Terra Negra: o Holocausto como história e advertência – SNYDER (RBH)

SNYDER, Timothy. Terra Negra: o Holocausto como história e advertência. Garschagen, Donaldson M.; Guerra, Renata. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 488p. Resenha de: BERTONHA, João Fábio. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.37, n.74, jan./abr. 2017.

O livro de Snyder (Black Earth no original) é mais um representante da vertente historiográfica que procura compreender o genocídio dos judeus por parte da Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial por meio de uma visão cultural e de história das ideias, no limite de uma abordagem antropológica. A proposta é a de compreender o acontecido com base no mundo das ideias e mitologias dos próprios nazistas, daquilo que eles imaginavam estar fazendo, suas motivações e preconceitos.

Na sua avaliação, o mundo mental nazista estava intimamente ligado à ecologia e a uma visão radical do darwinismo social. As raças humanas estavam numa guerra total pela sobrevivência num mundo em que os recursos – especialmente, a terra, fonte dos alimentos – eram escassos. Quaisquer sentimentos ou solidariedade deviam ser esquecidos, pois a competição sem limites era uma lei da natureza e só os mais fortes e impiedosos sobreviveriam. Hitler, nesse sentido, teria rompido radicalmente com a tradição humanista que afirmava que os homens são diferentes dos animais e da natureza por serem capazes de imaginar e criar novas formas de associação além da concorrência e da disputa.

O darwinismo social, em suas várias formas, foi uma constante no pensamento político e social do século XIX, atingindo, por exemplo, os liberais e até mesmo alguns socialistas. O nazismo, contudo, o levou ao limite, pois a luta implacável contra os inimigos passou a ser vista como um fim em si mesmo, aquilo que dava sentido à vida. Sobreviver num mundo ecologicamente limitado seria para os fortes e apenas para eles.

Essa era a realidade histórica e natural, a qual teria sido escondida pelos judeus. Esses eram uma não-raça, incapaz de competir honesta e violentamente pela sobrevivência. Dessa forma, eles teriam trabalhado nas sombras para criar conceitos e perspectivas (o cristianismo, o humanismo, o socialismo etc.) que escondiam a realidade e enganavam os homens com a ilusão de que podiam se separar das duras leis naturais. Todos os princípios morais e éticos existentes serviriam apenas para impedir que os superiores dominassem os inferiores, como era devido. Eliminar os judeus significaria recolocar a humanidade dentro da ordem natural, o que seria o desígnio de Deus.

No contexto pós-1918, os fatos pareciam indicar a realidade da mitologia. Os alemães, a raça superior, só haviam sido derrotados por causa da força dos ideais humanistas e universalistas judeus. Num novo conflito, no qual os alemães novamente exerceriam seu direito de conquista dos outros, os judeus também deveriam ser exterminados, para garantir que a Alemanha vencesse e que as leis naturais voltassem a dominar a Terra. Sem os ideais do judaísmo, as Nações estariam livres para a guerra total de todos contra todos e, nessa luta, a vitória germânica seria inevitável.

A hipótese de Snyder é, com certeza, muito interessante, pois só entendendo o mundo mental nazista, seus preconceitos e imagens, é que podemos compreender o massacre sistemático de milhões de pessoas sem razões militares, econômicas ou de segurança que as explicassem.

O foco do autor no mundo mental e mitológico, contudo, o faz superestimar esses aspectos e congelá-los no tempo. A proposta de eliminar todos os judeus da face da Terra por motivos ecológicos ou metafísicos pode ter se consolidado e ter força explicativa, por exemplo, após 1939, quando a guerra e a conquista da Polônia e de parte da União Soviética amplificaram o “problema judeu” nas mentes nazistas. Para o período anterior, apesar do antissemitismo evidente, a perspectiva era de forçar a emigração dos judeus ou de excluí-los da vida alemã, e não de eliminá-los até o último homem.

Do mesmo modo, seu foco na mitologia e no discurso faz Snyder esquecer o mundo real por trás dele. O autor menciona, por exemplo, que o pensamento nazista era circular e tão fechado que não aceitava a hipótese de que a ciência poderia mudar o meio ambiente e fornecer alimentos a todos. Para ele, aceitar essa hipótese significaria admitir que haveria alternativas para a luta sem tréguas por terras aráveis e, portanto, ela seria descartada de imediato.

Isso não é automaticamente incorreto em linhas gerais. No entanto, não apenas o regime não era tão avesso aos avanços da ciência agronômica como Snyder sugere, como ele esquece que a questão ia muito além do abastecimento alimentar. O imperialismo alemão, desde o fim do século XIX, procurava não apenas fontes de alimentos, mas também as matérias-primas necessárias para manter seu capitalismo industrial. Uma revolução no campo poderia fornecer os alimentos para sustentar os alemães, mas não o ferro, o petróleo e outros produtos necessários para esse capitalismo. A Alemanha ocidental pós-1945 resolveu isso se incorporando ao sistema global montado pelos Estados Unidos.

Já no mundo de Hitler, apenas a invasão da União Soviética daria conta do problema, e a bandeira da sobrevivência alimentar (apesar da sua importância crucial, especialmente depois da trágica experiência do bloqueio naval britânico na Primeira Guerra Mundial) também foi, em boa medida, apenas isso, um discurso para sustentar interesses muito maiores. O mesmo se poderia dizer do mito bolchevique-judaico, que era visto como real, determinou políticas e engendrou massacres, mas que também era uma cobertura para os interesses imperialistas alemães no Leste europeu, os quais já existiam no século XIX e mesmo antes, quando o comunismo ainda não era uma questão. O foco no discursivo, no mental, nos impede de ter essa consciência de que o material e o ideológico se associam e se articulam.

Um ponto interessante no livro é o estudo da política de vários Estados do Leste europeu – como a Polônia – no período entre as duas guerras mundiais, o que é pouco conhecido no Brasil. Sua hipótese de que a Polônia poderia ter sido uma aliada de Hitler em nome do anticomunismo e do antissemitismo é pouco crível, dado que os poloneses eram alvo privilegiado do racismo nazista. Mesmo assim, sua exposição das facetas e dos meandros do relacionamento entre Varsóvia e Berlim é de muita utilidade para o leitor.

Outro aspecto relevante na obra é o destaque que dá à ausência do Estado como algo fundamental para sustentar ações genocidas ou de extrema violência por parte dos nazistas. Na Alemanha já haviam sido criados, na sua percepção, áreas sem Estado, onde o partido e as SS (Schutzstaffel) tinham carta branca para agir, como os campos de concentração. Do mesmo modo, privar os judeus alemães da sua cidadania, ou seja, da proteção do Estado, tinha sido um pré-requisito para acelerar a perseguição a eles.

No Leste europeu, isso teria ido além, com a destruição total de Estados e a criação de áreas onde as SS e o NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei) podiam agir sem freios. Para tanto, teria sido fundamental a atuação prévia da União Soviética. Ao ocupar a Polônia e os países bálticos e destruir os seus Estados, isso teria facilitado a tarefa de Hitler e o próprio genocídio dos judeus.

A proposta – que o autor defende à exaustão, até cansar o leitor – de que a destruição de um Estado e a privação dos direitos de cidadania a seus habitantes facilitavam a adoção de políticas radicais é bastante lógica. Do mesmo modo, pode-se aceitar a ideia de que o terror estalinista facilitou a conquista e a submissão de boa parte do Leste europeu pela Alemanha. O que incomoda é a facilidade com que Snyder acaba vendo intenções explícitas onde, provavelmente, houve apenas contingências. Chega a afirmar (p.141) que, quando Hitler assinou o Pacto Germano-soviético, já tinha consciência plena de que os comunistas eram especialistas na destruição de Estados e que, anos depois, ele se aproveitaria daquele trabalho. De forma implícita ou explícita, Snyder acaba por atribuir à União Soviética um papel ativo e direto na formatação do Holocausto, o que é, no mínimo, questionável. Stalin cometeu inúmeros crimes e, de forma indireta, pode ter colaborado para o horror nazista, mas não da forma direta (e anacrônica) apresentada pelo autor.

Uma das novidades do presente livro frente a outros que seguem uma abordagem teórica semelhante é seu esforço em retirar, da experiência histórica, elementos que nos permitam refletir sobre o nosso momento. A visão de mundo de Hitler e do nazismo se tornou realidade num contexto específico, que não se repetirá, mas algo semelhante pode ocorrer e o livro é, em boa medida, uma advertência nesse sentido.

Para o autor, o mundo atual, globalizado, coloca a maioria das pessoas frente a contingências planetárias que elas não têm condições de compreender. Isso oferece o risco de elas aceitarem um diagnóstico simplista que explica o mundo com base em uma chave conspiratória, de desastre ecológico ou de outro tipo iminente. Num momento em que o populismo de direita está a se fortalecer com essas bandeiras, sua advertência se torna bastante atual.

Também muito relevante a sua advertência – dirigida essencialmente ao público norte-americano, mas que pode servir a todos – de que há uma falta de entendimento sobre a relação entre a autoridade do Estado e o assassinato em massa. Ao contrário da crença liberal, Snyder propõe – em sintonia com a proposta do livro – que é a ausência ou enfraquecimento do Estado que abre as portas para os massacres e a perda da liberdade, não o contrário. Um Estado sem freios é uma ditadura que tolhe liberdades, mas a ausência total do Estado é simplesmente barbárie.

Snyder indica, aliás, como a competição desenfreada do neoliberalismo se aproximaria do nazismo, sendo impressionantes as similaridades entre Hitler a Ayn Rand, uma das teóricas neoliberais: só a competição importa, e tudo o que a cerceia deve ser eliminado. Na minha visão, isso apenas indica a conexão entre nazismo e neoliberalismo dentro do campo da direita e sua valorização da competição e da hierarquia.

É possível pensar que esse caráter militante, de advertência moral, diminuiu o valor historiográfico do trabalho. Não é o caso, especialmente no mundo atual, no qual advertências como essas são mais do que bem-vindas. O livro tem problemas metodológicos e é tão focado nos aspectos mentais e mitológicos do nazismo que acaba por perder de vista o mundo material onde esses aspectos existiam. Mesmo assim, sua contribuição para a historiografia e a advertência moral que carrega fazem dele um livro que vale a pena ser lido.

João Fábio Bertonha – Universidade Estadual de Maringá (UEM). Maringá, PR, Brasil. E-mail: fabiobertonha@hotmail.com.

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Como Shakespeare se tornou Shakespeare | Stephen Greenblatt

Stephen Greenblatt em Como Shakespeare se tornou Shakespeare realiza uma biografia bem particular. Ele não segue, como nas biografias tradicionais, a simples evolução da vida de seu personagem. Greenblatt, que comprova ser um bom conhecedor da Inglaterra de fins do século XVI, vai até as obras do dramaturgo inglês em busca de provas daquilo que mostrou ao leitor através da pesquisa histórica. Esse é um método interessante e que, a princípio, mostra como Shakespeare utilizou, na criação de suas peças, os elementos primordiais da vida social ao seu redor. Mas como em todo gênio do drama, Shakespeare não reproduz de forma direta os acontecimentos (históricos) que lhe tocaram de forma mais intensa.

Aqui, percebe-se o trabalho de Greenblatt: ele preenche esse hiato entre história concreta e criação cultural. Neste ponto, a obra Como Shakespeare se tornou Shakespeare é de grande valor. Isto porque prova que em Shakespeare não há só o gênio da criação cultural, mas também o atento observador do universo social de uma Inglaterra pré-revolução burguesa. Neste caso, vamos dar dois exemplos. Greenblatt explica dessa forma a criação de Hamlet: Leia Mais