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Grupos intermédios nos domínios portugueses, séculos. XVI-XVIII / Revista de História / 2016
Hierarquias e mobilidade social no Antigo Regime: os grupos intermédios no mundo português
A identificação de grupos sociais na Época Moderna representa um velho e duradouro problema historiográfico. Em fins da década de 1970, tentando resumir o estado da questão, Fernand Braudel começou por lembrar a dificuldade que sente o historiador em reconhecer na palavra “sociedade” a desejável invocação de todos os seus componentes vivos e variáveis. Por isso mesmo, e com o intuito de valorizar à partida a pluralidade que se esconde por trás de um conceito intencionalmente globalizante, Braudel propôs encarar a sociedade lato sensu e em especial a sociedade moderna como um conjunto constituído por outros conjuntos – l’ensemble des ensembles – que iludiam lógicas de constituição ou manutenção estritamente jurídicas, políticas ou de consumo: setores, grupos ou segmentos que interagiam num quadro de relações hierárquicas com notáveis aspectos de fluidez, embora também constrangidos por princípios gerais de gênese muito complexa.1
O primeiro grande nível de divisões hierárquicas na sociedade da Idade Moderna seria constituído por três grandes grupos: a pequena minoria dos privilegiados, que tudo governava e administrava, concentrando o usufruto praticamente exclusivo das mais-valias; o da multidão dos “agentes” da economia, trabalhadores de todos os tipos, que formavam a grande massa dos “governados”, e, por fim, o enorme universo dos sans-travail.2
Na “economia-mundo”, caracterizada por Immanuel Wallerstein, os privilegiados manter-se-iam relativamente pouco receptivos ao ingresso de indivíduos de grupos inferiores, apesar de com eles se relacionarem. Os grupos de “agentes” em ascensão, comumente ditos “classes médias”, tenderiam a ser particularmente prejudicados em conjunturas econômicas de depressão, do mesmo modo que seriam também beneficiados, à frente de outros, em conjunturas mais favoráveis. A longo prazo, os integrantes dos seus estratos superiores conheceriam, inclusive, a oportunidade de participar na renovação das elites que o fechamento esclerosara, e seriam também convocados a ajudar em tarefas de governação cada vez mais exigentes, tanto a nível local (nas províncias e nas cidades), como no seio das cortes. Tudo isso se processaria quase sempre em termos desiguais, segundo as dinâmicas dos vários espaços do sistema-mundo, e, na maior parte dos casos, com uma grande lentidão. O exíguo território do cume da pirâmide social, de ocupação restrita aos privilegiados, não se chegava nunca a alargar, proporcionalmente, de forma substantiva.3
Descontando talvez alguns traços do breve retrato dos grupos de pobres e despossuídos, que quase só oscilariam entre uma perfeita submissão à ordem estabelecida e raros rompantes coletivos de dissonância – revoltas, levantamentos ou revoluções –, e não obstante nas últimas décadas se debaterem novas e instigantes hipóteses sobre a ascensão dos grupos de “agentes” – como, por exemplo, uma acrescida e sustentada laboriosidade, principalmente a partir do século XVIII4 –, boa parte dos ensinamentos do maior dos discípulos de Lucien Febvre, na sua espantosa fecundidade, continua a ser útil para amparar a reflexão sobre a sociedade do período moderno. Cabe aqui destacar a lembrança da conjugação de parâmetros de sistemas político-econômicos de diferentes origens e em combinações extremamente variáveis.5
O caso português distingue-se no contexto europeu pelo convívio de fortes princípios senhoriais com uma Igreja de grande relevância social e desmedida projeção fundiária; um oficialato régio escassamente desenvolvido, pelo menos até ao início da segunda metade do século XVII; questionáveis raízes feudais; cidades com privilégios e tradições expressivas, mas desigualmente representadas no corpo do reino e muito distantes da dimensão de Lisboa, para além de um enorme conjunto de domínios e interpostos ultramarinos que, mesmo em período de franca expansão, conhecem profundas razões de instabilidade e de perigo de ruptura. Em suas linhas gerais, já o sabiam os arbitristas do século XVII e os grandes nomes da diplomacia do tempo das Luzes. A historiografia posterior tem-nos vindo a circunstanciar.6
Nesse quadro, não chega a ser surpreendente que entre o Minho e o Algarve se verifique a existência de grupos intermédios muito ligados à administração das casas das grandes famílias terratenentes e ao quotidiano dos episcopados, ordens e congregações: “agencia-se” para a nobreza e para a Igreja. Os homens de negócios de maior expressão concentram-se nos portos marítimos com vocação transatlântica. Sua ascensão enfrenta, porém, resistências diversas, religiosas, culturais e políticas, muito embora o capital dos fidalgos, dos mosteiros ou da Coroa se junte ao financiamento de determinadas empresas comerciais. Paralelamente, nota-se um acentuado processo de dignificação social pelo exercício das letras e, em particular, dos ofícios de escrita. Já no século XVIII, estimula-se o reconhecimento do interesse da atividade dos negociantes de grosso trato. Processo legalmente consolidado com o rei d. José, que ainda fomenta o incremento das manufaturas. Todo um conjunto de indivíduos de extração mediana conquista, assim, o direito a um lugar efetivo entre os privilegiados, e carrega consigo, em movimento ascensional, uma série de outros agentes inferiores.7
A estruturas de produção bastante diversas, com expectativas e constrangimentos também diferentes, corresponderam, nos territórios ultramarinos, hierarquias que desafiaram as capacidades de descrição de vários cronistas. Célebre é o início do livro I de Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, de André João Antonil, onde se lê que “O ser senhor de engenho é título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos”, explicando-se logo depois que, de acordo com o “governo” e o “cabedal”, “bem se pode estimar no Brasil o ser senhor de engenho quanto proporcionadamente se estimam os títulos entre os fidalgos do Reino”. E para melhor se perceber o alcance preciso de tal estima, especifica-se com todas as letras que “Dos senhores dependem os lavradores que têm partidos arrendados em terras do mesmo engenho como os cidadãos dos fidalgos”.8
Interpretações que ignoram ou que de fato não compreendem o significado das equivalências propostas nestas e noutras passagens de documentos coevos chegaram a espalhar a ideia de que os territórios americanos de produção portuguesa de açúcar apresentavam uma sociedade basicamente constituída por dois grandes grupos: o dos senhores e o dos escravos; e que, grosso modo, essa seria a norma em boa parte do Brasil colônia. A existência de um grupo verdadeiramente mais expressivo de indivíduos caracterizáveis como os “agentes” de que fala Braudel seria observável quase já só no século XVIII, em virtude da mineração. Verificou-se, inclusive, um assinalável entusiasmo em torno da imagem das Minas do Rio das Velhas como um autêntico berço de novos valores “democráticos”.
Felizmente, muitos desses equívocos foram ultrapassados por excelentes trabalhos de história económica, social e demográfica que, em simultâneo, contribuíram para aprofundar o conhecimento das sociedades mineiras, com a sua imensa mole de indivíduos livres, autônomos, mas pouco menos que miseráveis: parafraseando Laura de Mello e Souza, democraticamente unidos na pobreza.9
Maria Odila Leite da Silva Dias, a par das investidas de Anthony John R. Russell-Wood e Stuart B. Schwartz, desenvolveu e orientou dezenas de teses, pelo menos desde os inícios dos anos 1980, para tentar conhecer os mecanismos de constituição e a importância relativa desses grupos de gente mais ou menos remediada ou mais ou menos enriquecida que, por praticamente toda a América portuguesa, foi conseguindo escapar à servidão e ajudou a dar consistência aos núcleos urbanos, através de pequenas atividades agrícolas e de manufatura, serviços de abastecimento e comércio, o auxílio ao desempenho de alguns dos deveres da Coroa e das funções da Igreja. Com efeito, a prospecção abarcou desde os mais elevados estratos de negociantes do sudeste da antiga colônia até aos homens e às mulheres que subsistiam em todo o tipo de atividades de apoio a indivíduos de melhor condição, muito para além do limite formal da independência:10 aturado labor de redescoberta de personagens anteriormente quase privados de voz, e sem o qual seria muito difícil acompanhar os debates que nos últimos anos se adensaram sobre a natureza, as capacidades de reprodução e as virtudes políticas dos middling groups contemporâneos.11
Os textos aqui reunidos trazem duas formas de abordagem do problema da constituição e da mobilidade social no mundo ibérico do Antigo Regime. A primeira desenvolve-se em torno da disputa por cargos e ofícios no Atlântico português e de como o conhecimento dos modos de acesso a esses lugares ilumina o tema dos “grupos intermédios”. A segunda tem por objetivo entender, diferenciar e problematizar a própria categoria em questão, a partir de registros de cultura material e de indicadores de consumo, seja no espaço americano, seja em Portugal ou mesmo em Espanha.
O texto de Fernanda Olival e Aldair Carlos Rodrigues (“Reinóis v. naturais nas disputas pelos lugares eclesiásticos do Atlântico português: aspectos sociais e políticos (século XVIII)”) faz o estudo das nomeações para os cabidos catedralícios de São Paulo, Rio de Janeiro, Mariana, Açores e Madeira. Perscrutando as informações de genere dos candidatos aos cargos de comissário do Santo Ofício que já tivessem exercido funções nos episcopados locais, os autores propõem uma cronologia da “naturalização” do controle desses assentos. Desvenda-se assim um meio de ascensão social acessível aos integrantes de grupos intermédios nascidos no ultramar.
É igualmente pelo recurso a documentos da Inquisição que Nuno Camarinhas pesquisa o impacto dos processos de habilitação para o ofício leigo de familiar de Santo Ofício nos cursus honorum dos juízes letrados atuantes na América portuguesa, também no século XVIII (“Familiaturas do Santo Ofício e juízes letrados nos domínios ultramarinos (Brasil, século XVIII)”). Camarinhas começa por descrever essa estrutura proto-burocrática de representação da justiça do rei, e assinala que os serviços que nele se faziam aceleravam, tendencialmente, a progressão nas carreiras. Logo em seguida, procura mostrar que para os juízes com ascendência em grupos medianos, a obtenção do hábito de familiar do Santo Ofício, que funcionava como um autêntico certificado de pureza de sangue, era um elemento de especial relevância para o acesso ao topo da judicatura do reino, facilitando, por essa via, a admissão nos mais elevados estratos da sociedade reinol.
No segundo conjunto de trabalhos, o artigo de Maria Aparecida Borrego e Rogério Ricciluca Matiello Félix (“Ambientes domésticos e dinâmicas sociais em São Paulo colonial”) parte do pressuposto de que os atributos físicos das peças de mobiliário servem para compreender reiterações e / ou transformações de padrões de conduta e mudanças no comportamento social, ultrapassando assim a simples função utilitária. Tendo por base o estudo de inventários de bens post mortem de trinta comerciantes setecentistas da cidade de São Paulo, demonstram os autores que a expansão das atividades econômicas desse núcleo urbano determinou uma clara mudança no padrão de consumo dos grupos intermédios, por razões que se prendem a práticas de representação social e relações de sociabilidade.
Os padrões de consumo são também o foco do contributo de Andreia Durães Gomes, intitulado “Grupos intermédios: identidade social, níveis de fortuna e padrões de consumo (Lisboa nos finais do Antigo Regime)”. Segundo a autora, esses indicadores são de grande importância para melhor entender o que eram os “segmentos medianeiros” que surgem nos testemunhos coevos, no vocabulário e na consciência dos atores da época, a partir da conjugação de três fatores distintos: a riqueza, o estatuto e a autoridade. O estudo desenvolve-se sobre 376 inventários post mortem de Lisboa, datados de 1755 a 1836. Após detalhadas considerações metodológicas e uma análise quase exaustiva dos dados recolhidos, propõe-se a hipótese de um crescente investimento no papel social do interior das moradias, à semelhança do que se lê no trabalho de Aparecida Borrego e Rogério Félix, muito embora no caso do amplo universo de Andreia Gomes, esse traço pareça repetirse praticamente em todos os grupos da sociedade. O artigo acaba por ser, aliás, inconclusivo quanto a um padrão de consumo específico dos grupos médios, mas sublinha a importância dos valores relativos dos móveis e dos imóveis para a diferenciação desses grupos em relação aos estratos inferiores da sociedade. Do mesmo modo, indica que os investimentos suntuários ou financeiros serviam claramente para marcar um movimento de aproximação às camadas superiores da sociedade.
O contributo final, de Máximo García Fernández (“Cambios y permanencias en la cultura material cotidiana no privilegiada: un mundo complejo. Castilla (y Portugal) durante el Antiguo Régimen”), serve como termo de comparação com a realidade espanhola e aprofunda a questão da mudança de padrões de consumo no crepúsculo do Antigo Regime ibérico. A problematização, sobretudo historiográfica, desenvolve-se em torno dos modos de transferência dos padrões de consumo de um grupo social a outro, e do papel representado pelos estratos “burgueses” no processo de disseminação e, eventualmente, universalização dos padrões de consumo que antes distinguiam as elites.
Cinco trabalhos. Sete estudiosos. Seis unidades acadêmicas. Trata-se de um conjunto que nos parece ilustrativo do que melhor se tem feito sobre o tema proposto. Para poder concretizá-lo, muito contribuiu o projeto de pesquisa Intergrupos – Grupos intermédios em Portugal e no Império português: as familiaturas do Santo Ofício (c. 1570-1773), PTDC / HIS-HIS / 118227 / 2010, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, sob a coordenação de Fernanda Olival. Iniciativa que desde o começo obedeceu ao intuito de favorecer o diálogo historiográfico luso-brasileiro, pela partilha de dados, hipóteses e metodologias. Porque sendo sempre preciso valorizar o que há de específico a cada local, a começar pela própria linguagem dos testemunhos, de acordo com os bem-informados conselhos do mestre Braudel, convém definir ferramentas que nos permitam mais facilmente integrar resultados e conclusões. Por muito lento que seja o processo.
Lisboa / Providence, novembro de 2016
Notas
- BRAUDEL, Fernand. Civilisation matérielle, économie et capitalisme XVe -XVIIIe siècle, vol. 2 (Les jeux de l’échange). Paris: Armand Colin, 1979, p. 547-551.
- Ibidem, p. 557-558.
- Ibidem, p. 557-568, e vol. 3 (Le temps du monde), p. 62-67. 17
- DE VRIES, Jan. The industrial revolution and the industrious revolution. The Journal of Economic History, vol. 54, n. 2. Cambridge, 1994, (Papers Presented at the Fifty-Third Annual Meeting of the Economic History Association), p. 249-270; GRENIER, Jean-Yves. Travailler plus pour consommer plus: Désir de consommer et essor du capitalisme, du XVIIe siècle à nos jours. Annales. Histoire, Sciences Sociales, n. 3. Paris, 2010, 65e Année (Histoire du travail), p. 787-798.
- BRAUDEL, Fernand. op. cit., vol 2., p. 554-557 e 592-597.
- Ver, por todos, SÉRGIO, António. Antologia dos economistas portugueses. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1974; GODINHO, Vitorino Magalhães. A estrutura da antiga sociedade portuguesa. Lisboa: Arcádia, 1971; COELHO, Maria Helena da Cruz & MAGALHÃES, Joaquim Romero. O poder concelhio das origens às cortes constituintes. [1ª edição, 1986] 2ª edição. Coimbra: Centro de Estudos de Formação Autárquica, 2008; HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal – séc. XVII. [1ª edição espanhola, 1989] Coimbra: Livraria Almedina, 1994; MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 1992-1993, 8 vol.; BETHENCOURT, Francisco & CHAUDHURI, Kirti, dir. História da expansão portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998-1999, 5 vol.; RAMOS, Rui, SOUSA; Bernardo Vasconcelos, MONTEIRO; Nuno Gonçalo. História de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2009.
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- O debate é público e muito alargado. Para uma sua expressão mais radical, veja-se, por exemplo, GUERREIRO, António. A classe média nunca existiu. Público. Porto. 30.09.2016. Disponível em: https: / / www.publico.pt / culturaipsilon / noticia / a-classe-media-nunca-existiu-1745207?frm=ul
Tiago C. P. dos Reis Miranda – Universidade de Évora (CIDEHUS) Évora – Portugal. Investigador integrado do Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades. E-mail: trmiranda@uevora.pt
Bruno Feitler – Universidade Federal de São Paulo Guarulhos – São Paulo – Brasil. Doutor em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales. Professor adjunto de História Moderna da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Unifesp e bolsista de produtividade em pesquisa CNPq. E-mail: brunofeitler@gmail.com
FEITLER, Bruno; MIRANDA, Tiago C. P. dos Reis. Apresentação [Hierarquias e mobilidade social no Antigo Regime: os grupos intermédios no mundo português]. Revista de História, São Paulo, n. 175, 2016. Acessar publicação original [DR]