A evolução improvável / William von Hippel

Von HIPPEL William 2 A evolução improvável

William von Hippel / Foto: UQ School Psychology /

HIPPEL W A Evolucao improvavel A evolução improvávelEm seu primeiro livro publicado, o psicólogo social William von Hippel (1963-) consegue se inserir na recente e já tão marcante coleção de obras que articulam os resultados de inumeráveis experimentos de laboratório, pesquisas em psicologia social e teoria da evolução. Com a primeira publicação no final de 2018 e tradução para o português em 2019, “A evolução improvável”[2] (“The Social Leap”, no original) busca utilizar as recentes descobertas da ciência evolutiva e pesquisas relacionadas para compreender vários aspectos da vida cotidiana e da história do ser humano, passando por questões aparentemente banais como o arremesso de pedras e chegando à grandes perguntas sobre a felicidade e as contradições da existência humana.

Professor de psicologia e pesquisador da Universidade de Queensland, Austrália, von Hippel estruturou seu livro de modo didático, partindo de questões mais abrangentes nos primeiros capítulos, e, aos poucos, a obra irá filtrando temas e situações específicas da vida humana que demandam mais atenção e cuidado na análise. Tais construções tornam-se nítidas já no prólogo, quando o autor utiliza três estudos de caso para responder, de antemão, uma pergunta que ele mesmo se coloca (imaginando, acertadamente, que os leitores em algum instante perguntariam), “como sabemos o que sabemos?”.

Essa pergunta, que pode parecer trivial, dialoga com o estado em que se encontra a Psicologia evolutiva no cenário acadêmico. Criada recentemente, nas décadas de 1980-1990 (com pesquisas no Brasil a partir de 2004), a Psicologia Evolutiva [3] vem enfrentando desde seu nascimento muitas críticas relacionadas a seus limites explicativos e especulativos [4], além das questões de rigor científico e de suas problemáticas interpretações morais [5]. Algumas dessas dúvidas, porém, são logo retiradas de cena quando von Hippel demonstra como a “contagem de mutações no código genético” de piolhos de diferentes tipos pode sugerir quando começamos a usar roupas (há 70 mil anos); ou como fontes históricas de registros de casamentos e mortes feitas por igrejas luteranas servem de evidência para analisar o papel das avós na história evolutiva dos humanos; e por fim, como a utilização de análises da presença de diferentes composições de estrôncio em dentes fossilizados sugerem que as fêmeas dos Australopithecus africanus abandonavam seu grupo de origem em certa idade para evitar a reprodução entre parentes próximos (evitando a endogamia).

A partir dessa breve elucidação metodológica, o livro se divide em dez capítulos, que estão, por sua vez, organizados em três partes. A primeira parte [“como nos tornamos quem somos”], será um esforço de releitura da trajetória evolutiva do Australopithecus até o Homo sapiens, destacando situações marcantes que influenciaram nossa formação evolutiva.

A nossa descida das árvores para as savanas, causada pela mudança gradual da vegetação a partir do movimento de placas tectônicas que elevou as regiões do Quênia, Tanzânia e Etiópia, secando boa parte do Vale do Rift, é um evento em destaque, pois mudou completamente a forma como convivíamos uns com os outros e com a natureza ao nosso redor, tornando a cooperação e o fortalecimento de grupos as nossas principais armas evolutivas.

O arremesso de pedra, por exemplo, dos Australopithecus afarensis, possibilitou nossas primeiras experiências de cooperação e trabalho coletivo. A evolução da esclerótica branca dos nossos olhos possibilitando uma “atenção partilhada” mais forte entre membros de um grupo, e a criação da divisão de trabalho pelo Homo erectus na produção das pedras acheulianas (mais pontiagudas e com dois gumes) fortaleceu os laços cooperativos e colaborativos humanos. Com o Homo erectus também vemos o alvorecer da maturidade evolutiva dos humanos, porque é partir de então que o ‘amanhã’ importará mais que o ‘hoje’ em nossas vidas, fato que ainda hoje nos caracteriza com ansiedades e preocupações quase sempre associadas às incertezas do “amanhã”, mas que em suas origens correspondiam à planejamentos e a uma consciência de estocar e carregar coisas para um uso futuro.

Assim, a hipótese do cérebro social é um dos principais conceitos da primeira parte, e de todo o livro, pois sugere que a nossa evolução cognitiva se deve a nossa crescente sociabilidade adquirida depois que passamos a viver nas savanas, dando margem para desenvolvermos a Teoria da Mente, a compreensão de que o outro pensa diferente de mim. Isso possibilitou maior capacidade de ensinar e aprender, como também aprimorou nossa habilidade de abstração e imaginação.

Salta aos olhos a quantidade de experiências que o autor cita ao longo do livro, o que representa uma estratégia argumentativa de nunca levantar hipóteses explicativas sem ter em mãos algumas evidências concretas para corroborá-las. Desse modo, na segunda parte [“usando o passado para compreender o presente”] von Hippel torna inteligível as vantagens evolutivas do autocontrole, mas também do autoengano, destaca nossa capacidade inventiva (Homo innovatio), inerentes a todos nós, mas que em geral se dão em inovações sociais (resolver problemas a partir de relações sociais) e com menos frequência em inovações técnicas (resolver problemas com criação de técnicas/tecnologias); e isso se explica pela nossa história evolutiva de hipersociabilidade, que nos ensinou a valorizar tanto as interações sociais com membros de nosso grupo (Homo socialis), mas não com outros grupos.

William von Hippel analisa como os riscos da interação entre grupos há milhões de anos pode ter evoluído à uma tendência de evitarmos a interação entre grupos, mesmo que valorizássemos a coesão interna do nosso grupo. Isso possui, segundo o autor, origens patogênicas além das rivalidades territoriais. Nosso organismo se adapta aos patógenos com os quais toma contato ao longo da vida do indivíduo e da história de sua genealogia, dessa maneira, o contato com grupos isolados pode trazer sérias consequências [6]. O autor amplia a análise e sugere até mesmo que essa seria a possível explicação de existir nos trópicos uma quantidade tão grande de religiões e línguas distintas, pois nessas localidades a grande quantidade de doenças gera uma maior resistência relacionada ao contato entre grupos; e continua: “Dessa forma, é provável que ameaças de patógenos sejam a fonte subjacente do que é conhecido como preconceito simbólico, ou a animosidade com grupos com práticas e crenças diferentes das nossas” [7].

Ainda na segunda parte, von Hippel estuda as implicações políticas da nossa evolução, apresentando o elefante e o babuíno como metáforas dos “tipos” de políticos mais democráticos e abnegados, e aquelas mais autoritários e individualistas, respectivamente. Esses “tipos” políticos ganham significados mais definidos com a ruptura político-social e psicológica que foi a Revolução Agrícola (estudada na primeira parte do livro).

A Revolução Agrícola transformou nossa psicologia, dando ensejo a uma série de armadilhas constituintes da nossa realidade como a propriedade privada, a desigualdade de gênero e a “normalização” da desigualdade econômica, porque só com a agricultura tais mudanças e acúmulos possuíam algum sentido e vantagem evolutiva. Assim, tal como o historiador Yuval N. Harari [8], von Hippel enxerga a Revolução Agrícola como um engodo ou a “grande fraude da história humana”, que nos trouxe vários benefícios, mas também inúmeros problemas [9].

Apesar disso, von Hippel utiliza os estudos de Steven Pinker para afirmar que a violência humana diminui significativamente ao longo dos séculos, e hoje apresenta seu menor índice em termos mundiais, em função da acelerada industrialização das cidades e do poder crescente de intervenção do Estado nas relações sociais dos indivíduos e seus conflitos.

Na última parte, denominada “usando o conhecimento do passado para construir um futuro melhor”, o autor coloca a “felicidade” no centro da discussão, e arrisca refletir sobre como podemos usar todos os conhecimentos que foram apresentados ao longo do livro para vivermos melhor. E por alguns instantes o autor parece escrever um capítulo de autoajuda, dando algumas ‘dicas’ e sugerindo ‘passos’ para uma vida mais feliz. Esse caminho é apenas uma escolha de estilo, pois desde o início von Hippel propõe ser bastante acessível e didático em sua construção intelectual, e nos últimos capítulos ele se esforça em reunir tudo que já foi dito para sintetizar as descobertas científicas recentes em lições que podem de fato nos ajudar no cotidiano, alertando principalmente para o que chama de indulgências fenotípicas, que “embora prazerosos, são apenas substitutos para nossas preferências evoluídas” [10] (p. ex.: filmes, drogas, masturbação etc.).

Desse modo, o autor não faz uso de clichês ou caminhos fáceis, e logo afirma que a felicidade não pode ser permanente, além de que, em nossa história evolutiva, sua razão de ser corresponde a sua finitude; e não só isso: a conquista da felicidade é relativa a cada pessoa, grupo e sociedade, mas todos possuem certas características biológico-evolutivas que podem ser úteis para nos conhecermos mais e assim vivermos de forma mais proveitosa. E essas características constituintes de nossa espécie são reunidas pelo autor em “dez passos fáceis”, abordando em forma de “lições” os principais pontos trabalhados nos dez capítulos do livro: (1) Permaneça no presente; (2) Busque momentos doces; (3) Projeta sua felicidade para permanecer saudável; (4) Acumule experiências, não coisas; (5) Dê prioridade a comida, amigos e relações sexuais; (6) Coopere; (7) Entranhe-se na comunidade; (8) Aprenda coisas novas; (9) Use suas forças (suas habilidades específicas); e (10) Busque a fonte original (não se satisfaça apenas com as indulgências fenotípicas) [11].

Por fim, percebemos que von Hippel foi bem sucedido em seu objetivo de apresentar uma história evolutiva humana que fosse capaz de fornecer conceitos explicativos sobre nossas vidas na contemporaneidade, permitindo-nos acessar um conhecimento prático-reflexivo, demonstrando assim a grande aplicabilidade dos estudos da evolução e da genética nas ciências sociais e humanas12, proporcionando uma compreensão dos comportamentos e das culturas humanas sob a perspectiva biológica, mas sem deixar de lado as influências e determinações associadas ao ambiente em que vivem os indivíduos e as sociedades florescem.

Notas

2. Infelizmente, a tradução do título para o português não resgatou o sentido do original, que, numa tradução livre, poderia ser “O salto social”, mais próximo do ponto central da obra que é demonstrar a importância seminal da sociabilidade para a evolução da nossa espécie; e com “salto” poderíamos interpretar a descida das árvores para as planícies das savanas, que nos obrigou a sermos mais cooperativos e sociais, marcando a separação definitiva entre nós e os outros primatas.

3. Que tem sua origem mais distante nas obras de Darwin a partir de 1859, mas surgiu como campo de estudo definido a partir da matriz da Sociobiologia de meados do século XX.

4. Ver: VERNAL, Javier. As explicações da psicologia evolutiva. Investigação Filosófica: vol. E1, artigo digital 4, 2011.

5. HATTORI, Wellisen Tadashi; YAMAMOTO, Maria Emília. Evolução do comportamento humano: Psicologia evolutiva. Estud. Biol., Ambiente Divers. 2012 jul./dez., 34(82), p. 101-112.

6. O que para a história do continente americano não é nenhuma novidade, vide o genocídio dos autóctones pela invasão dos europeus ser principalmente causado pela transmissão de patógenos não existentes neste continente. (HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 16-19).

7. HIPPEL, William von. A evolução improvável. – Tradução de Alexandre Martins. – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Haper Collins, 2019, p. 207.

8. HARARI, Yuval Noah. A Revolução Agrícola. In: _____. Sapiens: uma breve história da humanidade. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2018, p. 113-219.

9. “Quando comparamos os custos e benefícios, vemos que a agricultura permitiu a nossos ancestrais algumas garantias contra a fome, mas ao custo de diversas novas doenças, menos estatura e longevidade, uma halitose repulsiva e com frequência um dia de trabalho muito mais longo. O resultado final foi que os primeiros fazendeiros trabalhavam mais para ter uma vida pior que a de seus antepassados” (HIPPEL, op. cit., 73).

10. Ibidem, p. 265-268.

11. Ibidem., p. 238.

12. Um exemplo seria a recente obra de Francis Fukuyama, As origens da ordem política, que na primeira parte do livro utiliza os resultados de pesquisas em genética e teoria da evolução para explicar certos estágios e eventos fundamentais de nossas história política, usando também conceitos e raciocínios próprios da antropologia e da arqueologia socio-evolutiva. (FUKUYAMA, Francis. Antes do Estado. In:______. As origens da ordem política: dos tempos pré-históricos a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 17-115).

Agenor Manoel da Silva Filho – Graduando em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Correio eletrônico: manoel0agenor@gmail.com.


HIPPEL, William von. A evolução improvável. Tradução de Alexandre Martins. 1. Ed. Rio de Janeiro: Haper Collins, 2019. 304, p. Resenha de: SILVA FILHO, Agenor Manoel. A revolução diferenciada. História.Com. Cachoeira, v.7, n.13, p.125-129, 2020. Acessar publicação original [IF].

A Revolução do Haiti e o Brasil Escravista: O que não deve ser dito / Marco Morel

A obra do historiador Marco Morel intitulada: “A Revolução do Haiti e o Brasil Escravista: O que não deve ser dito” é dividida em três partes, e se debruça sobre os efeitos da Revolução Haitiana de 1791 no Brasil. Na primeira parte do livro, o autor apresenta um esboço da história haitiana e um quadro cronológico dos principais eventos ocorridos a partir de 1492 na antiga colônia francesa quanto na portuguesa, fazendo referência à chegada dos espanhóis na “Hispaniola” e ao fim do tráfico negreiro a partir do tratado entre Brasil e a Grã-Bretanha, em 1826. Em seguida, o autor delineia o perfil de todos os líderes haitianos e suas ascensões no cenário revolucionário, analisando concomitantemente, as primeiras constituições do país caribenho, com destaque à classificação racial elaborada pelo colono Moreau de Saint-Méry, um dos aspectos fundamentais no processo revolucionário de 1791. A segunda parte apresenta uma visão panorâmica do olhar ocidental sobre a revolução, através das ideias dos abades franceses Henri Grégoire, François Raynal e De Prat, os mais influentes do período revolucionário. Além disso, o autor destaca a relação e os impactos do pensamento dos abades sobre o período colonial na América, especialmente no Brasil e no Haiti.

Na terceira e última parte do livro, Morel desenvolve o principal objetivo de seu trabalho, ou seja, uma investigação por meio de jornais sobre os efeitos da revolução haitiana no Brasil, ressaltando as atuações de vários brasileiros letrados e não escravizados que tiveram contato com os eventos da pérola das Antilhas. A menção final do título dessa obra chama nossa atenção “o que não deve ser dito” deixando subentendido que há ocorrências que não deveriam ser ditas [2]. Essa perspicácia da obra traz uma motivação a uma compreensão destes fatos latentes, muito embora, questões relativas à Revolução do Haiti de 1791, ainda são pouco estudadas no meio acadêmico brasileiro. Portanto, isso contribui de certa forma na relevância deste livro, que é considerado um dos primeiros (em sua maior parte) a compreender a Revolução de São Domingos de 1791.

Marco Morel é historiador e professor associado da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, formado em Jornalismo e possui mestrado e doutorado em História. É importante sublinhar que o livro aqui resenhado vem apenas aumentar a quantidade de publicações do autor sobre o Haiti. Em 2005 publicou-se nos anuários dos Estudos Bolivarianos sua primeira produção a respeito do Haiti cujo trabalho estipulado A Revolução do Haiti e o Império do Brasil: intermediações e rumores. No mesmo ano, publicou na revista Almanaque Braziliense O abade Grégoire, o Haiti e o Brasil: repercussões no raiar do século XIX, onde parece ter iniciado os estudos sobre as relações dos eventos entre Haiti e o Brasil.

Ao dedicar mais de trezentas e quarenta páginas a revolução haitiana, suas diversas facetas e suas conexões, o autor discute os impactos e as influências da revolução haitiana no contexto do Brasil escravista. A referência aos impactos dos ocorridos da revolução liderada por Toussaint Louverture e Jean Jacques Dessalines da antiga colônia francesa na colônia portuguesa da América não é algo novo, pois, autores brasileiros como Sidney Chalhoub (1990) em Visões de liberdade[3], Luiz Mott (1988) em Escravidão, homossexualidade e Demonologia [4], Patrícia Valim em sua tese de doutorado de (2007) Da sedição de mulatos a conjuração baiana de 1798: a construção de uma memória histórica [5] e João José Reis (1986) em Rebelião escrava no Brasil [6], dentre outros e também inúmeros artigos, já haviam destacado a presença do que é chamado por Eugène Genovese [7] (1983) de “inspiração negra” em vários estados brasileiros durante o período escravista. Entretanto, a obra A Revolução do Haiti e o Brasil Escravista: O que não deve ser dito baseia-se em uma bibliografia diversificada e com uma presença significativa de documentos e autores haitianos, trazendo em seu conteúdo uma análise inovadora, além de ser um importante estudo dos efeitos causados pela Revolução do Haiti sobre a antiga colônia portuguesa, sobretudo no período pós-independência. Não por acaso, o autor estende suas análises até o período de 1825, um período importante na história pós independente do Haiti, que se viu obrigado a pagar uma alta indenização para que a antiga metrópole francesa pudesse reconhecer a independência da nova nação haitiana.

A obra traz para os leitores, especialmente os do meio acadêmico brasileiro, um debate sobre a classificação racial, um aspecto fundamental na compreensão dos principais eixos da revolução de 1791. A questão racial relembra Morel (2017) representa um ponto chave tanto na história de São Domingos como colônia, quanto na história do Haiti independente, ou seja, o autor reconhece, de certa forma, o papel central da questão racial no cenário colonial e revolucionário haitiano. No entanto ao analisar os conflitos internos (negros escravizados e mestiços livres de cor) e externos (contra a escravidão) na colônia, o autor mostra seu desacordo com o historiador Pauléus Sannon, no que se refere à ênfase dada por este autor aos aspectos raciais. Para Sannon [8] (1938) as inúmeras lutas sociais e políticas que se deram na colônia nesse período tiveram suas origens nos conflitos raciais ocorridos em São Domingos. Do mesmo modo, o historiador Gérard Barthelémy que publicou em 1989 Le Pays en de hors [9] na qual analisa o espaço rural haitiano do período pós-escravagista, alega que na colônia para o emancipado, a cor da pele constituiu-se em um estigma, marca indelével da infâmia, embora juridicamente ele fosse considerado livre. Nesta fronteira, onde os limites de cores são tão incertos quanto os limites das condições, às pessoas de etnias diferentes (do branco) entram no centro das contradições. Entretanto, segundo Morel [10] os diversos conflitos que ocorreram na parte francesa da ilha deveriam ser analisados a partir de perspectivas sociopolíticos. Isto é, esta visão enfatiza que a luta da população negra escravizada contra o sistema escravista e contra as políticas europeias eram centradas na luta pela ascendência social e político.

As notícias não fizeram esperar para chegar aos períodos luso-brasileiros, nos jornais como o Correio Braziliense e a Gazeta do Rio de Janeiro. A presença de vários traços dos eventos da revolução de 1791 já circulava nos territórios brasileiros e o nome do Haiti era referenciado tanto como exemplo de defesa da soberania quanto como exemplo de combate à escravidão. Morel nota que em 1805, um ano após a proclamação da Independência de São Domingos, as notícias já circulavam em terras brasileiras, especificamente no Rio de Janeiro onde os soldados de milícias usaram o retrato de Jean Jacques Dessalines, a maior figura nacional do movimento revolucionário haitiano. Nessa onda de inspiração haitiana em terras brasileiras, o cenário não era diferente nas regiões do Nordeste como Pernambuco e Sergipe. Entre 1818 e 1822, um pouco antes do surgimento da expressão haitianismo, foram registradas diversas referências ao Haiti. As referências expressam duas visões opostas. De um lado, expressava um certo desespero da parte dos senhores porque representava uma ameaça para o sistema escravista. De outro lado, ela simbolizava esperança aos escravizados.

A resistência de Emiliano Mundurucu e de seus próximos, o pastor Agostinho Pereira na cidade de Recife na Confederação do Equador contra a escravidão e o preconceito racial, confirmam as lutas e as ideias empregadas pelos líderes haitianos do período pós-independência de libertar as colônias ainda sobre a dominação europeia. Entre 1804 e 1816 os líderes da revolução de 1791 participaram de forma ativa à medida que ofereciam armas e munições na batalha para erradicar a escravidão na América espanhola. Isto permite entender que os líderes da revolução haitiana não limitavam as suas batalhas contra a colonização e a escravidão apenas no seu país, tratava-se de uma luta contra a escravidão, a desigualdade racial e contra todos aqueles que violavam os princípios gerais da liberdade humana. Em outras palavras, como assinala Buck-Morss, contra o sistema colonial no seu conjunto [11].

A leitura da obra em questão, instiga a perceber que as influências e a presença dos eventos da Revolução do Haiti resultaram em diversas consequências para o Brasil. O haitianismo no Rio de Janeiro, com efígie de Jean Jacques Dessalines nos peitos de escravizados, as notícias nos periódicos lusos brasileiros, as referências aos heróis da revolução entre pretos e pardos nas terras brasileiras, o medo causado nas elites econômicas, foram entre outros, indicadores que sugerem a pluralidade nas formas influenciadoras da revolução haitiana de 1791.

Notas

2. É importante sublinhar que na historiografia francesa e/ou haitiana, a referência a algo ocultado no processo revolucionário é geralmente relacionado à última batalha pela Independência do Haiti onde as tropas napoleônicas foram derrotadas em Vertières em 18 de novembro de 1803. Este fato foi ocultado pela historiografia francesa durante séculos, como é apontado por vários autores como Marcel Dorigny e Jean-Pierre Le Glaunec, em estudos mais recentes.

3. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

4. MOTT, Luiz R. B. Escravidão, homossexualidade e demonologia. São Paulo: Ícone, 1988.

5. VALIM, Patrícia. Da sedição de mulatos a conjuração baiana de 1798: a construção de uma memória histórica. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo: São Paulo, 2007.

6. REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês, 1835. São Paulo, SP: Brasiliense, 1986.

7. GENOVESE, Eugene D. Da rebelião a revolução. São Paulo: Global, 1983.

8. SANNON, Pauléus. Histoire de Toussaint Louverture. Port au-Prince, Haiti, 1938.

9. GERARD, Barthelémy. Le Pays en dehors; essai sur l’univers rural haïtien. Cidhca, Canada 1989.

10. MOREL, Marco. A Revolução do Haiti e o Brasil Escravista: O que não deve ser dito. 1. ed. Jundiaí. São Paulo: Paco, 2017, p. 96.

11. BUCK-MORSS, Susan. Hegel e Haiti. Novos estudos. 90-julho, 2011.

Breno Logis – Doutorando em História pela Universidade Estadual Paulista – Câmpus Assis-UNESP. Correio eletrônico: lesaged18@yahoo.fr.


MOREL, Marco. A Revolução do Haiti e o Brasil Escravista: O que não deve ser dito. 1. ed. Jundiaí. São Paulo: Paco, 2017. 348, p. Resenha de: LOGIS, Berno. História.Com. Cachoeira, v.7, n.13, 2020. Acessar publicação original [IF].

História.com | UFRB | 2012

Historia ponto com A evolução improvável

A Revista Eletrônica Discente História.com (Cachoeira, 2012-) é fruto de um projeto idealizado por cinco estudantes do curso de História do Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), a partir do mês agosto de 2012.

Este projeto visa a divulgação da produção acadêmica dos pesquisadores em História e áreas afins, e tem como principais objetivos a publicação e divulgação dos trabalhos científicos produzidos pelos estudantes de graduação e pós-graduação, mestres e doutores das diversas instituições de ensino superior do país.

Periodicidade semestral.

Acesso livre.

ISSN 2317-6989

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