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Tópicos de História da Educação nos Estados Unidos (entre os séculos XIX e XX) / Cadernos de História da Educação / 2016
Embora a literatura educacional brasileira seja farta em referências à história da educação nos Estados Unidos, nos nossos meios acadêmicos circulam poucos estudos a respeito. Não que a história da educação norte-americana ganhe menos atenção dos estudiosos brasileiros do que a educação em outros países. A bem da verdade, não temos nos meios educacionais tradição de estudos internacionais.
Com algum conhecimento da historiografia da educação brasileira pode-se afirmar que as mais frequentes menções ao estrangeiro se reportam a algum item de filosofia ou pedagogia, de algum método ou currículo, de algum conceito ou obra, subtraídos dos contextos em que foram produzidos ou que funcionaram como base de lançamento para a circulação internacional que os teria trazido até o Brasil.
Com vistas a contribuir para os estudos internacionais, especialmente sobre os lugares ocupados pelos Estados Unidos nos processos de constituição e internacionalização do campo, organizei dois dossiês: o primeiro já publicado pela revista de História da Educação (ASPHE), com o tema geral A educação nos Estados Unidos: do século XIX ao século XX, que reúne artigos sobre dimensões abrangentes da educação norte-americana no período; quatro autoras brasileiras e um autor norte-americano compõem o conjunto.
Neste segundo dossiê, os artigos reunidos abordam temas mais específicos – ainda que de largo impacto – da educação nos Estados Unidos na passagem do século XIX para o século XX. O dossiê é composto de seis artigos, sendo que quatro são de autores norte-americanos e dois de autoras brasileiras. Muitos aspectos os interligam, embora os autores tenham sido convidados a explorar temas que lhe são caros desde as visões que lhe são próprias. Nem poderia ser de outro modo.
Ao esclarecer os leitores que as convergências entre os autores não incluem suas perspectivas teóricas ou de método, aproveito o ensejo para lhes informar que não concordo necessariamente com as análises que desenvolvem sobre um e outro tema. Falarei sobre isso mais adiante.
Os autores foram reunidos aqui em torno de um período da educação norte-americana de intensas reformas; um momento consagrado como era progressista no qual estão ocorrendo as transformações que gestaram os EUA moderno, hegemônico. Foram convidados a falar de tópicos que indicam a profundida e o alcance das mudanças em curso. São artigos sobre a educação norte-americana com ênfase no ambiente de fins do século XIX e começos do século XX; momento de ebulição da cultura norte-americana na qual se incluem reformas de largo alcance impactadas pelas transformações industriais e urbanas, pela imigração em massa, pelo envolvimento na Primeira Guerra Mundial, bem como pela confrontação de movimentos civis, políticos e sindicais de diferentes matizes.
Exatamente porque estão reunidos em torno de um momento decisivo da vida e particularmente da educação norte-americana, não poderiam deixar de abordar as mesmas reformas, as mesmas iniciativas e os mesmos nomes. Não há surpresa, portanto, que itens como Relatório do Comitê dos Dez e Associação Nacional da Educação sejam muito referidos; assim como nomes como os de John Dewey e Edward l. Thorndike não poderiam ser elididos em se tratando de dois próceres das reformas educacionais do período, opositores inscritos no mesmo terreno acadêmico.
Barry Flanklin, um dos importantes nomes da geração dos anos oitenta que provocou um turn point na área do currículo, trata das relevantes questões curriculares que emergem no período em tela e coloca os discursos de Dewey e Thorndike, além de Ross L. Finney, face a face na disputa pela concepção de comunidade – portanto, na disputa pela direção a ser estabelecida para o currículo. O campo da disputa é o currículo da escola secundária. Thorndike e Finney são, para o autor, expressão de um discurso de comunidade excludente, homogênea, temerosa do estranho / estrangeiro (o imigrante daquele momento); Dewey seria a melhor expressão do discurso liberal da inclusão, da diversidade, do entendimento das transformações que a indústria e a vida urbana produziram sobre os antigos agrupamentos rurais, assim da necessidade de recriação do coletivo e da unidade social. Franklin dedica um item para tratar dos problemas que contemporaneamente repõem a disputa em torno da comunidade. Com isso, é levado a concluir que a direção que o uso do discurso sobre o currículo irá tomar teria permanecido sem solução; e se pergunta: “irá nos conduzir ao estilo liberal de comunidade, tal como popularizada por Dewey ou nos levará à variação reacionária proposta por Thorndike e Finney? ”.
A polarização Dewey-Thorndike, que de fato foi alimentada para além dos muros do Teachers College de Columbia, não reaparece nos artigos de Monaghan / Saul nem de Santos que, aliás, tem Thorndike no centro das suas análises sobre o ensino da Matemática. Não estou certa que se deva alimentá-la mesmo. Também não estou certa que a perspectiva de Franklin possa ser mantida por quem não é herdeiro (romântico) do liberalismo deweyano. Do lugar que venho examinando a contenda nem Dewey se sustenta no lugar avançado que se colocava e que Franklin reafirma, e nem Thorndike se justifica no lugar do regresso que não postulava para si, mas é onde Franklin, como outros, o inscreve.
Spencer Clark foi chamado a tratar de assunto relevante ao qual tem se dedicado, complementar ao tema abordado por Franklin: a educação cívica nos EUA na Era Progressista. Em um momento de grande ardor cívico-patriótico, a educação para o civismo ganhou lugar proeminente no currículo escolar norte-americano, como resposta às grandes levas de imigrantes que tomaram de assalto os EUA entre fins do séc. XIX e começos do seguinte. Clark examina o assunto reportando-o com clareza ao movimento do americanismo e de americanização da escola norte-americana. Para tanto, repassa as tendências que mais diretamente teriam marcado o currículo – as assimilacionistas e as culturalmente pluralistas –, e centra a atenção em dois educadores representantes de cada visão, Arthur W. Dunn e, especialmente, Laura Donnan. O artigo de Clark oferece uma boa análise do tema, e por isso mesmo, exemplifica bem os limites e, portanto, o alcance, de uma visão crítica liberal sobre a americanização e o americanismo. Embora cruzem os caminhos de Franklin e Clark, os artigos de Monaghan / Saul e Santos conferem um tratamento bastante distinto às questões disciplinares e curriculares abordadas.
O artigo O leitor, o escriba, o pensador: um olhar crítico sobre a história da instrução da leitura e da escrita nos Estados Unidos, de E. J. Monaghan e E. W. Saul, publicado pela primeira vez há quase 30 anos, por sua impressionante atualidade está sendo aqui reproduzido [2] . O problema central é a prevalência por muito tempo da leitura sobre a escrita. Para abordá-lo, as autoras repassam a história do ensino da leitura desde o século XIX, destacando os movimentos que disputaram o controle dessa área, as tendências dos teóricos e dos docentes, bem como do mercado editorial. Para os leitores brasileiros que trabalham com o assunto é de grande importância se aperceber que não há direta correspondência entre os movimentos, as tendências, no ensino da leitura registrados nos EUA com os que aqui se formaram, por exemplo, as nossas querelas em torno do analítico e do sintético; do método da palavra, da sentença e da estória. Por outro lado, aqui não teria ocorrido tanto clamor em torno da leitura silenciosa como o registrado por Monaghan e Saul; assim como, o movimento científico e o progressismo educacional não teriam aqui ocorrido; ainda que se possa estabelecer algum (cauteloso) paralelismo entre o último e o escolanovismo brasileiro, este não se posicionou com a veemência e clareza em torno do ensino da leitura na mesma direção que a verificada pelo progressismo em sua luta contra o livro didático (cartilha, livros de leitura etc.) em favor da estória “escrita” pelo próprio aluno.
Ivanete Batista dos Santos examina os confrontos em torno do ensino da Matemática nas primeiras décadas do século XX. Rastreando os periódicos educacionais que circulavam à época nos EUA e parte dos livros de Thorndike, Santos constata a existência de duas propostas, uma que versava sobre uma organização de conteúdos baseada na teoria da disciplina mental e uma alicerçada em princípios da psicologia conexionista de Thorndike. A perspectiva da disciplina mental se fez presente no Committee of Ten Report e ainda se revelava em torno dos anos de 1910; a proposta de rompimento teria ocorrido a partir da publicação do manual The Thorndike Arithmetics, em 1917, como a evidência de que Edward Lee Thorndike conformou, nas primeiras décadas do século XX, um padrão peculiar para o ensino de Matemática. E que foi reapresentado em The Thorndike Algebra, em 1927. Esse artigo de Ivanete Santos, seguindo os parâmetros da sua tese de doutorado, traz à cena a figura de um Thorndike condizente com a imagem sobre ele produzida por seu maior biógrafo, a historiadora da educação Geraldine M Joncich: a de um “positivista são” (The Sane Positivist é o título principal de sua biografia a respeito de Edward L. Thorndike), cuja produção científica e escolar alterou profundamente os padrões de ensino da escola norteamericana, não só da Matemática, mas do ensino da leitura também, como apontam Monaghan e Saul, para não falar de outras disciplinas não incluídas neste dossiê
Seguem dois artigos mais independentes quanto aos assuntos focalizados. Noah Sobe centra-se na fabricação da atenção da criança em uma sala de demonstração montessoriana montada na Feira Mundial de São Francisco, em 1915. Ele quer “repensar a forma como poder e subjetividade agem na formação de atrações humanas”. Conduzindo suas análises com as categorias foucaultianas tais como a de poder, governamentalidade, analítica do poder, Sobe sugere que a atenção a partir de Montessori nos remete à química envolvida no poder, mais do que à física, uma vez que “em vez de forças e corpos que causam movimentos e distribuições, o poder aqui poderia ser pensado operando anexações e desanexações que montam e desmontam entidades”. Dessa perspectiva, Sobe propõe uma nova perspectiva para os estudos da atenção em “relação à produção de desejo e com uma analítica do poder” e não como um estado que se instaura ou não no corpo da criança.
Por fim, o artigo que escrevi para esse dossiê que desloca a… atenção para o campo acadêmico, mais especificamente para o Teachers College da Columbia University quando da criação do seu International Institute, em 1923, e o lançamento do periódico Educational Yearbook, em 1924. A minha pretensão é trazer para primeiro plano aquele College na função de epicentro da internacionalização do campo educacional. As iniciativas dos responsáveis pelo Instituto no âmbito do ensino e da pesquisa são as evidências que trago para sustentar a tese em torno daquela função central do TC, mas o periódico anual é a fonte original deste artigo, uma vez que ainda não explorado como um compêndio, uma enciclopédia, onde se reúnem as mais atualizadas e completas informações e dados sobre os sistemas educacionais de praticamente todos os países, colônias e protetorados existentes à época da sua circulação (1924-1944).
Para encerrar esta apresentação, uma palavra de agradecimento aos autores que se dispuseram a escrever ou ceder trabalhos para este dossiê e aos tradutores dos artigos, e uma palavra de lamento. Enquanto organizava esta coletânea Profa. Jennifer Monaghan faleceu e Prof. Barry Franklin adoeceu. Lamentei profundamente não ter podido conhecer a Profa. Monaghan; tenho lido seus trabalhos e usufruído do elegante, minucioso e fundamentado conhecimento que ela deixou sobre a história da leitura e da escrita nos Estados Unidos. Prof. Flanklin eu conheço pessoalmente; pessoa meiga e atenciosa e, ao mesmo tempo, um acadêmico sério e cuidadoso; desejo que as amizades e as leituras estejam lhe preenchendo os dias de afeto e distração.
Nota
2. Por razões de espaço, mas também de foco, a última parte do texto de Monaghan e Saul não foi mantido nesta versão em Português. Na parte suprimida, as autoras examinam o período Lyndon B. Johnson e o processo de valorização crescente da escrita. Os dados da primeira versão em Inglês desse texto são: MONAGHAN, E. J.; SAUL, W. The reader, the scribe, the thinker: a critical look at reading and writing instruction. POPKEWITZ, T.S. (ed). The Formation of the School Subjects. New York, London: The Falmer, Press, 1987, p. 85-122.
Mirian Jorge Warde – Doutora em Filosofia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora Titular da PUC-SP. Professora Visitante Sênior do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Paulo, no campus Guarulhos. Pesquisador Sênior do CNPq. E-mail: mjwarde@uol.com.br
WARDE, Mirian Jorge. Apresentação. Cadernos de História da Educação. Uberlândia, v. 15, n.1, jan. / abr., 2016. Acessar publicação original [DR]