Posts com a Tag ‘História da vida privada’
Histórias e conversas de mulher | Mary Del Priore
A historiografia contemporânea tem focado cada vez mais nos estudos acerca da história das mulheres, principalmente pondo-as como sujeito histórico, consciente ou não de sua condição de submissão e passividade ao longo da história, e que hoje já se percebe transitando espaços antes ocupados pelos homens. Nesta seara, a historiadora Mary Del Priore tem se debruçado em arquivos diversos, traçando assim a história do Brasil desde o período colonial aos nossos dias, com foco em questões tidas como tabu, como é a questão da sexualidade e do erotismo; as mulheres na sociedade; enfatizando os acontecimentos com riqueza de detalhes, prendendo assim seu leitor até o final.
A autora é referência em história das mulheres, tendo publicado os clássicos: História das Mulheres no Brasil, Ao Sul do Corpo, Corpo a Corpo com a Mulher, Histórias Íntimas, Histórias e Conversas de Mulher e contribuiu na organização de outras obras sobre a História do Brasil. Leia Mais
História da vida privada em Portugal. A Idade Moderna – MONTEIRO; MATTOSO (Tempo)
MONTEIRO, Nuno Gonçalo (Org.); MATTOSO, José (Dir.). História da vida privada em Portugal. A Idade Moderna. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011. 494 p. Resenha de: MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Do privado ao oculto. Tempo v.18 no.32 Niterói 2012.
O segundo volume da coleção editada pelo Círculo de Leitores tem como referência a edição francesa de 1986. Mas, escrito em outro momento e sobre o contexto mais delimitado de Portugal na época moderna, o livro organizado por Nuno Monteiro, sob a direção de José Mattoso, evita os paradigmas do Estado justiceiro e financista, bem como da família moderna, para explicar o surgimento de uma suposta esfera privada em Portugal, contraposta à pública. Na introdução, Monteiro alerta para a distinção entre os dois âmbitos, só consagrada na contemporaneidade. Conscientes do anacronismo da proposta para o período, os autores esmeram-se para abordar temas hoje considerados da vida privada, mas que na época moderna, em Portugal, não o eram. Desse modo, o volume confronta os modelos propostos por Habermas, Elias ou Ariès com investigações recentes da historiografia portuguesa. Questionam-se o teleologismo da ideia de modernização e a aplicação de uma cronologia de matriz francesa na história de Portugal, em que a afirmação da monarquia não foi linear, e a difusão da leitura e da escrita, limitada à época estudada. Trata-se, assim, de contemplar os temas questionando sua procedência. Essa é uma característica do livro, em um entrecruzar de teoria e empiria que marca o ofício do historiador. Se os portugueses modernos não viajaram muito a outros reinos europeus, circularam pela Espanha durante a união das coroas e pelos espaços ultramarinos, construindo, também, sua privacidade integrada ao mundo colonial, em especial à América portuguesa. Procurou-se, ainda, não escrever uma história do cotidiano ou da cultura material, embora a fronteira entre esses aspectos e a “vida privada” fosse tênue.
O volume em tela divide-se em cinco partes. A primeira trata dos poderes normatizadores da monarquia e da Igreja – sobretudo pós-tridentina. Com dois capítulos de António Manuel Hespanha e um de Joaquim Ramos de Carvalho, salta aos olhos a discrepância de abordagens. Hespanha adota a macroanálise para explicar a importância da ordem, do controle e do autocontrole no mundo ibérico, em uma sociedade que vigiava a si mesma. E particulariza os juristas, detentores dum saber especializado e de cargos na monarquia, como grupo social acima da pluralidade de poderes. Os juristas integravam uma cultura escrita afinada a um mundo dominado pelo direito em latim – uma língua quase sacral. O discurso jurídico era meio de distinção social e de eficácia da lei. Já Ramos de Carvalho analisa a Igreja, os indivíduos e os territórios de forma mais concreta, com riqueza factual e alusões a comportamentos em que o privado era associado ao ilícito ou oculto, em meio a visitas pastorais, devassas, denúncias e castigos. Nesse âmbito, as determinações tridentinas não encontraram oposição do poder régio em Portugal, diferentemente de outros países europeus. Constituía-se, assim, uma sociedade em que a articulação entre o privado e o público marcava-se pelas concepções de salvação e pecado.
Na segunda parte, que analisa as relações entre indivíduos e famílias, Isabel dos Guimarães Sá considera o tratamento distinto da infância por parte dos pais em relação à mocidade, quando a expectativa de morte dos filhos enfim diminuía. Os jovens portugueses não teriam muita margem de decisão: os primogênitos estudavam pouco devido ao sistema de morgadio, as viagens europeias não eram frequentes, tampouco os manuais de civilidade. Os das camadas populares eram amamentados pelas mães biológicas, e a proliferação do abandono de crianças expostas geraria o sistema da roda em 1783. Em vários tópicos, a autora relativiza as ideias propostas por Ariès, pois, no que toca às crianças, a esfera familiar passava mais ao controle público da Igreja ou da coroa. Por sua vez, Ramos de Carvalho aborda as sexualidades sob o prisma do “padrão de casamento europeu” vigente em Portugal. Nessa lógica, faz sentido o relato da mulher mais velha e órfã em Soure, ao início do século XVIII, que consumara relações sexuais antes do casamento para conseguir um marido improvável. A vida sexual baseava-se no controle dos instintos, mediante o casamento tardio, a contracepção e a pressão da Igreja. No entanto, o sistema permitia conflitos e hesitações em torno da sexualidade ilegítima. A esfera familiar como entrave ao privado retorna no capítulo de Monteiro sobre a casa nobre – acepção diferente da “família moderna” e defendida pelo autor como central na sociedade estudada. Contrariando a ideia de que os nobres acompanhavam as transformações sociais e psicológicas dos séculos XVII e XVIII, Monteiro observa o controle dos casamentos pela monarquia portuguesa no período, com o fortalecimento da primogenitura e a nobreza ou fidalguia transmitidas por linha paterna ou materna – diferentemente de outros países europeus. Mas a diversidade não seria pensada em termos de atraso ou situação periférica, pois no século XVI a Península Ibérica era centro de referências.
A terceira parte é a mais longa do livro, com experiências do privado em vários espaços. Pedro Cardim estuda a corte régia com referência inequívoca à teoria de Elias, inclusive no tocante às relações entre indivíduo e sociedade. Indaga-se até que ponto esse modelo francês seria pertinente a Portugal, onde não havia nobreza de corte até meados do século XVI e onde a austeridade dos primeiros reis Braganças produziu uma corte pouco sofisticada no XVII. Supõe, assim, que a afirmação da corte lusa como arquétipo social foi mais gradual que em outros reinos europeus. Não obstante, concede atenção a cartas de cortesãos, reis e rainhas, a áreas reservadas do palácio, à vida familiar e de corte, por fim, a ministros “privados” ou favoritos régios. Em seguida, Mafalda Soares da Cunha e Nuno Monteiro voltam ao tema das “grandes casas”. Em Portugal, elas tiveram origem em uma mercê régia e confundiam-se com os fidalgos convocados para assembleias de cortes. No século XVII, os principais nobres portugueses passaram a residir em Lisboa. Embora não fossem refinadas, as grandes casas tinham vários andares e muita gente: senhores, filhos sucessores (mesmo casados), irmãos, tios e criados. O tamanho da criadagem relacionava-se com a importância do titular da casa; de modo semelhante ao ocorrido em Madri, mas diferente dos casos inglês e francês. Em termos de divisões internas, constata-se um aumento dos corredores e do espaço “privado”; mas a cozinha continuava imensa. Não havia apego às artes, e eram poucos os nobres partícipes de academias literárias. A análise das bibliotecas e coleções foi prejudicada pelo terremoto de 1755.
Também na terceira parte, Fernanda Olival ocupa-se dos lugares do privado nos grupos populares e intermédios. Na difícil tarefa de estudar segmentos sociais tão heterogêneos, a perspectiva de encontrar “muita gente em uma só casa” é detalhada pela autora ao lidar com registros paroquiais e concelhios de vários pontos do país. Mas os agregados não eram apenas consanguíneos: aprendizes moravam com seus mestres; caixeiros, com os mercadores. Em todo caso, a dimensão de uma família seria semelhante à média europeia, de quatro a seis pessoas. No interior das habitações, a privacidade era reduzida em relação à rua pelas janelas sem vidros, e aos vizinhos, pelas frestas. As divisões internas variavam, sendo também analisadas por áreas geográficas portuguesas. Olival envereda, então, pelo uso dos colchões, esteiras, leitos, estrados, oratórios e “privadas” – no que flerta com a cultura material. No campo da higiene pessoal, vale-se de exemplos franceses para constatar sua precária existência em Portugal, mediante inventários e tombos. A casa dos setores médios e populares era mais abrigo que refúgio de intimidade, enquanto o “privado” era associado ao interdito ou velado. A propósito, outro capítulo de Isabel Sá compreende os ambientes que alteravam a identidade de seus internos. Nos conventos femininos, entre clarissas e carmelitas descalças, a autora analisa a dependência de esmolas das primeiras, a relação com o século, as beatas, os princípios de entrada em uma ordem religiosa. Aborda, então, a prática do cilício e as disciplinas, a roda e o ralo como meios de comunicação com o exterior, e a moda freirática nos séculos XVII e XVIII. Sim, muitas freiras eram cultas e atraíam os homens. Mas a escrita conventual podia relatar experiências místicas arriscadas à perseguição inquisitorial, sobretudo se vindas de cristãs-novas. Sente-se falta, aqui, da menção aos conventos masculinos. Com consultas às obras de Francisco Manuel de Melo e Rafael Bluteau, os recolhimentos com estada provisória para mulheres também são contemplados, bem como as casas de misericórdia, sua distribuição de dotes e a assistência em segredo aos “pobres envergonhados” – diferentes dos que expunham a miséria nos hospitais. Misericórdias que também assistiam aos presos, pois nos cárceres portugueses a segregação não era total. Mas as condições de higiene das prisões eram péssimas, e nelas vigia a mistura de crimes e condições, albergando inclusive loucos.
Portugal foi dos primeiros países a valer-se da pena do degredo, em uma hierarquia de lugares: do degredo interno ao Brasil, até as ilhas de São Tomé e Príncipe e África. Ainda na terceira parte, viaja-se para a América portuguesa, pelo recorte feito por Laura de Mello e Souza ao relatar aspectos da vida privada dos seus governadores no século XVIII. Até meados desse século, para esses homens o novo cargo significava a ruptura com a vida familiar, a solidão combatida no trabalho. Sentiase medo do desconhecido, do clima, das revoltas, das expedições. A autora explora os cardápios dessas aventuras pelo Sertão, os alimentos dos matos e a penúria de meios. Quanto às casas desses governadores, só por eufemismo eram chamadas “palácios”. Nesse tópico, é pena não se ter explorado a escravidão doméstica. Os administradores criavam, pela correspondência, uma solidariedade com colegas de governo no interior do Brasil, ou com os que estavam de passagem vindos da África ou da Índia. Forjavam-se, assim, relações pessoais: as cartas do marquês de Lavradio, vice-rei no Rio de Janeiro, mostram como ele escrevia menos aos amigos da corte e cada vez mais aos governantes de outras regiões, de quem se sentia mais próximo. O que era público tornava-se privado.
No único capítulo da quarta parte, João Luís Lisboa e Tiago C. P. dos Reis Miranda dedicam-se aos usos da leitura e da escrita. De forma original, relativizam as diferenças entre manuscrito e impresso. Mas o impresso, mais que o manuscrito, forçava a entrada do livro nos espaços privados. Analisam as novas formas de sociabilidade em torno da escrita, enquanto a leitura tornava-se individualizada e silenciosa. Contudo, são atentos à alta “iliteracia” em Portugal no contexto do sul europeu, diferenciando o saber assinar do escrever e ler. Mas, em parte devido a reformas clericais que repercutiam no ensino, o público leitor era alargado. Com mais escolas, aprendiam também os de novas profissões, além das moças, que passavam a escrever. Surgiam, assim, os gostos literários: nas bibliotecas dos juristas, os livros de direito, história, política e administração; já os nobres eram mais ecléticos, enquanto os romances agradavam aos mercadores. O apreço pela posse dos livros fica evidente nas inscrições encontradas em alguns deles, ameaçando quem os perdesse. Envereda-se, então, pelos usos da correspondência, na preocupação com o estilo das cartas próprio de uma sociabilidade cortesã, familiar ou amical. Desse modo, a publicação de cartas é contraposta às que deveriam permanecer secretas; por exemplo, na conjuntura da prisão dos Távoras.
A última parte contrapõe velhas e novas relações entre vida privada e política. Mafalda Cunha e Nuno Monteiro estudam as mobilizações de nobres e comunidades. Definem um contexto paradoxal, com persistências e novidades em relação ao medievo: os conflitos políticos continuavam pulverizados, mas as demandas eram, então, dirigidas aos tribunais régios – e não mais às cortes. A dissimulação era admissível para alguns, como resguardo de oportunidade, reveladora da virtude da prudência. Em decorrência, havia grande concorrência social, indissociável da “microconflitualidade”. A exposição esquemática ao início do capítulo ganha vida com a exposição de casos. Entra-se, assim, nas brigas de senhores, suas criadagens e clientelas nos séculos XVII e XVIII em Lisboa, quadro que pode explicar a inexpressividade de duelos e grandes motins em Portugal à época. Por fim, Maria Alexandra Lousada aborda o espaço público luso setecentista nas novas sociabilidades culturais, mormente em academias, salões e cafés – espaços “informais” distintos da corte e do governo. Justifica, assim, o não tratamento das maçonarias no capítulo, tidas como grupos formais. O argumento é frágil, uma vez que as tardias academias portuguesas guardavam forte relação com o poder régio, e as maçonarias eram sociedades secretas. Não obstante, as várias remissões a Habermas fazem mais sentido neste último texto, ao captar suas definições de “público” e “burguês”. A autora situa o debate historiográfico com interpretações díspares sobre a vida cultural em Portugal ao fim do Antigo Regime. Se os trabalhos sobre academias literárias são bastante conhecidos, salta aos olhos a análise das assembleias – mais mundanas e menos literárias que os salões – e dos outeiros – reuniões poéticas nas grades de conventos femininos. Adentramos, enfim, os cafés do final do século XVIII, com Bocage e a boemia literária lisboeta, sob a vigilância do intendente Pina Manique. Embora eles não tenham originado clubes como em Londres ou Paris, constituíam um espaço “semipúblico” fora da influência acadêmica ou aristocrática. Neles, os atos de governo eram comentados.
Seria desejável, no decorrer do livro, um maior cuidado na uniformidade do uso de maiúsculas ou minúsculas nos nomes de instituições, épocas etc., além de um apreço da editora pela reforma ortográfica, que beneficia todo o mundo lusofônico forjado por Portugal na época moderna. Apesar das lacunas temáticas verificadas ao longo da obra, algumas justificadas pela dificuldade das fontes, outras revelando adequação às especializações dos autores, o volume organizado por Nuno Monteiro sobre a vida privada no Portugal moderno possui um grande mérito, porque consegue transpor para a especificidade portuguesa da época conceitos que não foram pensados para ela, sabendo-os discutir e problematizá-los. Faz despontar, assim, uma privacidade lusa refém da conversão forçada ao catolicismo e das disposições de Trento, bem como da opulência de algumas casas nobres que sufocava, justamente, esse âmbito particular. Tal engenho decorre em parte da capacidade de pesquisa de muitos autores, e de sua erudição. Não obstante, a passagem de abordagens entre o abstrato e o concreto é, por vezes, abrupta na obra, e em alguns momentos não há harmonia dentro de um mesmo capítulo. Ainda assim, louva-se o empenho da equipe de autores – em geral, mais afeita ao signo da alteridade do “Antigo Regime” do que à etiqueta progressista de “Idade Moderna” que sela a obra – em manejar com habilidade esse deslocamento conceitual. Resta saber se a historiografia francesa contemporânea hoje produziria um volume bastante diferente daquele de 1986, ou os modelos pioneiros permanecem com a sua força para inspirar trabalhos tão interessantes.
Rodrigo Bentes Monteiro – Professor-doutor da Universidade Federal Fluminense.
História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa – SOUZA (VH)
MELLO e SOUZA, Laura de Mello e (Org.). História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 (História da Vida Privada no Brasil, 1). Resenha de: RODRIGUES, André Figueiredo. Varia História, Belo Horizonte, v.16, n.22, p. 211-214, jan., 2000.
” … verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas. porque toda ela não é república, sendo-o cada casa”. Esta é uma frase da epígrafe do primeiro capítulo da publicação História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa, livro organizado por Laura de Mello e Souza, primeiro volume da coleção História da Vida Privada no Brasil, dirigida por Fernando Novais. A frase, extraída da obra História do Brasil (1500- 1627), escrita por nosso primeiro historiador, frei Vicente do Salvador, anuncia o primeiro problema encarado pelos autores do livro e que constitui motivo central da reflexão de Fernando Novais: o desenvolvimento do espaço privado sem que a vida privada estivesse totalmente consolidada. Os níveis de público e privado estão enredados. A noção de privado está associada à formação da nacionalidade, como nos alerta Novais. Assim, a rigor, não existiria uma “vida privada” durante o período colonial, mas só a partir do século XIX, momento da formação de um Estado Nacional.
Guiando-se pelos passos de Philippe Ariês e Georges Duby, que coordenaram a edição de uma História da Vida Privada para a Europa ocidental [Histoire de la Vie Privée. Paris: Seuil, 1985], os historiadores que escreveram a versão brasileira alargaram o conceito de vida privada, considerando as especificidades da América portuguesa e particularizando-o ao abordarem cada um dos temas tratados.
A forma de trabalho adotada para a elaboração de nossa história da vida privada inspirou-se na Nova História e, de resto, nos Annales. Desde 1929, com a criação da revista francesa Anais de História Econômica e Social por Marc Bloch e Lucien Febvre, as observações sobre o cotidiano de um determinado momento, de uma localidade ou de uma personagem, assim como as suas crenças, as suas atividades e valores sociais, políticos e econômicos são retratados, além de serem auxiliados pelo intercâmbio com as outras ciências humanas, como a antropologia e a sociologia. Optou-se por uma história narrativa como forma de expressão do pensamento, da linguagem, dos hábitos, de gestos, de amores e das sensibilidades. A obra em questão procurou combinar e articular diversas propostas temáticas da história da cultura, do cotidiano e das representações sociais, advindas de uma historiografia não só francesa, mas inglesa e italiana. É preciso ressaltar, ademais, que o livro é tributário de dois marcos nas ciências humanas no Brasil: Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. Por fim, o livro prossegue o esforço inaugurado pelo pioneiro Vida Privada e Quotidiano no Brasil na Época de d. Maria I e de d. João VI, de Maria Beatriz Nizza da Silva, obra que já havia retratado aspectos dessa temática entre nós historiadores.
A influência antropológica e sociológica de Gilberto Freyre, um dos pioneiros nos estudos sobre a sexualidade e a religiosidade do “brasileiro”, é observada nos capítulos da obra. Freyre mostrou que a sexualidade poderia ser apreendida em manifestações cotidianas e, por outro lado, que o cotidiano da América portuguesa impunha a preocupação acentuada com as questões sexuais: na vastíssima colônia, portugueses, ameríndios e, depois, também os negros, mergulharam de corpo e alma em deleites sexuais; além disso, atribuíram aos santos um papel intermediário entre os amores, ou conceberam-nos como entidade propiciadora de fertilidade e vantagens amorosas1 . Na medida em que eram atribuídos papéis aos santos, estes eram envolvidos numa forte carga afetiva. O amaciamento entre senhores e escravos levou a miscigenação e a relações de intimidade entre ambos; aspectos levantados por Freyre, também, destaques nesses capítulos. Todos esses assuntos desenvolvidos na obra já haviam sido tratados em Casa Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos, obras freyrianas, fundadoras dos estudos sobre a vida privada no Brasil.
A obra História da Vida Privada no Brasil procura compor a pré-história de nossa vida privada. Articulada em 8 capítulos interligados entre si, apresentando como eixo temático questões como a escravidão (que medeia todos os capítulos), privacidade e relações familiares. Em seu capítulo inicial, “Condições de privacidade na colônia”, o historiador Fernando Novais desenvolve questões teóricas sobre as condições para a existência de vida privada na América portuguesa. No capítulo 2º: “Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações”, a historiadora Laura de Mello e Souza estuda as expedições de bandeirantes e viandantes que adentraram no território, defrontando-se com mosquitos, animais de diversos portes, a falta de comodidade e desconforto das pousadas e as andanças realizados no outro lado da fronteira- o sertão, em detrimento da vida do litoral.
A partir do capítulo escrito por Leila Mezan Algranti (“Família e vida doméstica”), seguindo-se os de Luiz Mott (“Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu”), Ronaldo Vainfas (“Moralidades brasílicas: deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade escravista”) e Mary del Priore (“Ritos da vida privada”), a questão da privacidade colonial começa a ganhar contornos mais claros, em assuntos como a sexualidade, a família e a religiosidade.
Através dos capítulos de Lei la Algranti e Ronaldo Vainfas, percebemos que as relações de privacidade estavam longe de serem desvendadas, devido à escassez de fontes. Essa ausência talvez se explique pela falta de cadernos, cartas ou diários dedicados ao relato das intimidades. Como bem observa Algranti, a ausência desse tipo de exposição deve-se à própria estrutura da sociedade colonial: a intimidade era mantida na esfera do privado, não se escrevendo sobre recordações e intimidades. O alto índice de analfabetos é um outro dado a ser destacado. As famílias convivem em casas sem um mínimo de privacidade, onde os cômodos têm múltiplos usos, onde os móveis- aí enquadram-se as camas – são montados e desmontados de acordo com as necessidades do dia. Havia, além disso, pouca distinção entre o público e o privado, ocorrendo, muitas vezes, a inversão entre esses dois espaços: o que é público torna-se privado e vice-versa. Vainfas esclarece: um espaço por assim dizer, público, como era o mato ou a beira do rio, podia ser mais apto à privacidade exigida por intimidades secretas do que as próprias casas de parede-meia ou cheias de frestas” (p. 257).
No nosso entender, entre os 8 capítulos que compõe o livro, 2 sobressaem-se aos demais. O primeiro deles, o do antropólogo Luiz Mott, sobre a religiosidade e, o segundo, o da historiadora Mary del Priore sobre os ritos da vida privada. As práticas supersticiosas constantes na sociedade colonial mesclavam-se às vivências da religião oficial do império português – o catolicismo. O isolamento geográfico possibilitou aos habitantes do interior da América portuguesa o aparecimento de práticas religiosas privadas como o eremitismo, chegando-se a encontros sabáticos. Através do diário (borrador) do senhor de engenho falido Antônio Gomes Ferrão Castelo Branco, uma peça documental inédita pertencente à coleção particular do bibliófilo José Mindlin, Mary dei Priore perfaz os caminhos desse senhor, demonstrando que a relação entre o público e o privado estava, mais do que nunca, interligadas. Demonstra, ainda, que a privacidade misturava-se com o cotidiano na vivência de certos ritos como o casamento, a morte e o nascimento.
O sétimo capítulo (“O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura”) foi escrito pelo historiador Luiz Carlos Villalta e trata das práticas de leitura, da educação e da língua na América portuguesa. No último capítulo (“A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política no final do século XVIII “), o historiador lstván Jancsó analisa as revoltas ocorridas no final do setecentos. Em ambos ensaios, nota-se o aparecimento do intelectual do século XVIII: o libertino de idéias afrancesadas, influenciado pelo pensamento iluminista. Ambos os autores observam uma questão: aonde começa e aonde termina a vida privada? Através das sílabas F de fé, L de lei e R de rei , Villalta conclui que a identidade privada e a pública confundem-se. Estudando as bibliotecas e o teor de algumas obras nelas existentes, dá gancho para o capítulo seguinte, o de lstván. Este, através da análise dos movimentos sediciosos ocorridos em Minas Gerais, no Rio de Janeiro e na Bahia, investiga as categorias de privacidade entre os que se envolveram nas práticas conspiratórias ocorridas no final do setecentos.
Enfim, acho que a amostra é suficiente para os que não conhecem o livro. Os leitores não se arrependerão de travar com ele uma discussão fecunda sobre a nossa pré-história da vida privada.
Nota
1 Laura de Mello e Souza. Sexualidade e religiosidade popular no Brasil colonial. In: Suzel Ana Reily & Sheila M. Doula (orgs.). Do Folclore à Cultura Popular. São Paulo: FFLCH/USP, 1990, p. 87.
André Figueiredo Rodrigues – Mestrando em História/ USP.
[DR]