História e cultura histórica no alvorecer da época moderna (séculos XIV-XVII) / Anos 90 / 2014

A história da historiografia já dispõe, no Brasil, de uma considerável e consistente produção bibliográfica, a qual segue concomitante ao desenvolvimento e à consolidação de uma agenda de investigação organizada em linhas e grupos de pesquisa, em periódicos de reconhecimento internacional e em eventos acadêmicos de notável importância entre os historiadores. Como não poderia deixar de ser, preponderam entre os estudos aqui realizados aqueles voltados para a escrita da história produzida sobre temas brasileiros e por pesquisadores nacionais. Do ponto de vista temporal, é considerável a ênfase nos trabalhos sobre o século XIX, compreendendo ainda, e de forma cada vez mais intensa, pesquisas cujo foco são as primeiras décadas do período republicano, já na passagem para o século seguinte. Embora ainda em número bastante reduzido, encontram-se importantes investigações preocupadas em compreender o momento anterior a este recorte, sobretudo aquele do desenvolvimento de uma historiografia luso-brasileira no século XVIII.

Menos evidente, contudo, parece ser a produção ocupada com contextos anteriores a tais recortes, os quais, obviamente, fogem necessariamente da chave explicativa amparada na nação ou na cultura brasileira. A discussão das razões para isso não cabe nesta breve apresentação, sendo importante ressaltar apenas dois pontos. Em primeiro lugar, levando em consideração o atual contexto da pesquisa histórica no Brasil, ainda que compreensível, tal situação, não mais se justifica por questões puramente práticas, dada a relativa facilidade de acesso ao corpus documental e ao material bibliográfico de qualidade, bem como as possibilidades de circulação de pesquisadores brasileiros fora dos trópicos e de investigadores estrangeiros aqui por estas paragens. Em segundo lugar, o diagnóstico mencionado não desconhece um fato marcante: ainda que quantitativamente poucos, uma parte considerável dos estudos produzidos no Brasil voltados para estes outros ambientes historiográficos é de reconhecida qualidade, os quais se ocupam, por exemplo, com as formas de escrita da história na antiguidade, como o jogo sempre proveitoso entre antigos e modernos, com as relações do saber histórico com outros campos de saber, com o papel da história na definição do pensamento político moderno, entre outras distintas abordagens. Não seria o caso aqui de indicá-las nominalmente.

A proposta do dossiê que ora se apresenta tem por intenção portar-se diante desta situação, oferecendo alguns estudos que podem ser situados no que aqui se define como “alvorecer da época moderna”, na falta de uma terminologia mais adequada, considerando o período compreendido, grosso modo, entre os séculos XIV e XVII, ou seja, entre a florescência do chamado humanismo renascentista e os primeiros clarões das Luzes setecentistas. Não se trata de assumir um suposto tom heroico, justificando a empreitada no sentido de se “suprir uma lacuna”. Lacunas há e sempre hão de existir, sobretudo no que diz respeito à tradução para a língua portuguesa de fontes e obras de referência. Trata-se, sim, todavia, de contribuir para o desenvolvimento de um campo de investigação em franco crescimento no contexto historiográfico brasileiro, cujos estudos têm se empenhado em revelar – através do diálogo com a ampla bibliografia estrangeira sobre o tema – a pluralidade de abordagens possíveis.

Partindo da consideração, que pode funcionar como hipótese de trabalho, de que o saber histórico assumia neste momento uma feição bastante singular, a qual, embora marcada pela constante referência à antiguidade, não era mais uma história antiga e que, ainda que tenha definido certas condições para a emergência dos procedimentos modernos de escrita da história, não era ainda uma história propriamente moderna, o objetivo é indagar a respeito da singularidade desta cultura histórica ou, sugerindo uma terminologia que me parece proveitosa, deste regime historiográfico, em suas múltiplas feições, ressaltando, como ver-se-á, os princípios da erudição histórica, a relação com outras práticas de saber, as formas de compreensão dos sentidos variados assumidos pela história e pelo papel do historiador, as modalidades de figuração deste personagem e sua dimensão política, entre outros temas.

O dossiê é aberto com a tradução do texto clássico de Arnaldo Momigliano sobre a prática antiquária na época moderna, ressaltando seus fundamentos antigos e o papel central por ela desempenhada na conformação do método histórico na modernidade. É reconhecida a importância deste estudo, que já tem mais de meio século de idade, na definição de um leque bastante amplo de perspectivas historiográficas, assim como já são conhecidas as perspectivas críticas elaboradas nos últimos anos em relação às inferências ali feitas pelo historiador italiano. Não obstante, dada a relevância desse texto e a carência de traduções para a língua portuguesa deste que, sem dúvida, foi um dos principais estudiosos da história da historiografia no século XX, voltar ainda hoje a este debate me parece bastante salutar.

Em seguida, outra tradução de um texto inédito no Brasil, escrito pela historiadora francesa Chantal Grell, no qual a autora traça um panorama compreensivo sobre a cultura histórica francesa entre os séculos XV e XVII, discutindo as diferentes formas de se escrever história no período, bem como os diferentes papéis assumidos tanto pelo saber histórico quanto por aquele que o praticava. Na sequência, o leitor encontrará o artigo de Francisco Murari Pires, em que são analisadas as “figurações heroicas do historiador” nos princípios da época moderna, as quais se dão, em autores variados como Jean Bodin e Thomas Hobbes, segundo uma matriz antiga notória, a saber, Tucídides, constituindo um precedente importante para os usos do autor antigo no século XIX.

Complementando o dossiê, Cássio da Silva Fernandes oferece um estudo sobre o humanista italiano Enea Silvio Piccolomini, situando-o na fronteira entre os gêneros da cosmografia, da história e do relato de viagem. Por fim, Rubens Leonardo Panegassi discute o tema da expansão marítima lusitana a partir das questões envolvidas no embate entre antigos e modernos na obra de João de Barros, notório expoente do humanismo português.

A expectativa é que esse dossiê possa ser útil para pesquisadores voltados aos temas aqui propostos, aos estudantes interessados por esses temas, bem como aos curiosos em relação às diferentes formas pelas quais o conhecimento histórico foi apreendido e a história escrita ao longo de nossa modernidade. Ao leitor resta desejar, enfim, uma ótima leitura.

Porto Alegre, maio de 2014.

Fernando Nicolazzi – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS. Bolsista do CNPq. A organização deste dossiê insere-se dentro das atividades do projeto de pesquisa Erudição, ceticismo, historiografia: a cultura histórica francesa no século XVI (Bodin, Montaigne, La Popelinière), que conta com financiamento do CNPq.


NICOLAZZI, Fernando. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 21, n. 39, jul., 2014. Acessar publicação original [DR]

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