Escrevendo a História Ambiental da América Latina: Processos de Ocupação, Exploração e Apropriação da Natureza / Estudos Ibero-Americanos / 2020

Tendo-se implantado no cenário acadêmico latino-americano apenas no início do século XXI, depois de já bem estabelecida nos Estados Unidos e na Europa, a história ambiental é um campo jovem da produção científica no subcontinente, mas podemos considerar que já dotado de firmes alicerces. Desde então, a pesquisa na área ganhou espaço nas instituições universitárias de muitos países, abrindo caminho para uma renovação dos horizontes teóricos, temáticos e interpretativos da historiografia. Sua presença tem se mostrado crescente em programas de pós-graduação, dando origem a grupos, laboratórios e centros de investigação, conduzindo à organização de sociedades científicas e eventos de dimensão variada. Ao estudar as interações ativas entre os agrupamentos humanos e os elementos da natureza, com base em abordagens dinâmicas que intersecionam áreas como a geografia, a biologia, a antropologia, os estudos culturais e a produção discursiva, a história ambiental mostra-se capaz de configurar objetos ainda não explorados e gerar perspectivas originais de leitura do passado.

No contexto latino-americano, o campo tem oferecido referenciais capazes de conduzir à problematização de diversos aspectos da trajetória desses países: os modos de exploração colonial do território e seus desdobramentos; a incorporação do imaginário da natureza nas culturas nacionais; a geração de ferramentas intelectuais e técnico-científicas para o escrutínio da base físico-geográfica das nações; a apropriação do território e dos elementos do ambiente como “recursos naturais” e “matérias-primas”; as formas de ocupação humana do espaço; os impactos ambientais da produção econômica e de suas externalidades; a circulação e a comodificação de espécies; os movimentos sociais conservacionistas e ambientalistas; os aspectos sensoriais, perceptivos e emocionais do contato com a natureza. Esses estudos caracterizam-se por seus aspectos interdisciplinares, seus diversificados temas, problematizações, bases conceituais, escalas de referência e delimitações espaciais, em uma demonstração da heterogeneidade e do dinamismo do campo.

Este dossiê apresenta uma amostra da produção contemporânea em história ambiental latino-americana. “A agricultura e floresta dos alemães no Brasil: mobilidade, conhecimentos e transfers no Urwald (século XIX)”, assinado por Eduardo Relly, abre horizontes inovadores para o campo. O autor questiona, sobretudo, o que denomina “nacionalismo metodológico”, perspectiva que conduz a uma abordagem estática da dimensão espacial, reduzindo o escopo das análises a referências territoriais estanques. No contexto da história das migrações em massa dos séculos XIX e XX, ele propõe uma abordagem transcultural em que a região e a localidade sejam trabalhadas a partir da dinâmica das construções e práticas sociais, que conduzem à constante reelaboração das fronteiras. Aplicando o conceito de transfers à história agrícola e florestal, ele enfatiza, ao contrário da definição do processo migratório como ruptura cultural, até hoje privilegiada, a necessidade de também atentar para os fluxos de informação e experiência entre o Brasil e a Europa, escrevendo a história de uma agropecuária, por exemplo, teuto-brasileira. Sua pesquisa esclarece que, para além da incorporação de técnicas e produtos agrícolas próprios da cultura brasileira, os imigrantes também aportaram conhecimentos europeus relacionados ao manejo do fogo e introduziram sementes e mudas de sua sociedade de origem. A própria escolha dos setores agropecuários a serem adotados por eles nas colônias refletiu, como observa o autor, afinidades culturais prévias.

Também em um contexto relacionado à colonização neoeuropeia, o trabalho de Claudia Schemes, Magna Lima Magalhães e Cleber Cristiano Prodanov, “Um rio, uma cidade: caminhos que se cruzam – São Sebastião do Caí (RS)” exemplifica a pesquisa em história ambiental urbana, estudando a relação de uma cidade com o rio que a cruza. Acompanhando a história do município pelo viés de suas interações com o rio Caí, o estudo explora os condicionamentos, limites e possibilidades por ele representados desde a ocupação europeia e, particularmente, desde a colonização da região por imigrantes alemães. As múltiplas dimensões da simbiose entre cidade e rio são descritas a partir do estudo do ordenamento espacial, das práticas econômicas, dos modos de ocupação e distribuição populacional ao longo de sua evolução histórica. À medida que aborda os resultados dessa interação, que compreendem o desmatamento das áreas ribeirinhas e o consequente assoreamento do rio, o estudo permite acompanhar as rotinas sociais e econômicas do município, que consagraram a navegação fluvial como fator de impulsionamento da atividade produtiva. Ao mesmo tempo, enfoca os prejuízos causados pelas enchentes periódicas, tão recorrentes que passaram a ser vistas tanto quanto eventos naturais como culturais. Ao longo do artigo, o panorama histórico permite descrever a dinâmica da relação entre o rio e o município, exemplificando a reciprocidade das interações entre sociedade e ambiente.

Questões similares são tratadas pelo artigo de Alfredo Ricardo Silva Lopes, “Uma história social dos desastres de 1974 na bacia do rio Tubarão (SC- Brasil)”, que analisa o impacto das enchentes e deslizamentos de terra então ocorridos na região catarinense. O autor reconstitui o evento conforme as narrativas de suas testemunhas, registradas pela imprensa e pela escrita memorialística locais. O estudo dessa produção textual permite observar o impacto imediato da catástrofe a partir dos modos de representação e significação da experiência, ao mesmo tempo que explicita as estratégias de mobilização empregadas para a reorganização da vida urbana em função da profunda crise social que se seguiu. As fortes ondas emigratórias foram sua manifestação mais visível, além do desalojamento, das dificuldades de subsistência, da desorganização das atividades produtivas, da generalização da violência e sua decorrente política de controle e repressão social. O autor demonstra como, com a reconstrução da cidade, obras públicas lograram manter sob controle uma região caracterizada como uma “bacia de inundação”, onde as condições geográficas apontam para um elevado risco de enchente. Para além da excepcionalidade do evento em questão, esse estudo de caso ilustra exemplarmente o dinamismo, a reciprocidade e a busca de um equilíbrio – por vezes precário – característicos da interação entre as sociedades e seu ambiente físico.

Compreendendo um âmbito geográfico mais amplo, o trabalho de Eduardo di Deus, “A borracha que apaga o café: notas para uma história tecnoambiental da seringueira em São Paulo”, aborda a expansão do plantio da Hevea spp no planalto ocidental paulista, desde as primeiras experiências como árvores laticíferas no final do século XIX até o auge da produção no final dos anos 1980. O trabalho reconstitui o processo de implantação da heveicultura em seus aspectos tecnológicos e produtivos, atentando também para fundamentos institucionais e econômicos, para sua articulação com a tradicional agricultura cafeeira e para a circulação internacional de informação e de meios tecnológicos no setor. Ao mesmo tempo, o estudo demonstra a centralidade das instituições de pesquisa e desenvolvimento agrícola do estado na prestação de assistência técnica aos produtores, enquanto atenta para as demandas do setor industrial, para as condições de manejo, transporte e processamento da produção. Como se vê, o artigo integra os múltiplos aspectos que condicionaram a produção da seringueira como alternativa econômica em São Paulo, demonstrando a importância de considerar os processos produtivos a partir das relações das sociedades humanas com os elementos ambientais, e identificando na apropriação de tecnologia os meios de sua viabilização.

Trazendo para o debate a delimitação de uma esfera regional de abrangência a partir de um bioma específico, o estudo “As fronteiras geopolíticas do condomínio panamazônico: observações epistemológicas” dedica-se a discutir o tema da incorporação da dimensão geográfica nas políticas públicas, segundo a obra de Carlos Moreira Mattos. Tomando como referência seus escritos sobre a Amazônia, Delmo de Oliveira Torres Arguelhes demonstra como, na visão do General, cabia trabalhar para a defesa do território amazônico através de programas de cooperação entre os países da região, no sentido de buscar o compartilhamento da responsabilidade sob sua administração, nas perspectivas do desenvolvimento e da integração regional. Seria necessário promover, simultaneamente, o fortalecimento de seus nexos com os estados brasileiros e a criação de diretrizes comuns para a gestão da Amazônia entre os países que dividiam seu território. Definem-se, a partir daí, tanto medidas diplomáticas de abrangência internacional, como a assinatura do Tratado de cooperação amazônica (1978), quanto a formação de uma infraestrutura de transportes e comunicação entre a região e os estados brasileiros. Através de uma abordagem que combina as teorias da geopolítica e das relações internacionais, o artigo reflete, assim, sobre as bases intelectuais das políticas públicas que, nas últimas décadas, intentaram imprimir ao território amazônico diretrizes institucionais de controle, ao mesmo tempo inserindo-o nas redes nacionais e internacionais de intercâmbio material e simbólico.

Outro dos grandes biomas brasileiros foi tematizado por Sandro Dutra e Silva e Altair Sales Barbosa em “Paisagens e fronteiras do Cerrado: ciência, biodiversidade e expansão agrícola nos chapadões centrais do Brasil”. O trabalho explora os recentes desenvolvimentos na produção de uma história ambiental do cerrado como sistema biogeográfico, enquanto promove uma reflexão sobre os danos a ele causados pelo recente avanço da fronteira agrícola em seu território, que demonstram o dramático processo de destruição de sua fisionomia primitiva, hoje residual. Os autores inventariam a produção acadêmica recente sobre a região, apresentando um retrato das transformações por ela experimentadas, sobretudo nas últimas décadas. Através de um viés ecológico, eles interpretam as interações entre os elementos constituintes desse sistema biogeográfico, demonstrando, por exemplo, o comprometimento da flora do cerrado pela extinção de elementos de sua fauna. Partindo de conceitos consagrados por textos clássicos da história ambiental, pela produção científica ligada à tradição dos naturalistas-viajantes e pelos trabalhos acadêmicos contemporâneos sobre o sistema, o estudo oferece um vasto painel da historiografia regional, culminando com a análise da situação contemporânea. No que toca ao processo recente de expansão da fronteira agrícola, os autores examinam os expressivos impactos ambientais da agricultura sobre o bioma, demonstrando os severos danos causados a seu equilíbrio ecológico, que abrangem o solo, a fauna, a flora, o clima e os recursos hídricos. O diagnóstico demonstra o comprometimento de seu patrimônio genético – e, consequentemente, de seu potencial farmacêutico –, apontando para a insustentabilidade desse modelo de exploração.

A incorporação de espécies vegetais exóticas, um dos fatores observados por Sandro Dutra e Silva e Altair Barbosa como uma das características da inserção do Centro-oeste brasileiro no mercado mundial de alimentos e energia, é o tema do estudo seguinte, de autoria de Marília Teresinha de Sousa Machado, José Augusto Drummond e Cristiane Gomes Barreto. O artigo “Leucaena leucocephala (Lam.) de Wit in Brazil: history of an invasive plant” busca analisar a dispersão da espécie, uma das mais invasivas do mundo, no território brasileiro. Os autores observam que o fenômeno da propagação de espécies fora de seu bioma nativo, intencionalmente ou não, representa uma das áreas de investigação mais relevantes na história ambiental para a abordagem das relações entre as sociedades humanas e o meio físico-natural. Considerando que a dispersão de plantas atende a diversos propósitos humanos, sua propagação na atualidade tem sido objeto de estímulo, considerada a facilidade com que se reproduz e sua utilidade econômica como forragem para a criação de gado. Sendo assim, essa pesquisa examina, em primeiro lugar, a chegada da espécie ao País, muito anterior à data em que foi introduzida oficialmente por uma instituição de pesquisa. Com base nesse estudo, são observados os padrões de sua difusão por grande parte do território nacional, chegando a atingir uma área de preservação, o Parque Nacional de Brasília.

O artigo seguinte também se debruça sobre uma espécie em particular. “História, ciência e conservação da onça-pintada nos biomas brasileiros”, de José Luiz de Andrade Franco e Lucas Gonçalves da Silva, faz um balanço da produção de informação científica sobre a Panthera onca e da atuação de entidades dedicadas a projetos efetivos voltados para sua conservação. Compreender a articulação entre a pesquisa e o conservacionismo é um dos objetivos alcançados pelo artigo, após uma caracterização da espécie e uma recensão historiográfica em que obras escritas por caçadores são identificadas como os primórdios da produção de conhecimento sobre a onça-pintada. Os autores demonstram que as iniciativas efetivamente dedicadas à pesquisa sistemática sobre a espécie datam da década de 1970, quando se iniciam os estudos sobre suas características ecológicas. Demonstrando o imbricamento entre a investigação científica e os projetos protetivos, já esses primeiros estudos apresentavam propostas de medidas conservacionistas. Esse aspecto seria uma constante também nos empreendimentos de cunho científico desenvolvidos no século XXI, quando se intensifica a atuação de entidades ambientalistas, centros de pesquisa ligados ao poder público, fundações e organizações não governamentais. Considerando a ameaça de extinção da espécie, sobretudo nos biomas da Mata Atlântica e da Caatinga, seus projetos têm alcançado, simultaneamente, repercussão acadêmica e colaboração de ativistas. O artigo nos permite também observar o diálogo entre a história ambiental e outras áreas do saber – em particular a zoologia, a veterinária e a genética –, e, também, entre ela e os movimentos sociais ambientalistas. Como concluem os autores, a ciência tem sido o principal instrumento para a conservação da espécie.

Desde o trabalho de seus pioneiros, o tratamento dos aspectos culturais e intelectuais da relação entre homem e natureza é uma das linhas mais produtivas da história ambiental, como demonstram os dois artigos seguintes do dossiê. Em “José Mármol e o ambiente brasileiro do século XIX visto por um exilado”, Amanda da Silva Oliveira e Maria Eunice Moreira empreendem uma análise dos aspectos identitários relacionados à elaboração, pelos intelectuais latino-americanos, de concepções acerca da originalidade da região. Nesse texto, elas analisam os artigos publicados pelo escritor argentino José Mármol durante seu exílio brasileiro, entre 1845 e 1846, e observam que suas impressões etnográficas difundem uma concepção paradisíaca da natureza, que lhe inspira sentimentos do sublime, em contraposição a visões da sociedade urbana como espaço conspurcado pelo cosmopolitismo. Em sua escrita, enquanto a natureza carrega as insígnias do americanismo, incorrupta, copiosa e opulenta, a sociedade, em contato com a cultura europeia, prendia-se a laços de dependência que inviabilizavam o projeto de uma identidade americana comum. Assim, observa-se na análise das autoras a plasticidade dos conceitos de natureza e cultura e sua capacidade de traduzir concepções e representações sobre a vida social que incorporam aspirações e projetos de cunho político-ideológico.

Também nessa categoria direcionada aos estudos da cultura e da vida intelectual, o trabalho de Rodrigo Antonio Vega y Ortega Baez, “Matías Romero, las ciencias geográfico-naturales y la transformación ambiental del sureste de México, 1870-1883”, ilustra a crença, pelos letrados latinoamericanos, de que o desenvolvimento científico proporcionaria a prosperidade econômica do País por meio de ações efetivas sobre o território. Caberia promover, segundo o político, o direcionamento das forças produtivas nacionais no sentido do fomento ao plantio de gêneros de exportação para os mercados norte-americano e europeu, por meio da ampliação e da diversificação da oferta. A base para tal seria a incorporação dos saberes da geografia e das ciências naturais, que conduziriam a uma racionalização das iniciativas econômicas. Em particular, buscavam-se plantas nativas ou aclimatadas que possuíssem alto valor comercial e que poderiam ser cultivadas em terras até então tidas como inférteis. Por meio de um trabalho de propaganda, Romero promoveu a divulgação dos conhecimentos adquiridos em suas leituras científicas, e que exploraram as possibilidades de uso produtivo de parcelas intocadas do território. Nessa análise de sua obra, Vega y Ortega Baez explora, assim, as bases intelectuais de uma transformação do meio ambiente mexicano a partir das últimas décadas do século XIX que estimulou a conversão de “terras ociosas” – selvas, bosques e manguezais – em campos agrícolas, conduzindo a uma sensível alteração da paisagem do País.

O dossiê finaliza com uma entrevista concedida aos organizadores por John Soluri, professor da Carnegie Mellon University, nos Estados Unidos. Soluri narrou sua trajetória como pesquisador em história ambiental da América Latina e apresentou reflexões sobre diversos temas relativos ao campo: o estado atual da pesquisa; as áreas e temas mais promissores e imperiosos; perspectivas de investigação globais versus regionais e locais; as relações do conhecimento científico com os problemas sociais e ambientais do mundo contemporâneo; a história ambiental nos Estados Unidos; as oportunidades de intercâmbio entre pesquisadores e estudantes; a responsabilidade dos intelectuais. Ao final, refletiu sobre o significado da história ambiental no meio científico, suas particularidades, desafios e riscos.

Convidamos todos os leitores da revista Estudos Ibero-americanos a conhecer esse dossiê. Agradecemos aos autores que nos confiaram seus artigos e aos pareceristas que contribuíram anonimamente para sua apreciação e aprimoramento.

Luciana Murari – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Professora da Escola de Humanidades e do Programa de Pós-graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Orcid.org / 0000-0003-1517-1016 E-mail: luciana.murari@pucrs.br

Georg Fischer – Doutor em História pela Universidade Livre de Berlim. Professor associado da Escola de Cultura e Sociedade da Universidade de Aarhus, Dinamarca. orcid.org / 0000-0003-4791-5884 E-mail: fischer@cas.au.dk


MURARI, Luciana; FISCHER, Georg. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 46, n. 1, jan. / abr., 2020. Acessar publicação original [DR]

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