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Ficção científica e a história da ciência e da técnica / Khronos – Revista de História da Ciência / 2020
O número 9 da Khronos foi preparado em meio à pandemia da Covid 19, o que representou um desafio tanto para os autores quanto para a equipe de edição, felizmente superado, pois resultou num volume alentado de contribuições bastante significativas.
A chamada para o dossiê sobre Ficção Científica (FC) e a História da Ciência e da Técnica teve uma boa resposta e foram selecionados nove artigos compondo um quadro diversificado e atual de assuntos. Fica assim explícita a relação da FC com a contemporaneidade científica e técnica como base para a extrapolação voltada ao futuro, como aliás já se detecta nos escritos de grandes precursores do gênero, como Edgar Allan Poe e Jules Verne. Um comentário geral é que a FC exerce um questionamento contínuo a um dos temas recorrentes da nossa história: o que é ciência? Em consequência, pode-se afirmar que a FC de algum modo recorre à ciência e ao seu entendimento enquanto atividade humana?
A extinção da humanidade tem sido um dos motes para a FC, como se pode aquilatar pela misteriosa pandemia dizimadora – e mais uma vez a ficção se aproxima da realidade – presente em O último homem (1826), de Mary Shelley, grande apreciadora da divulgação científica de sua época, como evidenciado em seu famoso Frankenstein. O presente dossiê se inicia com Valmir Cassaro, que escolheu algumas séries recentes de televisão que encenam um mundo humano caótico e ameaçado de aniquilação, para problematizar a permanência de relações fortes, como aquela entre dominação e submissão. As séries se apropriam de ameaças globais, reais ou imaginárias, como os vírus ou o ecopessimismo, carregado de tintas malthusianas.
A aproximação da ficção com a realidade atual aparece de forma assustadora nas propostas lançadas pelo movimento do trans-humanismo, em que se justificam técnicas como a do implante de dispositivos eletrônicos para melhorar o desempenho do corpo humano. Bianca Castilho e Francisco Rômulo Ferreira analisam essa tendência por meio de desfiles de moda, que efetivamente já ocorreram e em que “ciborgues” se vangloriam de sua perfeição corporal, tendo chegado ao radicalismo da auto-amputação para implante de membros artificiais. O ser biônico resultante junta-se assim à antiga tradição da história de autômatos, num horizonte inquietante.
O grupo norte-americano de escritores de FC na primeira metade do século XX The Futurians incluiu vários futuros expoentes do gênero, como Isaac Asimov. Andreya Seyffert nos apresenta os ideários dessa comunidade, ressaltando a figura de Charles Fort e a concepção de ciência em crise, que culmina em argumentos utilizados pela FC da revista. O “herói” típico dessa época se arrisca em ir além da ciência “paradigmática”, ganhando contornos trágicos por sua ousadia.
Um cientista notável e que também se tornou pioneiro da FC das viagens cósmicas foi Johannes Kepler, com sua obra Somnium, que influenciaria grandes nomes dessa literatura. Apoiando-se em Carlo Ginzburg e Gadamer, Gustavo Giacomini trata dessa narrativa ficcional, de fundo alegórico e filosófico, ao mesmo tempo que autobiográfica e científica. Por meio de um indivíduo que personifica a si mesmo, o conhecido físico e astrônomo Kepler conta uma viagem à Lua, em meio a cogitações sobre o efeito da gravidade na viagem, até a chegada em nosso satélite, com sua atmosfera rarefeita e geografia diferenciada.
Há uma aparente contraposição entre a Singularidade e a série de televisão Black Mirror, embora ambas projetem o desaparecimento do atual ser humano, tema discutido por Fabiano Faleiros. O conhecido inventor e empreendedor norte-americano Raymond Kurzweil, atualmente diretor de engenharia da Google, subscreve uma visão otimista da tecnologia, de acelerado progresso, não apenas técnico, mas também social. Adepto da Inteligência Artificial “dura”, ele vê um gargalo no cérebro humano para a expansão da criatividade, mas no futuro se preservará, porém, a principal característica dos homens, que é a de sempre ficar insatisfeito perante quaisquer limitações. Já a série televisiva é tecno-fóbica e, apoiada no cyberpunk, julga que o perigo está na tecnologia em si e não em quem a emprega. O confronto entre ambas visões é mediado nesta análise pelo trabalho do filósofo Gilbert Simondon. Assim, o motivo da substituição de homens por máquinas, de longo histórico na FC, se abre para a perspectiva do diálogo interdisciplinar – aliás, a razão de ser da própria História da Ciência.
A comunicação científica como a conhecemos hoje começou a se intensificar no século XVII, até chegar na avassaladora quantidade de publicações eletrônicas da atualidade. Carolina Sotério e Matheus Populim repassam este desenvolvimento até a era das comunicações espaciais, examinada por meio do filme Perdido em Marte. O enredo do próprio filme ao focalizar as etapas sucessivas de sucesso na comunicação entre o astronauta perdido e a Terra seria, então, uma representação metalínguística do desenvolvimento histórico das comunicações. A ciência evolui sempre como uma realização coletiva e não individual, ao contrário da posição infelizmente ainda defendida em certas visões simplistas da História da Ciência.
A primeira metade do século XX viu surgir nos EUA a publicação de Amazing Stories, editadas por Hugo Gernback para ajudar a transpor o abismo entre a cultura literária e as ciências naturais. Victória Flório e Olival Freire Jr. contam como o sucesso dessas histórias contribuiu positivamente para a divulgação científica. A visão da FC como uma possibilidade de ser “ciência do futuro” aproximou imaginação e realidade, que se tornou a prática de outras publicações que se seguiram, como foi o caso da famosa Popular Science.
O cinema volta à baila para discutir o trânsito do cientista adepto do dogmatismo realista para o ceticismo moderado. Trata-se da personagem central do filme Contágio, conforme a análise que lhe dedicam Anna Carolina Temporão e Guilherme Temporão, para tratar da questão epistemológica de como surge o conhecimento. A progressiva aproximação da verdade e de como alcançá-la vem desde pensadores antigos e medievais até o período moderno e o atual da filosofia ocidental, mas o autor do livro que deu origem ao filme, Carl Sagan, estaciona no ponto do relativismo final e individual da cientista que protagoniza ambas as obras.
As fronteiras entre ciência e ficção não são, em geral, muito claras. Alana Albuquerque encerra o dossiê seguindo o percurso delineado por Isabelle Stengers em pós da “invenção” da ciência moderna. A “verdade” científica é algo historicamente delimitado, ao passo que a também ficção na ciência se depara com a possibilidade de fazer hipóteses. A especulação é legítima e se encontra numa interseção entre filosofia, ciência e ficção, justamente o locus em que se acha a FC, permitindo-nos lançar a pergunta: com que sonha hoje a ciência?
Plantas de uso medicinal, ou para confeccionar bebidas alcoólicas, venenos ou simplesmente decorativas, têm sido tradicionalmente estudadas pelo ramo da etnobotânica. Diversas etnias índias brasileiras foram assim descritas por pioneiros como Claude Lévi-Strauss em sua fase de professor da recém-fundada primeira universidade brasileira em São Paulo. Jéssica Gaudêncio aborda como a bioquímica tem revelado que esses indígenas acumularam um vasto conhecimento ao longo dos tempos e de eficácia hoje reconhecida, juntamente com suas práticas culturais.
Tradicionalmente no Ocidente a categoria profissional de cirurgião era considerada inferior à do médico, pois o primeiro representava um saber prático, que se revelava em sua atividade manual, aspectos depreciados frente ao segundo, profissão de cunho mais teórico e filosófico. Ana Carolina Viotti examina as contribuições de três cirurgiões portugueses que viveram no Brasil colonial em diferentes momentos do século XVIII, por meio de manuais por eles escritos. Esses profissionais expandiram sua prática, expandindo-a até invadirem o terreno usualmente reservado aos médicos, expondo seus métodos de curar doenças de alta incidência na época.
A teoria corpuscular newtoniana da luz parecia ter ganho a batalha contra sua rival teoria ondulatória de Huygens nos campos científicos da Europa. Portugal na segunda metade do século XVIII, após as reformas de teor iluminista introduzidas por Pombal, aderiu firmemente ao cânone newtoniano. Com base em manuscrito não publicado, Breno Moura revela que o jesuíta português Estêvão Cabral foi uma notável exceção desse período, levantando várias objeções aos corpúsculos de luz, e fazendo experiências a favor das ondas luminosas.
O setor industrial paulista já estava em franca ascensão durante as primeiras décadas do século XX e pôde contar com o ensino técnico para trabalhadores, principalmente no setor avançado que eram as ferrovias de São Paulo. Ana Torrejais destaca a atuação do engenheiro Roberto Mange, oriundo dos quadros da Escola Politécnica de São Paulo. Criador do Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional, localizado na sede da Estrada de Ferro Sorocabana na capital estadual, estabeleceu uma tradição de aulas teóricas e práticas que formaram um modelo profissional disseminado pelo interior do Estado e do país. Aquela instituição foi posteriormente substituída pelo atual SENAI, herdeiro da tradição de excelência no ensino, mesmo depois da decadência do transporte ferroviário.
O filósofo irlandês Berkeley observou em viagem à Itália as erupções do Monte Vesúvio em 1717, registrando suas impressões em carta traduzida por Jaimir Conte. Nossa edição se encerra com a comunicação feita por Everton Alves sobre a descoberta de tecidos moles em fósseis, que permitem a controversa extração do DNA, e inauguraram o recente campo da paleontologia molecular.
Desejamos aos leitores uma leitura agradável e que suscite a curiosidade sobre tantos assuntos fascinantes.
Gildo Magalhães – Editor
MAGALHÃES, Gildo. Editorial. Khronos – Revista de História da Ciência. São Paulo, n.9, jun., 2020. Acessar publicação original [DR]
Desafios Contemporâneos / Khronos – Revista de História da Ciência / 2019
O número 7 de Khronos apresenta o dossiê “Desafios Contemporâneos”, que traz uma seleção de trabalhos apresentados no Segundo Congresso de História da Ciência e da Técnica”, ocorrido na Universidade de São Paulo de 8 a 10 de abril de 2019. Mais de duas centenas de trabalhos de docentes, alunos de graduação e pós-graduação foram discutidos, em meio a uma intensa programação que incluiu atividades culturais, bem como conferências e mesas-redondas – estas podem ser vistas em sua íntegra no canal de vídeos do Centro de História da Ciência da USP, acessível em sua página de internet.
Dentro do dossiê, o primeiro trabalho é de Fabíola Durães, Adriano Oliveira e Paulo Monteiro que, a partir do tema da primeira vacinação administrada por Edward Jenner, fazem uma certeira crítica quanto à necessidade de incrementar a contextualização e a discussão de história da ciência, o que pode ser estendida pari passu à maior parte da expografia adotada nos museus de ciência, geralmente parca nesse quesito.
Fábio Andreoni revisita as propostas futurológicas de Hermann Kahn, fundador do Instituto Hudson, conhecido thinktank estadunidense, e famoso no Brasil por sua proposta mirabolante na década de 1960 de inundar uma grande área da Amazônia. O autor reconta como esse tipo de exercício antecedeu a controversa “história do futuro”, em que o desenvolvimento tecnológico desempenha papel importante, e que veio a influenciar diversos teóricos da historiografia contemporânea.
Um dos pilares sobre os quais se construíram as modernas ciências da biblioteconomia e da arquivologia é a obra de Paul Otlet sobre informação e comunicação. George Sarton, o pioneiro da institucionalização da História da Ciência no começo do século 20 estava atento para as bases propostas por Otlet e há mais de cem anos as utilizou em sua revista Isis de forma interdisciplinar, como analisa Márcia Rosetto.
A talidomida é certamente um dos exemplos funestos de como a tecnologia pode ter consequências indesejáveis. Promovida como solução para o enjôo da gravidez, o remédio logo se tornou um pesadelo pelas malformações causadas a membros superiores e inferiores, levando o desespero às mães vítimas desse erro. Dones Janz Jr. analisa como na Espanha esse medicamento continuou a ser comercializado mesmo depois da sua retirada do mercado mundial, com consequências que se estendem aos dias de hoje.
O dossiê se encerra com a apresentação do processo de digitalização do jornal estudantil da Faculdade de Medicina da Unicamp, que seguiu preceitos recomendados pela arquivologia. A sua disponibilização se revela uma fonte valiosa para estudos acadêmicos, como contam Ivan Luiz Amaral, Rodrigo Souza, Raíssa Antunes e Rosana Poderoso.
A seguir esta edição de Khronos contém artigos de fluxo contínuo, começando com o texto de Ricardo Canale sobre formas de encarar a construção do pensamento e das práticas científicas. O objetivo maior do autor é contribuir para com a alfabetização e letramento científicos, que deveriam se manifestar desde o início da escolarização, passando pelas práticas laboratoriais e a divulgação jornalística.
Em extenso texto sobre a deflexão gravitacional einsteiniana da luz a partir das medições durante o eclipse de Sobral em 1919, Oscar Matsuura refaz o contexto científico das controvérsias que cercaram os resultados obtidos e suas interpretações. Torna-se fascinante perceber como havia também componentes sociológicos e políticos nas disputas que se travaram entre grupos de astrônomos, e mais surpreendente é que as controvérsias se mantiveram ou ressurgiram neste primeiro século após o eclipse. Elementos racionais e outros nem tanto compõem essa trajetória de ideias, que comprovam como a história da ciência é importante para se adquirir uma visão equilibrada de como as teorias e fatos são interpretáveis, sem cair num excesso triunfalista, como costuma ser ensinado que é a marcha da ciência, nem um niilismo descrente do sucesso e da validade do conhecimento.
A partir da questão da técnica discutida principalmente por Milton Santos, Leandro Pereira apresenta os questionamentos deste pensador e outros sobre sua dimensão geográfica. A aceleração da financeirização do capital coloca o tema no eixo das crises econômicas presentes.
Cláudio Galeno e seus estudos de anatomia tiveram uma longevidade notável. Camille Stülp e Samira Mansur investigam o contexto social e cultural da Grécia Antiga que propiciou essa obra e apresentam dados da biografia galênica, enfatizando sua formação hipocrática. Sua originalidade e seus acertos (e erros) influenciaram a medicina europeia e islâmica até o Renascimento, sendo, portanto, figura obrigatória nos estudos de história da ciência.
Domingos Vandelli foi o iniciador da Academia Real das Ciências, de Lisboa, tornando-se importante para a modernização portuguesa empreendida a partir das reformas pombalinas da segunda metade do século 18. Ricardo Dalla Costa nos mostra a dimensão técnica das academias científicas, a partir das memórias de Vandelli sobre o carvão como combustível, e suas propostas de usar turfa e materiais betuminosos de importância para a calafetagem naval.
O último artigo se insere nas pesquisas que Carlos Fioravanti vem empreendendo sobre o estudo e tratamento do câncer feito por médicos brasileiros, em geral pouco conhecidos. Pimenta Bueno no início do século 20 especulou numa base interdisciplinar que vários fenômenos poderiam gerar acidose no interior de células, ligando esse resultado à hipótese de origem do câncer. Suas teorias foram confirmadas apenas bem posteriormente.
Fechando a edição temos uma entrevista com Mario Taddei. Este pesquisador italiano fez com grande sucesso de público a conferência de abertura do Segundo Congresso de História da Ciência e da Técnica, apresentando suas pesquisas originais acerca do pensamento de Leonardo da Vinci e as análises que tem levado a cabo em Milão, que têm revelado resultados surpreendentes sobre os artefatos e experimentos de Leonardo.
Esperamos que o leitor partilhe conosco o entusiasmo despertado por uma história da ciência e técnica bem atuantes no Brasil – e desejamos uma leitura prazerosa!
Gildo Magalhães – Editor
MAGALHÃES, Gildo. Editorial. Khronos – Revista de História da Ciência. São Paulo, n.7, ago., 2019. Acessar publicação original [DR]