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Família / História – Questões & Debates / 2009
Por largo tempo, os estudos de família foram domínio dos genealogistas, a quem cabia avalizar, ou não, o bom sangue e o bom nome de determinadas estirpes. Eles detinham legitimidade para definir, com exatidão, o posto de cada um dos integrantes de uma linhagem e, por consequência, para estabelecer os lugares dessas pessoas em certo momento da história familiar. Esses lugares, por sua vez, associavam-se aos campos das prerrogativas e das interdições sociais, definiam precedências, benesses e privilégios no interior de sociedades calcadas em valores como prestígio, a exemplo do Antigo Regime Europeu.
Ali, a difusão do ideário liberal, em suas versões econômica, política e social, favoreceu as transformações que encaminharam a consolidação da sociedade burguesa no Oitocentos. Uma das marcas dessa configuração social foi promover mobilidade social calcada em méritos individuais, em amplo desfavor à procedência familiar. Dessa feita, as vias do trabalho e da escolaridade permitiam que os jovens construíssem suas vidas ao largo de suas famílias, desobrigando-os de cumprir a solidariedade geracional. Foi esse contexto de desgaste das funções tradicionais da família que encaminhou a opção das sociedades ocidentais pela estrutura domiciliar nuclear, que passa a concentrar-se em torno dos princípios da afetividade entre seus membros e da formação patrimonial para o benefício das sucessivas gerações.
Essas e tantas outras mudanças alçaram a família à condição de objeto de estudo. Não por acaso os juristas tiveram pioneirismo nessa área. Preocupados em estabelecer os direitos de sucessão, acabaram se deparando com o emaranhado de sistemas familiares que historicamente acompanharam as sociedades, o que os motivou a apresentar explicações fundadas nas teorias de evolução social, tão em voga no período. J. J. Bachofen (1815- 1887) e J. F. McLenann (1827-1881), por exemplo, encarregaram-se de enraizar a ideia da evolução das formas de conjugalidade e de parentesco: elas teriam partido do estágio da promiscuidade primitiva com base na linhagem feminina para culminar na monogamia, parentesco por ambos os sexos e autoridade patriarcal, estágio considerado ideal no século XIX. Os historiadores, ocupados com instituições e cabeças coroadas, apenas se voltaram para a temática da família nos idos dos anos 1930 e 1940, quando ela já estava consolidada nos interesses de antropólogos e sociólogos, quando se torna mais evidente a percepção de que diferentes formas de arranjos familiares coexistiam no tempo e no espaço, levando paulatinamente a um maior questionamento do modelo evolutivo para a organização familiar. A defasagem que se verifica na produção europeia é mais aguda quando se canaliza a observação para a produção dos historiadores brasileiros: aqui, como nos mostra o balanço de Ana Silvia Scott Volpi, a investigação que problematiza a família tem início apenas na década de 1970.
Assim como a noção de evolução social não mais dava conta da explicação das diferentes formas familiares e suas transformações, tampouco uma noção evolutiva para o desenvolvimento das investigações próprias das ciências humanas poderia ser aplicada para explicar o rumo desses estudos. Os diferentes caminhos trilhados pelos estudiosos no estabelecimento de conceitos e outras ferramentas de análise não ocorre de modo linear e progressivo. Nesse sentido, o artigo de David Robichaux traz importante crítica à antropologia norte-americana, notadamente aos efeitos do conceito de cultura latino-americana sobre os estudos de família. Essa categoria explicativa, muito associada ao pressuposto de efeitos devastadores da Conquista sobre as culturas locais, favoreceu desviar a atenção dos pesquisadores para a variedade de sistemas familiares praticados ao largo do continente. O autor efetua severa advertência quanto à operacionalidade da noção de cultura (latino-americana, nacional) que, por deter associação com discursos hegemônicos, desvia a atenção dos pesquisadores das efetivas práticas familiares das inúmeras formações sociais que se supõe estarem em seu interior.
Associando as temáticas da etnicidade e das migrações transnacionais, o artigo de Berta Mendiguren de algum modo reforça o questionamento de Robichaux ao trazer a complexidade das relações um grupo específico de migrantes, os Soniké, e seus vínculos com o sistema familiar do local de origem a moldar comportamentos pós-migração. Essa percepção induz o leitor a refletir de um modo mais geral sobre as especificidades de cada caso e, em qualquer que seja o contexto analisado, sobre as rupturas e as permanências sociais e culturais.
Outra forma de demonstrar a complexidade dos arranjos familiares em grupos migrados é vista no artigo do historiador Manolo Florentino. O autor toma o caso limite de migração forçada, o tráfico de escravos, a partir dos dados disponíveis sobre esse tráfico para tecer seu estudo. As fontes por ele utilizadas, consagradas para o estudo das massas humanas que foram compulsoriamente trazidas para a América, fogem às que tradicionalmente servem de base para as investigações sobre a família. Os resultados obtidos por esse pesquisador são reveladores das tensões sociais e políticas existentes entre os escravos e entre eles e o restante da sociedade – que tinha na escravidão um dos pilares de sua estrutura. Fica demonstrado em seu trabalho, que tais fontes também possuem rico potencial para o estudo da história da família, muito dele ainda por ser explorado.
Noutra abordagem, o estudo das investigadoras cubanas Maria de los Ángeles Meriño Fuentes e Aisnara Perez Díaz se utiliza de listas nominativas de habitantes, fontes consagradas no estudo de populações do passado, para destacar aspectos pouco observados pela historiografia da família, notadamente a preocupação dos arrolados com a forma pela qual seriam qualificados nessa documentação. Traz, assim, importante contribuição à crítica das fontes utilizadas pelos historiadores, atribuindo agência aos qualificativos presentes nessa sorte de documentação não somente aos responsáveis por tais arrolamentos, mas também aos que neles figuravam.
Aos leitores desse dossiê dedicado ao estudo da família, desejamos satisfação semelhante à que tivemos ao nos debruçarmos sobre os artigos que aqui se apresentam. Passamos, pois, a palavra aos nossos convidados.
Maria Luiza Andreazza
Martha Daisson Hameister
Dezembro de 2009
ANDREAZZA, Maria Luiza; HAMEISTER, Martha Daisson. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.51, n.2, jan. / jun., 2009. Acessar publicação original [DR]