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História da organização do trabalho escolar e do currículo no Século XX (ensino primário e secundário no Brasil) – SOUZA (RBHE)
SOUZA, Rosa Fátima de. História da organização do trabalho escolar e do currículo no Século XX (ensino primário e secundário no Brasil). Coleção Biblioteca Básica de História da Educação Brasileira, vol.2. São Paulo: Cortez, 2008, 320 p. Resenha de: BORGES, Aline D. B. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n. 24, p. 193-219, set./dez. 2010.
Com a imagem de uma sala de aula, Rosa Fátima de Souza inicia sua obra, com a perspectiva de que nenhum outro lugar simboliza mais “a finalidade cultural da escola e sua representação social”. Na introdução, a autora persuade-nos a desnaturalizar o espaço escolar, posto que ele nem sempre foi do modo como o concebemos hoje.
Para analisar a organização do trabalho escolar e o currículo no decurso do século XX, abrangendo da Primeira República aos anos de 1970, nas escolas primárias e secundárias do Brasil, mas, de um modo particular, a paulista, Souza menciona algumas questões que serão respondidas ao longo do seu texto, tais como: o que mudou ao longo desse século? Quais elementos da cultura foram considerados legítimos e válidos para transmissão nas escolas? Por que alguns conteúdos se mantiveram e outros não? Quais fatores implicaram a determinação do currículo escolar ao longo do tempo? Que tipo de homem e cultura foram privilegiados na sociedade brasileira? Como as transformações na história do currículo repercutiram na organização interna da escola? Para tal, opera com dois eixos norteadores: o currículo e a organização do trabalho escolar, e se apropria de diversos autores1, que, segundo ela, “têm ressaltado a necessidade de conceber o currículo como uma construção social e histórica”.
Aborda a organização do trabalho escolar, considerando a “diversidade das instituições educativas, a graduação do ensino, a ordenação do tempo, a constituição das classes e séries e a sistemática de avaliação”. Para realizar esse empreendimento, faz um recorte espacial para sua pesquisa, analisando a escola primária paulista e a escola secundária em âmbito nacional, recorrendo a diversas fontes, principalmente à legislação de ensino em âmbito federal e estadual, periódicos nacionais, currículos prescritos, programas de ensino, anais de eventos, publicação de época e imagens fotográficas.
O livro encontra-se dividido em três partes: Escola Primária, Escola Secundária e Escola Básica. É relevante apontarmos que a autora defende a tese de que a escola primária serviu à formação do cidadão brasileiro, destinada, portanto, à maioria da população. Já a escola secundária, atendendo a elites dirigentes e à classe média em ascensão, permanecia como a guardiã da cultura geral de caráter humanista.
Em “A escola primária e a formação do cidadão brasileiro (1890-1960)”, primeiro capítulo do livro, a autora discute as transformações ocorridas nos currículos da escola primária na Primeira República. Para ela, a formação do cidadão republicano apoiava-se na possibilidade de integrar socialmente tais indivíduos, por meio da inculcação de valores essencialmente cívico-patrióticos e na constituição de culturas escolares distintas. Busca quais são os “novos” conhecimentos úteis, ressaltando que o que ensinar ao povo se tornara assunto em voga nos debates da época. Nessa discussão, percebemos as ciências como ponto “chave”, pois era a expressão do desenvolvimento do capitalismo, e, nesta sociedade imbuída pelo progresso, a educação primária deveria ser a mais prática possível.
A principal finalidade da escola primária foi, segundo Souza, a educação integral da criança (intelecto, corpo e alma), visando forjar um novo ser social e um cidadão adaptado à nova sociedade. A adoção do método intuitivo (ícone da escola primária moderna) e de novas matérias2, a dotação material das escolas, a formação científica e prática dos professores e a criação de um serviço de inspeção técnica para a orientação do ensino tornaram-se as preocupações centrais dessa escola republicana. Para a autora, a mudança do regime político acarretou uma série de reformas educacionais que consolidaram outro modo de organização administrativa e pedagógica nessa modalidade de ensino. Sinaliza as condições lastimáveis, seja material ou organizacional, das escolas na época do Império, caracterizando os moldes dessa escola (método misto, apelo à memorização, repetição diária das lições e disciplina garantida por meio de castigos), mostrando ainda como os primeiros governos do estado de São Paulo deram à educação popular centralidade política e como o projeto republicano foi mais ambicioso. Contudo, essa dicotomia entre Império e República, que parece ser defendida pela autora, necessita ser problematizada, pois, apesar de usualmente o tema da modernidade ser vinculado ao progresso republicano, é importante desviarmos de uma perspectiva dualista que prevê o moderno em oposição ao tradicional. Observarmos que o discurso difundido pela esfera do Estado defendia o ensino primário público como uma possibilidade de superação do atraso e da apatia de outrora, intentando conferir à escola um caráter modernizador, civilizador e moralizador. Todavia, sinalizamos que as recém-chegadas propostas não anularam a coexistência de outros modelos de educação. É fundamental percebermos as dissonâncias existentes entre práticas e discursos, permanências e mudanças das formas escolares, entre o que é propagado pelas fontes oficiais e as micropráticas cotidianas estabelecidas nos interiores das instituições escolares.
De acordo com a autora, as reformas educacionais paulistas iniciaram-se pela Escola Normal, e em seguida (1892 e 1896), alguns dispositivos legais consolidaram a reforma da instrução pública, articulando os três níveis de ensino: primário, secundário e superior. Em 1893, contrastando com a escola unitária, foram implantados os primeiros grupos escolares organizados em moldes das escolas graduadas. A autora afirma que a organização comparado às escolas unitárias, visto que reduzia a dispersão das tarefas de ensino. É preciso adicionar a esta análise a não aceitação pacífica dos professores, as heterogêneas opiniões, tendo em vista as resistências por parte destes, indiciando que talvez não fossem tão amplamente favorecidos como a história oficial alude.
Para aproximar-nos da cultura escolar dessas instituições, Souza propõe-nos um olhar sobre as práticas de ensino, buscando analisar a função cultural da escola, seu intento em formar um modelo de homem cidadão, utilizando-se de saberes, habilidades, códigos e valores.
Souza aponta para as funções ampliadas da escola elementar revistas no Código de 1933: a gratuidade estendida para cinco anos e a obrigatoriedade instituída para crianças na idade entre 8 e 14 anos, a duração de três anos nas escolas isoladas e quatro anos nos grupos escolares e prevalência do rol de matérias do início da República3. Por esse código, as escolas públicas seriam organizadas em escolas isoladas, grupos escolares, cursos populares noturnos e escolas experimentais. Percebemos, assim, as permanências e as rupturas, seja no currículo como no próprio modo de organização escolar. A autora sugere-nos a necessidade de refletir como se deram, na prática, no interior das escolas, todas essas regras prescritas, essa seleção cultural e as alterações de programas.
“Educação secundária, cultura humanista e diferenciação social na Primeira República”, segundo capítulo do livro, delineia a diferença mais marcante entre os dois ensinos, pois, para Souza, os estudos secundários “significavam a manutenção de uma alta cultura assentada sobre a conciliação precária entre estudos literários e científicos, prevalecendo, não obstante, os primeiros”.
A autora indica as disputas e os conflitos que estiveram em jogo pela estruturação do ensino e do currículo, a precariedade do ensino secundário brasileiro ao fim do Império e a proliferação dos colégios particulares, reafirmando que “se manteve no país a finalidade eminentemente preparatória do ensino secundário”. Esse ensino teve, no Brasil, nas primeiras décadas do século XX, dois sistemas paralelos de organização: os ginásios e os estudos parcelados. Tenta apreender, em linhas gerais, “como determinados conteúdos da cultura mantiveram ou ganharam legitimidade com valor educativo enquanto outros foram perdendo relevância, sendo secularizados e eliminados gradativamente dos currículos”. Para ela, a educação recebida nesses colégios e ginásios era uma formação mais literária do que científica.
Assim, somos levados a refletir sobre outras reformas ou modificações que, de alguma forma, dizem respeito a esse ensino, como a reforma protagonizada por Benjamin Constant, em 1890, que buscou ampliar a formação científica, o exame de madureza – aferição do desenvolvimento intelectual dos estudantes e sua maturidade –, e a divisão do ensino secundário, pelos idos de 1898, em curso realista e clássico. Dentre outras disputas, indica os conflitos acirrados em torno do estudo do latim, apontando-nos para a seletividade que marcou o ensino secundário brasileiro na Primeira República. No que tange ao público atendido, sinaliza a ausência dos negros, índios e das camadas populares. Há indícios que podem aquilatar essa discussão, mas essa ainda é uma temática pouco explorada, devido aos limites das análises das fontes historiográficas.
Retomando a longa discussão sobre as disciplinas que resistiam ou foram suprimidas do currículo, Souza afirma que essa seleção cultural servia para diferenciar e atender um grupo específico, o seleto grupo social que utilizava a educação secundária como estratégia de reconversão do capital econômico em capital cultural. Souza aprofunda-se na temática dos ginásios paulistas à medida que se apropria dos estudos de Nadai (1987) e Cunha (2000), analisando quem eram os alunos que frequentavam esses espaços. Destacando vários estudos que abordam colégios ou escolas em diversas regiões do Brasil4, a autora busca alguns traços comuns entre essas instituições secundárias, o que nos fornece um horizonte mais amplo de discussão.
No terceiro capítulo, “Entre a vida, as ciências e as letras: transformações da escola secundária entre as décadas de 1930 e 1960”, Souza indica que esse período foi o de consolidação e, ao mesmo tempo, de redefinição da educação secundária no Brasil, tendo organicidade, racionalidade e padronização como bases que “alicerçaram a expansão contínua das oportunidades educacionais nesse ramo de ensino médio”. Aponta ainda para esse período histórico como o de democratização do ensino, ou seja, aparecimento de outros sujeitos frequentadores da escola.
Durante o governo de Getúlio Vargas5, segundo a autora, “passaram a ser exigidos dos estabelecimentos de ensino estudos regulares, seriação, frequência obrigatória, aprovação em todas as disciplinas da série para a série seguinte e habilitação nos dois ciclos para realização do vestibular e entrada no ensino superior”, visando estabelecer uma organicidade em âmbito nacional, e ainda eliminar definitivamente o curso preparatório. A regulamentação do docente destinava-se à inscrição do ensino secundário público e particular. Desta forma, afirma que esta imposição de uniformidade visava “o ensino particular, responsável, na época, por mais de 75% das matrículas do ensino secundário”. Essa reforma continuou a exigir o exame de admissão para alunos e a avaliação como forma de seleção. Quanto ao currículo, obteve uma distribuição mais equilibrada entre estudos científicos e literários. Souza indica que todas essas discussões e disputas no período do Estado Novo estavam no bojo de uma discussão mais ampla, de cunho político e social, resultando em mais uma reforma educacional, dessa vez identificada com os interesses conservadores, instituindo as Leis Orgânicas do Ensino6.
Ainda tratando de ginásios e colégios de 1930 a 1960, tenta compreender, apoiada em alguns autores7, as múltiplas experiências dos sujeitos que passaram por esses locais, as práticas educativas, o exercício profissional do magistério, bem como seus saberes, as atitudes apreendidas pelos alunos, as sociabilidades constituídas e a cultura juvenil crescente nessas escolas. Dialogando com o texto de Jayme Abreu, a autora revela-nos sobre quais premissas se firmava o modelo de educação defendido por Fernando de Azevedo. A disputa entre uma base utilitária e cultural para escola secundária foi longa e tensa, mas, no final dos anos de 1950, a seleção cultural posta no currículo apontava em outra direção e a primeira se sobrepôs.
Na terceira parte, A Escola Básica, Souza afirma que, a partir da década de 1960, esse segmento “estaria mais em conformidade com as características do público escolar e da moderna sociedade industrial brasileira”. Em contraponto, os mecanismos de seletividade continuaram a existir e a operar, “expondo de maneira veemente os problemas do fracasso e exclusão escolar”. No ensino secundário, foi profunda a substituição das humanidades pela cultura científica e técnica orientada para o trabalho.
Já na parte final do livro, Souza analisa a modernização dos currículos nas décadas finais do século XX, ressaltando que nos anos de 1960 os movimentos sociais, as reformas de base e os golpes teriam marcado vários setores da sociedade, inclusive o educacional. Faz uma análise da escola e do seu currículo a partir da lei n. 4.024/19618, e, segundo ela, “pela primeira vez, a União abria mão do forte controle que exercera sobre o ensino secundário desde o Império”. Já o curso secundário passou a fazer parte do ensino médio, juntamente com os cursos técnicos e de formação de professores, e ressalta ainda que “a hegemonia das humanidades caía definitivamente em ruína”, tornando clara qual era a predominância da época: a cultura científica e técnica.
Reflete sobre as mudanças educacionais a partir da LDB n. 5.692 de 1971, que “ao contrário da tendência liberalizante e flexibilizadora característica da Lei de Diretrizes e Bases de 1961, […] promoveu o recrudescimento da centralização curricular”. Para o 2º grau, devido ao fracasso da profissionalização obrigatória, houve o reforço da formação geral, especialmente as disciplinas científicas. Porém, as línguas clássicas (latim e grego) e a filosofia foram abolidas do rol de disciplinas desse segmento.
O livro constitui-se, enfim, numa leitura amplificada e necessária sobre a educação brasileira no século XX, que aborda seus processos, suas demandas, seus projetos, suas tensões e conflitos, e os desafios da educação e da sociedade brasileira no limiar do século XXI.
Notas
[1]Kliebard (1995), Goodson (1995, 1997), Gimeno Sacristán (1998a), Forquin (1993), Popkewitz (2000). Cf. Souza (2008, p. 11).2 Ciências físicas e naturais, história, geografia, música, instrução moral, educação física, desenho, instrução cívica e trabalhos manuais.
3 Leitura, linguagem oral e escrita, aritmética e geometria, geografia, história do Brasil e instrução cívica, ciências físicas e naturais, trabalhos manuais, desenho, caligrafia, canto e ginástica.
4 Alves (2005), Cabral (2005) e Barros (2000), respectivamente (Cf. Souza, 2008, p. 122).
5 Em especial, com a reforma empreendida pelo ministro Francisco Campos.
6 A estas leis, a autora chama de “mais uma vitória da educação humanista”, recuperando a tradição humanista e as finalidades das disciplinas, ou seja, os dois ciclos, padronização do estabelecimento, exame de admissão, fiscalização e avaliação, tudo que fora solapado pela reforma de Campos. Com duas inovações: a orientação educacional e os trabalhos complementares.
7 Nadai (1991), Barroso Filho (1998), Fonseca (2004), Camargo (2000), Amaral (2003) e Perez (2006). Cf. Souza (2008, p. 188). Tais trabalhos versam sobre as representações e o imaginário consagrado na sociedade brasileira em torno da qualidade da escola secundária existente até a década de 1970.
8 Primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que tramitou durante 13 anos no Congresso Nacional.
Aline D. B. Borges – Graduanda em Pedagogia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.E-mail: linebborges@gmail.com
Ligia Bahia de Mendonça – Mestranda em História da Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.E-mail: ligiabahia@gmail.com
História da organização do trabalho escolar e do currículo no século XX: ensino primário e secundário no Brasil – SOUZA (C)
SOUZA, Rosa Fátima de. História da organização do trabalho escolar e do currículo no século XX: ensino primário e secundário no Brasil. São Paulo: Cortez, 2008. Resenha de: BERGOZZA, Roseli Maria. História da educação: uma forma de aprender. Conjectura, Caxias do Sul, v. 14, n. 2, p. 255-260, maio/ago, 2009.
A autora Rosa Fátima de Souza, licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal de Uberlândia, atualmente é professora e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Unesp (SP), Pós-Doutora pela University of Wisconsin (EUA) Obteve o título de Mestre pela Universidade de Campinas (SP). Realizou estágio de Doutorado na Universitad Autónoma de Barcelona. Seus trabalhos têm versado especialmente sobre temas como: cultura escolar, história do Ensino Fundamental e do Médio (nomenclatura atual), do currículo e do patrimônio histórico escolar. É livre-docente pela Unesp desde 2006.
A obra é composta por quatro capítulos, constituídos por estudos específicos sobre a história do ensino no Brasil. O primeiro capítulo aborda as transformações ocorridas no currículo da então escola primária entre os anos de 1890 e 1960. O segundo analisa a configuração do currículo predominante na Primeira República. O terceiro examina as transformações ocorridas na educação, entre as décadas de 30 e 60, contemplando as reformas educacionais de 1931 e 1942. O último capítulo aborda os Ensinos Fundamental e Médio, seguindo a lógica das novas concepções educacionais vigentes na época, amplamente difundidas no País, a partir da década de 60, como, por exemplo, a cultura técnica e científica, a educação para o trabalho e as transformações na cultura escolar brasileira.
Inicialmente, a autora faz uma reflexão histórica sobre as transformações da cultura escolar brasileira no século XX e traça um panorama mundial sobre os procedimentos didáticos e as tendências pedagógicas, anteriores ao século XX. Educar o povo seria uma preocupação central do projeto educacional republicano, e caberia à escola primária moldar o novo cidadão, para conviver com a nova e moderna sociedade. Nesse período, a crença no poder da escola tornouse uma ideia muito difundida, tendo a escola primária a atribuição de moldar o caráter das crianças, “incutindo-lhes especialmente valores, virtudes, normas de civilidade, e de amor ao trabalho”, ajudando na construção e consolidação da Nação brasileira. A veiculação desses valores cívico-patrióticos se fazia necessária, de tal forma que, segundo a autora, se buscou fazer da escola primária uma instituição eminentemente republicana.
Muitas das análises realizadas pela autora levam em consideração a realidade e dados relativos ao Estado de São Paulo. Porém, sempre que possível, estabelece relações com as transformações da cultura escolar no Brasil.
Em 1890, a reforma inicia pela Escola Normal, ampliando os programas e excluindo a educação religiosa, reafirmando a laicidade da escola pública e adotando o método intuitivo como marco de renovação educacional. Em 1892, com a mudança no sistema de eleições dos 14 milhões de habitantes estimados na época, só era permitido votar a quem soubesse ler e escrever. Por esse emotivo a maioria da população brasileira encontrava-se fora da participação política, posto que a taxa de analfabetismo aproximada, na época, era de 85% da população, caracterizando, assim, um grande problema a ser resolvido na incipiente República.
Souza considera que a institucionalização da escola pública primária no Brasil, no início do século XX, ocorreu por um processo de múltiplas diferenciações, incluindo os critérios de seleção escolar que eram rígidos e reveladores de contradições: seria uma educação voltada para o povo, mas altamente hierarquizada e excludente. No entanto, as Escolas Normais tiveram um papel determinante na formação do magistério primário de acordo com os ideais da escola republicana e da moderna pedagogia.
Segundo Souza, olhar para as práticas de ensino nos permite olhar também para a cultura escolar primária. Os exemplos que a autora utiliza mostram a identidade cultural, peculiar das escolas primárias. Essas foram sendo construídas através dos hábitos diários, como, por exemplo, a formação de fila para entrada na escola, o canto do Hino Nacional, a chamada, o registro, no caderno, do cabeçalho, as respostas em coro, as arguições orais, a exigência de silêncio. Como não nos é possível reconstruir o universo escolar, olhar para as práticas nos possibilita uma relativa aproximação com a cultura escolar primária.
Destacam-se, também, as práticas simbólicas que, realizadas nas instituições escolares, contribuíram para consolidar as ideias, os valores e as representações sociais ligadas à constituição de nacionalidade, como o respeito aos símbolos nacionais, o sentimento patriótico e, principalmente, o reconhecimento do valor social e cultural da escola.
A divulgação e a publicidade da escola no meio popular também se deram pelas comemorações cívicas, religiosas, festas de encerramento, exposições de trabalhos, preleções, dentre outras. Nessas celebrações, as instituições escolares contribuíram para a preservação da memória nacional, além de agir sobre o imaginário e os sentimentos das famílias, dos alunos, propiciando uma grande visibilidade para a escola perante a sociedade.
Na década de 20, surgiram novas práticas, como, por exemplo, a constituição de corpos saudáveis e viris, o ideal de patriotismo, o canto orfeônico criado para desenvolver o gosto artístico pela poesia e pela música nacionais.
Na década de 30, o ensino primário foi organizado sob os princípios da Escola Nova. No texto, a autora relaciona nomes importantes do movimento escolanovista brasileiro, os quais passaram pela direção do ensino público de São Paulo, como, por exemplo, Lourenço Filho, Fernando de Azevedo, Sud Mennucci e Almeida Júnior.
A nova pedagogia escolanovista explicitava a orientação através de indicações metodológicas já descritas no Código de Educação do Estado de São Paulo, em 1933, como, por exemplo, “o ensino terá como base essencial a observação e a experiência pessoal do aluno, e dará a este largas oportunidades para o trabalho em comum, a atividade manual, os jogos educativos e as excursões escolares”.1 De acordo com a autora, os princípios doutrinários da Escola Nova reagiram contra a determinação sistemática e lógica dos programas, principalmente os utilizados pela escola primária, que foi um dos temas centrais nos projetos de modernização da sociedade brasileira, propagado pelos republicanos.
O então ensino secundário no Brasil tinha suas bases nos seminários e colégios jesuítas fundados na época colonial. Com as reformas pombalinas de 1759 e 1772, foram instaladas as aulas régias de latim, grego, retórica e filosofia. No entanto, a escola secundária, no início do século XX, destinava-se ao atendimento de um grupo minoritário, geralmente de representantes de grupos sociais com algum poder aquisitivo e expressava o interesse por estudos desinteressados, não havia relação com o mundo do trabalho. A autora afirma: “A formação das classes dirigentes continuou privilegiando a arte da expressão, a erudição lingüística, o escrever e o falar bem, o domínio das línguas estrangeiras e a atração pela estética literária.” (SOUZA, 2008, p. 89-90).
Porém, não era consensual essa padronização, tanto que Souza recorre a vários autores para explicitar que, no fim do Império, o ensino secundário encontrava-se em situação precária, e a questão da cientificidade, nos estudos secundários, já estava sendo discutida. Os defensores dessas ideias propalavam o preparo dos jovens para fazer frente aos novos desafios da sociedade moderna.
Em 1890, a reforma instituída pelo Ministro da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, Benjamin Constant, embora de orientação positivista, buscou a ampliação e a formação científica na educação secundária, contudo não chegou a se consolidar. As dificuldades notadas entre 1890 e 1900 declaram os entraves em ordenar um currículo estável, sendo, inclusive, dessa época, o Exame de Madureza, conferido aos concluintes do Ensino Secundário, para verificar os conhecimentos e o desenvolvimento intelectual desses alunos. Caso obtivessem êxito, lhes era conferido o grau de Bacharel em Ciências e Letras.
O caráter seletivo do ensino secundário evidenciou-se no início do século XX, tanto que a maioria dos estados brasileiros manteve, até 1930, um único ginásio público instalado nas suas capitais, a demanda era atendida pela iniciativa privada. A autora coloca dados, como, por exemplo: que o Brasil, em 1907, possuía 373 unidades escolares, 172 para o sexo masculino e 77 para o sexo feminino. Nessas escolas, encontravam-se matriculados 30.426 alunos, sendo que 23.413 eram do sexo masculino.
No fim da Primeira República, o ensino secundário foi tema de muitos debates na sociedade brasileira. No Congresso de Instrução Superior e Secundária, em 1922, realizado no Rio de Janeiro, algumas discussões giraram em torno de vários temas, dentre eles: a exigência ou não do latim como disciplina obrigatória. A síntese das teses e recomendações desse congresso estão publicadas na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, na seção documentos de 1944.
A autora afirma que, através da reforma de 1925, conforme Decreto de 13 de novembro de 1925, mesmo indiferente aos debates sobre a divisão do ensino secundário em ciclos e a diversificação dos programas, institui-se o sentido unitário da escola, referendando o caráter elitista do ensino secundário no País, destinado aos que pudessem fruir de uma educação longa e voltada para estudos de nível superior e com uma sólida base em cultura geral. Em seis anos de curso secundário, os alunos deveriam estudar 25 matérias obrigatórias, o estudo de Italiano e Alemão era facultativo.
Outra questão amplamente discutida, na década de 20, foi o Ensino Clássico versus Ensino Científico, ou seja, qual seria o mais adequado diante das novas necessidades da sociedade brasileira.
A escola secundária passa por uma remodelação e consolidação importantes, entre os anos de 1930 e 1960, principalmente através das reformas federais implantadas no governo de Getúlio Vargas: A Reforma Francisco Campos em 1931 e a Reforma Capanema em 1942.
Na Reforma Francisco Campos, os pressupostos da Escola Nova foram retomados e, dentre tantos pontos, um foi especialmente enfatizado: preparar os jovens para a vida e, principalmente, para o trabalho. A duração do ensino secundário passa para sete anos, e o ingresso ao primeiro ciclo se dava pelo Exame de Admissão. Segundo a autora, no que diz respeito à seleção cultural, a reforma trouxe um equilíbrio entre estudos literários e científicos, e o cientificismo foi revitalizado, embora a autora ressalte que, em parte, o currículo do ensino secundário perdeu o caráter humanista, tão acentuado até então.
A reforma que ficou conhecida como Capanema, na verdade, era a Lei Orgânica do Ensino Secundário, de 9 de abril de 1942, proposta pelo ministro Gustavo Capanema. Essa reforma buscou o resgate da formação humanista e do ensino secundário como ensino das elites, resultando no Curso Clássico, com ênfase às letras, e o Científico com foco nas ciências, de acordo com as intenções para estudos posteriores.
Porém, em meados do século XX, o ensino secundário brasileiro sofreu grandes mudanças, inclusive na forma de acesso, atendendo à demanda das diferentes camadas sociais e perdendo o caráter elitista, adquirido anteriormente.
Anísio Teixeira e Lourenço Filho, citados pela autora, indicavam que a democratização do ensino se fazia necessária, quer pela necessidade de o Estado oferecer vagas, quer para atender às necessidades do tempo presente, tornando-se uma escola prática para enfrentar as novas mudanças sociais e econômicas que estavam se consolidando no Brasil.
Na década de 60, são inúmeras as mudanças ocorridas, em função, inclusive, das lutas ideológicas, políticas e sociais. A primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional foi aprovada em dezembro de 1961. Conforme a autora, seria a primeira vez que a união passaria a não mais controlar o ensino secundário desde o período imperial. Porém voltaria a centralizar e a burocratizar a educação, através da Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971. Mas foi na década de 70 que a escola pública consolidou-se no Brasil, bem como a sua universalização e expansão, adaptando-se, geralmente, de acordo com as demandas políticas e econômicas da sociedade brasileira.
Em síntese, a obra de Rosa Fátima de Souza é de suma importância para todos os pesquisadores da História da Educação, principalmente para os de alinhamento teórico com a história cultural, leitura importante para professores de História da Educação, pedagogos e interessados nas valiosas contribuições históricas acerca da organização do trabalho escolar, do currículo e das reflexões sobre a cultura escolar.
Em outros termos, a autora apresenta uma visão panorâmica do percurso histórico da educação no Brasil. Nesse sentido, considera-se essa obra de Souza um texto básico para os estudiosos da área da educação e uma leitura obrigatória para profissionais que, direta ou indiretamente, atuam no meio educacional.
Nota
1 Código de Educação do Estado de São Paulo (apud SOUZA, 2008, p. 77-78).
Roseli Maria Bergozza – Aluna do Programa de Mestrado em Educação da Universidade de Caxias do Sul (UCS).