homens temerários.” (p.90); “Seres rústicos. Mais feras que homens. Aculturados às avessas, surgiam em seus trajes mateiros como bestas pré-históricas.” (p.90); “Um povo em marcha, em busca de remédio para sua existência” (p.91); “Os paulistas eram feras” (p.111). Se, por um lado, o autor se distancia dos historiadores que no início do século XX atribuíam aos bandeirantes feições de uma verdadeira aristocracia europeia, por outro deles se aproxima no procedimento de explicação histórica pela construção de “tipos” artificiais para caracterizar populações determinadas. Seja pela projeção do nobre europeu, seja pela do selvagem pré-histórico aos paulistas, trata-se de caricaturas românicas que pouco ou nada dizem a respeito da realidade que se busca descrever.
É certo que o autor não compartilha a gama de preconceitos étnico-raciais que marcaram, por exemplo, a obra de Afonso de E. Taunay no início do século XX. Isso fica claro no epílogo do livro, no qual são discutidas as relações de poder expressas na preservação de imagens construídas pelo homem branco vencedor através dos museus, da literatura e da arte. Porém, Arruda ignora o fato de não ser apenas uma ou outra imagem cristalizada na memória social que impõe barreiras à compreensão do passado, mas também os procedimentos em si de produção e divulgação de imagens estáticas da história (ainda que se trate de imagens estáticas caracterizadas pelo movimento, como é o caso da noção “sertanismo”- noção à qual, aliás, não atribui sentido específico, aparecendo ora como categoria auto explicativa, ora simplesmente como fenômeno característico de uma época). A própria imagem do paulista rústico e bestializado pelo meio, caso absorvida inteiramente pelo público-alvo (vale recordar, iniciantes no assunto), favorece a sedimentação social de estereótipos diversos.
Internamente, tais construções não desvalorizam por completo o conjunto da obra, pois ocupam parágrafos isolados e frases passageiras que não estabelecem relação necessária com o restante do livro. Todavia, é precisamente em tais passagens que se cumpre a função política da coleção à qual pertence o volume analisado, a de divulgar uma identidade regional idealizada por expoentes da classe governante. Das tintas carregadas com que, nesses trechos, Arruda pinta o paulista feroz, parece ressurgir a aristocrática figura de Taunay, trajado agora como fidalgo da moderna sociedade industrial.
Gustavo Velloso – Graduando em História pela FFLCH – USP. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
ARRUDA, José Jobson de Andrade. São Paulo nos séculos XVI-XVII. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; POIESIS, 2011. Coleção História Geral do Estado de São Paulo, v.1. Coordenação Geral: Marco Antonio Villa. Resenha de: VELLOSO, Gustavo. Taunay ressuscitado: São Paulo nos séculos XVI-XVII. Cadernos de Clio. Curitiba, v.4, p.379- 386, 2013. Acessar publicação original [DR]