História Atlântica / Textos de História / 2004

Apresentação

Muito se tem falado das relações entre os continentes africano e americano, mas ainda há muito a desvelar sobre essas relações transatlânticas enquanto um universo em movimento. As análises tomaram como objeto o mundo moderno e a migração gigantesca de africanos para o continente americano e assim iniciaram-se as primeiras revisões conjugando escravidão e identidade na diáspora africana. O oceano já era navegado pelos povos, apenas o Atlântico não era cruzado por rotas marítimas contínuas; mesmo assim, nele a navegação costeira era uma prática comum. Uma específica e renovadora literatura aponta na direção de uma história peculiar a esse mundo construído numa determinada época, com histórias próprias e do período, chamado, moderno. A modernidade trouxe a esses mundos proximidades deixando atrás de si rastros desses intensos contatos vividos durante séculos.

Na busca desses rastros encontramos trajetórias traçadas por homens e mulheres. A possibilidade de reconstruir identidades nestes espaços depende de minuciosos trabalhos assentes no cruzamento de fontes e no uso dos mais variados tipos de documentação que faça emergir os personagens centrais nesses cenários oceânicos. Histórias de vidas que atravessaram os mares, viajaram distâncias fabulosas por terras adentro. Histórias de grupos, comunidades se redefinindo a cada passo entre Áfricas e Américas. Desse passado, até hoje, encontramos os testemunhos dessas presenças evidenciadas nos trabalhos de historiadores sobre os cantos mais diversificados desses continentes.

A bibliografia preocupada com a articulação desses espaços de massas oceânicas torna-se importante no sentido de recuperar uma dimensão ainda não integrada à historiografia de língua portuguesa. A proposta visa retomar as relações estreitas entre os continentes africano, americano e europeu, revelar as circunstâncias e especificidades dessas vivências nesta dimensão Atlântica, no chamado mundo pré-capitalista.

Há mais de uma década, alguns autores formularam a idéia de uma História Atlântica num contexto africano e americano. A possibilidade de pies expansão de uma venerável tradição de história de ‘Impérios’ – seja britânico, espanhol, português ou holandês, ela significa novos paradigmas.

Nesse movimento de busca de peculiaridades e de unidades distintas, nesse mar de histórias, os textos aqui apresentados fazem suas conexões com esse conceito ampliado de História Atlântica. Dessa perspectiva, Isabel Castro Henriques apresenta sua leitura dos marcadores territoriais e simbólicos na organização do universo africano, resultante do choque entre o Fato Colonial português e a emergência das formas autônomas angolanas. Gerhard Seibert discute as polêmicas hipóteses explicativas da origem dos angolares, grupo sócio-cultural e lingüísticos distintos na Ilha de São Tome, abordando para isso justificativas que até então têm sido apresentadas como identificadoras para as identidades angolares. Nas rotas das travessias e retornos, Gomes, Soares e Farias fazem uma reflexão sobre os Cabindas, sua inserção nas amplas redes recriadoras de identidades conectando áreas do tráfico, como do rio Zaire, litoral norte de Angola, com a demografia da escravidão do Rio de Janeiro. Em ampla sintonia com os três textos apontados, o Dossiê do Atlântico apresenta, também, as resenhas de obras que remetem para a face atlântica da África. Cristina Wissembach comenta a obra, recentemente traduzida para o português, de John Thornton que defende em seu livro o argumento da majoritária participação dos africanos na construção do mundo Atlântico; enquanto Selma Pantoja resenha a obra da historiadora Beatrix Heitez sobre as caravanas que cortaram os sertões da África Central Ocidental , no século X I X , e o papel dos africanos nesse evento de interiorização da presença européia na região. D o ângulo das relações de gênero Philip Havik comenta a coletânea organizada por Geiger & Musisi, sobre o impacto do colonialismo na vida das mulheres africanas em várias partes do continente, com base nos mais variados papéis desempenhados por essas mulheres e em abordagens profundamente interdisciplinares.

Esperamos que esta oportunidade de reflexão sobre mais uma pequena porção desse mundo oceânico, permita integrar nossa historiografia nesse novíssimo debate da História Atlântica.

[Sem indicação de autoria]

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