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Gripe espanhola / Varia História / 2009
O alargamento da agenda histórica operado pelas transformações vividas pela disciplina da História na segunda metade do século XX e o diálogo com outras áreas – como a demografia, a antropologia, a psicologia – têm contribuído de modo significativo para a incorporação de novos temas e perspectivas de abordagem, ampliando o universo de investigação dos historiadores e transformando substancialmente o modo como investigam esses objetos. Essas mudanças foram fator fundamental para que a comunidade dos historiadores voltasse seu olhar para a experiência das sociedades em torno da saúde e das doenças. Até este período, a história das doenças e a própria história da medicina permaneceram temas marginais entre os profissionais da disciplina, tornando-se domínio praticamente exclusivo dos próprios médicos. No dizer de Charles Rosenberg, a história da medicina era uma história profissional, feita por médicos para médicos.[1]
A partir da década de 1960, observou-se no interior da História da Medicina um crescente movimento de superação das narrativas laudatórias e progressistas e a expansão não apenas do volume de pesquisas, mas também dos objetos analisados, das fontes documentais utilizadas e das opções teóricas de abordagem. Para além da evolução das práticas e teorias, das grandes descobertas e dos personagens notáveis, os novos estudos se voltaram para a percepção dos pacientes, as atitudes sociais diante da doença e da morte, a terapêutica, as interações entre ecologia e sociedade, a construção do saber acadêmico e suas relações com os saberes leigos, as articulações entre medicina-estado-sociedade, a profissionalização no campo da saúde, a história institucional, a construção do saber científico em torno do corpo, do ambiente, da saúde e da doença, e, especialmente, a forma de estruturação de determinados conhecimentos e campos de saber e como estes conhecimentos circulam entre pares e a sociedade de um modo geral.
No domínio específico da História das Doenças, a perspectiva social construtivista contribuiu para a sução de uma concepção tradicional, pautada por uma abordagem essencialmente biológica, na qual a enfermidade é tratada como fenômeno fisiopatológico – uma entidade conceitualmente específica e ontologicamente real, conformada pela sua evidência orgânica, natural e objetiva e isenta de determinações culturais ou atributos sociais. A partir de então as doenças passaram a ser vistas como objetos historicamente situados, cuja existência ultrapassa o sentido biológico, incorporando também os sentidos particulares a elas atribuídos por indivíduos e grupos, e que são elaborados no interior de um complexo conjunto de relações socioculturais.[2] Recorrendo mais uma vez a Rosenberg, podemos dizer que a doença é uma entidade híbrida esquiva e impalpável, um “amálgama que envolve tanto a sua natureza biológica como os sentidos que lhe são atribuídos” e, ao mesmo tempo, “um problema substantivo e um instrumento analítico”.[3]
Entre os diversos temas inscritos no campo da História das Doenças, podemos destacar os estudos voltados para as manifções epidêmicasEpisódios de natureza efêmera, mas intensa e arrebatadora, as epidemias têm se revelado um importante ponto de inflexão na história das sociedades, através do qual é possível examinar aspectos e dimensões variadas da vida social em uma determinada épocaInscritos na intercessão entre natureza e sociedade, os eventos epidêmicos, como as demais doenças, ultrapassam o âmbito biológico, ganhando sentido a partir do contexto humano do qual emergem, das transformações que promovem no cotidiano – seus impactos econômicos, políticos, sociais – e do modo como iluminam valores culturais de uma sociedade, aos quais dão expressãoDe modo semelhante a outras experiências sociais trágicas, como a guerra, a fome ou as catástrofes naturais, as epidemias impõem aos homens dilemas comuns: a angústia e o medo da morte e o desejo de salvar-se do perigo, as imposições das necessidades de sobrevivência, o manejo de ferramentas que contribuam para entender e explicar uma experiência que escapa às estruturas lógicas e emocionais da existência comumAlém disso, também possibilitam o estudo das diversas formas de compreensão e interpretação da doença em sção epidêmica, suas formas de contágio e proliferação, os impactos nas práticas e teorias da higiene pública, as escolhas de medidas preventivas e as medidas de ordem emergencial e reparadoras.
Como sugere a historiografia, um breve exame dos estudos dedicados ao tema em épocas e contextos diferentes aponta várias similaridades nas respostas sociais contra os impasses impostos pela crise epidêmica. A fuga dos lugares infectados, as críticas às autoridades, a tentativa de identificação e a estigmatização daqueles considerados como “culpados”, a polarização de preconceitos, a reafirmação de crenças e práticas rituais religiosas, a mobilização social no socorro às vítimas são aspectos componentes de uma estrutura narrativa que obedece a uma determinada ordem de exposição, conformando um padrão recorrente, ao qual Richard Evans chamou “a literatura da peste”.[4] Como um “episódio dramatúrgico”, a narrativa epidêmica assemelha-se a um enredo que se desenvolve através de uma seqüência de atos previsíveis: a negação e seu progressivo reconhecimento; a tentativa de explicação, envolvendo elementos morais, religiosos, científicos; as ações ou respostas elaboradas para fazer frente ao mal; e a reflexão que se constrói sobre a experiência, buscando extrair lições desse acontecimento[5].
Consideradas como construção intelectual, as representações formuladas em torno destas experiências também adquirem vitalidade, conformando novas percepções em torno de outros eventos epidêmicos. É o que se nota em relação à descrição de Tucidides sobre a peste de Atenas[6] ou a narrativa de Daniel Defoe[7] sobre a peste em LondresUm interessante exercício nesse sentido pode ser feito avaliando-se a validade e a atualidade das representações observadas em Tucidides e Defoe na abordagem de experiências mais recentes, como a AIDS, a SARS, a gripe aviária ou a presente pandemia de gripe suína.
Entretanto, apesar de todas estas recorrências, o estudo das epidemias não se resume à narração de um desastre. Essa descrição compõe apenas um dos níveis através dos quais os episódios epidêmicos podem ser analisados, havendo outras dimensões a partir das quais as epidemias podem ser abordadas pelo pesquisador. Além disso, é preciso recordar que o sentido desses eventos e suas conseqüências sociais são modulados segundo contextos que são específicos, isto é, em sociedades e tempos específicos. Essas diferentes possibilidades de abordagem e o modo como as experiências epidêmicas são conformadas por características que são próprias de determinadas sociedades são percebidos através de seis artigos presentes neste número da Revista Varia Historia. Estes textos compõem um Dossiê dedicado à terrível pandemia de influenza espanhola que assolou o mundo no ano de 1918, completando assim noventa anos. Na leitura dos artigos o leitor terá a oportunidade de observar tanto os elementos comuns como as especificidades que marcam a história deste evento epidêmico em diferentes sociedades, assim como a riqueza de problemas que podem ser perscrutados a partir de uma experiência dessa natureza. Neste ponto destaca-se uma característica dos estudos que abordam a história das ciências da saúde: os recortes bem definidos em termos temporais e espaciais, essenciais em qualquer estudo histórico, nem sempre conseguem abordar de forma satisfatória as mudanças nas formas de compreensão das doenças e das epidemiasPor um lado, faz-se necessário comparar situações, em tempos e espaços diversos, afinal o vírus circula com os movimentos de deslocamentos dos homens e acompanha as formas de vidas dos homensPor outro lado, os modos de compreensão das doenças e suas manifções epidêmicas produzem uma interpretação acerca do fenômeno, que se altera e se adapta ao longo do tempo e do espaço. Não se trata apenas de proteger uma região, trata-se de discutir o contágio e os impactos desta possibilidade em pleno século XX. Quanto tratamos de temas da história das ciências, com uma abordagem que privilegia as interações culturais, não se pode menosprezar a importância da circulação do conhecimento[8] e, no caso específico da denominada gripe espanhola, da circulação do vírus.
O artigo de José Manuel Sobral, Maria Luisa Lima, Paulo Silveira e Souza e Paula Castro revela os impactos da pandemia de influenza em Portugal, país ainda eminentemente rural e marcado pelos conflitos políticos e ideológicos em torno da organização da recente República (proclamada no ano de 1910), e em particular pelo governo de Sidónio Pais, responsável pelo golpe militar que instituiu um governo conservador e autoritário a partir de 1917Os autores abordam aspectos apresentados como estruturais – as carências sanitárias, econômicas e no campo da própria medicina portuguesa – e conjunturais – a crise econômica e social aprofundada pelo tempo de guerra e pelos conflitos políticos internos – para discutir os impactos e as respostas da sociedade portuguesa aos impasses impostos pela pandemiaTraçam uma ampla perspectiva da orgação dos serviços de saúde, enfatizando que, apesar de ser possível observar alguns avanços na fção profissional e na estruturação da assistência, estes serviços estiveram concentrados em grandes cidades, como Lisboa e Porto. Associando estes dados àqueles relativos à mortalidade atribuída à influenza, revelam como o flagelo da doença foi mais evidente nas regiões carentes de controle administrativo e de poder econômico. As instruções recomendadas pelas autoridades sanitárias portuguesas para administrar a situação imposta pela moléstia não diferem do que se tem observado em outros países: o mapeamento da expansão da doença através da notificação; a reafirmação dos meios de profilaxia individual e normas de higiene geral, na ausência de uma profilaxia específica para a moléstia; a criação de hospitais provisórios e o recrutamento de profissionais e estudantes de medicina no atendimento à população; o engajamento social e a mobilização de recursos em torno da assistência aos pobresCorroborando a perspectiva de que a crise epidêmica ultrapassa a capacidade de atuação das autoridades governamentais, o texto descreve ainda a mobilização de diferentes setores da sociedade portuguesa para fazer frente à magnitude dos impactos sociais da moléstia. Por outro lado, apesar de praticamente não ter alterado a organização da assistência à saúde no país, as alianças políticas instituídas pelo governo conservador de Sidónio Pais – na contramão de algumas mudanças inauguradas com a República – parecem ter facilitado a organização dessa mobilização beneficente, que envolvia a igreja e setores da elite conservadora.
A análise de Christiane Maria Cruz de Souza aborda a trajetória da pandemia de influenza na cidade de Salvador. Enfocando os dados divulgados pela imprensa relativos à expansão do contágio, a autora aponta como a pandemia foi um evento que atingiu um amplo espectro da sociedade baiana, ignorando distinções entre ricos e pobres – característica que estava relacionada à forma de transmissão aérea do vírus. Apesar de apresentar uma forma de transmissão considerada por muitos como mais “democrática”, as estatísticas relativas aos acometidos pela doença revelam que os impactos da pandemia foram maiores nas áreas que concentravam populações mais carentes, mais expostas ao contágio quer pelas condições de subsistência, quer pelas condições de trabalho – aqueles confinados em espaços reduzidos, como operários, presos; aqueles que precisavam expor-se ao espaço da rua e aos contatos não-controlados para garantir sua existência, como carteiros, portuários, mendigos, prostitutas. Tal afirmação é corroborada pela ausência de notificações da doença entre as freiras do Convento da Lapa. Segundo a autora, a geografia da mortalidade traçada pela influenza espanhola na capital baiana segue a mesma tendência verificada no contágio da moléstia, atingindo de modo mais expressivo a população mais carente da cidade. Além da maior exposição ao contágio, as precárias condições de existência, em especial de alimentação, também são apontadas como fatores predisponentes para um maior número de vítimas entre as camadas pobres. A análise propiciada pelos dados também contribui para revelar aspectos da ocupação espacial e da realidade cotidiana vivenciada pelos moradores da capital baiana. O texto ainda aborda aspectos da atuação das autoridades diante da moléstia – o atraso no reconhecimento da presença da epidemia, a mobilização voltada para o atendimento dos pobres, a agenda de ações (em alguns momentos contraditórias) colocada em prática pelo poder público. Além disso, expõe como a influenza interferiu em certas práticas e rituais, especialmente aquelas ligadas à morte, como os funerais ou as romarias do dia de finados.
Diversamente da maioria dos estudos dedicados à história das epidemias, e à pandemia de influenza espanhola em particular, Elisabeth Engberg focaliza sua análise sobre comunidades rurais do norte da Suécia. A autora parte do pressuposto de que as áreas urbanas estariam mais aptas a organizar medidas efetivas para fazer frente às experiências desta natureza do que áreas rurais tradicionais, onde a organização da saúde pública era menos desenvolvida, funcionando em um nível mais elementar e contando com um número reduzido de profissionais e uma organização institucional distinta. Este é um dos fatores que ajudam a explicar a relativa ausência de medidas tomadas pelas autoridades para evitar e enfrentar os dilemas impostos pela pandemia e, também, o silêncio observado nos registros municipais sobre esse episódio. Ainda que a Suécia não estivesse diretamente envolvida na Primeira Guerra Mundial, sua população também esteve submetida às privações impostas pelo conflito, o que influiu significativamente nos impactos da pandemia naquela sociedade, assim como nas possibilidades de enfrentamento da doença pelas autoridades. É interessante observar os diferentes níveis de poder envolvidos nas determinações relativas à saúde e, nesse sentido, o papel atribuído às instituições comunitárias locais, o que pode ajudar a compreender a ausência de dados sobre a pandemia na documentação municipal. Como mostra Engberg, a hesitação das autoridades sanitárias e o atraso na implementação de medidas contra a pandemia podem ser explicados pela legislação pouco clara quanto às atribuições dos diferentes níveis de poder e pela divergência entre os profissionais da medicina sobre a natureza da moléstia e o modo de combatê-la. Nessa perspectiva, a autora avalia que as medidas postas em prática pelas autoridades de saúde tiveram um caráter mais reativo que preventivo. Além disso, essas medidas revelam que boa parte das recomendações e das formulações feitas pelas autoridades nacionais em torno do combate à pandemia voltavam-se mais para a realidade urbana, estando pouco adaptadas às peculiaridades presentes nas áreas rurais. Através de sua análise, Elisabeth Engberg mostra como a vivência da pandemia em áreas rurais é diferente daquela observada no contexto urbano, conformando assim um padrão distinto de respostas sociais.
As reações populares diante da pandemia são o tema de artigo de Liane Maria Bertucci. Apresentando uma descrição sumária da expansão da influenza espanhola no Brasil e das opiniões emanadas pelas autoridades sanitárias, a autora se detém no temor que as notícias sobre a doença despertavam na população e na preocupação com que essa atmosfera de medo era avaliada pelos responsáveis pelo combate a doença. A percepção de que um espírito temeroso e intranqüilo funcionasse como um fator de desequilíbrio que predispunha o indivíduo ao contágio e ao adoecimento já era conhecida pela medicina medieval e defendida por diferentes correntes teóricas desde então. Como mostra a autora, esses preceitos de uma medicina chamada “psicossomática” foram atualizados e amplamente afirmados no decorrer da pandemia de 1918. Nesse sentido, não seria difícil entender os argumentos daqueles que aconselhavam calma à população, e mesmo a necessidade de certa dose de otimismo e de divertimento público, como observado em outros eventos epidêmicos e também apontado em outros textos apresentados nesta coletânea. Apesar da ênfase com que estes preceitos foram divulgados por todo o país, o temor gerado pela doença acabou influindo de modo significativo nas reações sociais: o isolamento, a descriminação, a fuga, a abolição de ritos e de comportamentos julgados como inadequados em tempos de ameaça epidêmica impuseram às cidades uma existência marcada, no dizer da autora, pelo “compasso da epidemia”. Além das mudanças produzidas pela influenza no ritmo da vida cotidiana, o medo da doença também levaria a uma alteração nas percepções e na sensibilidade da população, promovendo muitas vezes o embrutecimento e a indiferença entre os indivíduos. Por outro lado, a potencialização das angústias e das incertezas promovidas pelo medo também deu lugar a comportamentos opostos, como a solidariedade e a generosidade, expressos na ampla mobilização verificada em torno dos enfermos: o socorro aos adoentados, o recolhimento de donativos, a distribuição de alimentos, a ampla divulgação dos mais diversos preventivos e fórmulas caseiras encaminhados aos jornais para o combate à influenza. Essas receitas também expunham práticas e crenças em torno da doença e do adoecimento que remetiam a uma experiência secular na qual se misturavam elementos da experiência cotidiana, das crenças religiosas e de diversas teorias médicas. A proximidade entre algumas práticas sociais verificadas durante a pandemia de 1918 e aquelas relatadas em experiências da mesma natureza é um exemplo revelador do que a historiografia tem apontado como similaridades e respostas sociais comuns verificadas durante os eventos epidêmicos.
O texto de Maria Isabel Porras Gallo discute o modo como a crise sanitária imposta pela pandemia de 1918 contribuiu para iluminar os conflitos no interior das chamadas profissões sanitárias – medicina, farmácia e veterinária – e dinamizar o processo de modernização profissional vivenciado por farmacêuticos e veterinários espanhóis, durante as duas primeiras décadas do século XX. Segundo a autora, a atenção dispensada pela historiografia aos profissionais de saúde envolvidos nesse evento epidêmico na Espanha tem se voltado majoritariamente para o papel desempenhado por médicos e enfermeiros, ignorando outros atores importantes naquele contexto. O período anterior à pandemia havia sido marcado pelo consenso por parte dos médicos e de outras elites da sociedade espanhola sobre a necessidade de reformas para superar o atraso sanitário no qual o país se encontrava. No bojo deste processo inscreve-se a mobilização entre médicos, farmacêuticos e veterinários no sentido da renovação e da reorganização profissional, garantindo desta forma prestígio econômico e social. Entre os médicos essa mobilização ocorreu através de academias e sociedades científicas, da representação no parlamento além das denúncias e das propostas de solução para os problemas sanitários então identificados – soluções que enfatizavam o preparo científico da classe, fundado num discurso triunfalista embalado pelas conquistas proporcionadas pela bacteriologia. A crise epidêmica transformou-se assim em momento privilegiado para que os doutores buscassem reafirmar a sua autoridade e seu preparo, senão para debelar a doença, ao menos para identificar e sugerir medidas que minimizassem as carências responsáveis pela ampliação dos problemas acarretados pela influenza. Como mostra a autora, farmacêuticos e veterinários teriam lançado mão dos mesmos artifícios usados pelos médicos – com destaque para o apelo às possibilidades e conquistas advindas da ciência do laboratório – para afirmar sua importância profissional, demarcando e garantindo o seu lugar na nova organização sanitária que ia se conformando no país.
O último artigo da coletânea apresenta um enfoque epidemiológico que discute a gripe no Departamento de Boyacá, na Colômbia. Nessa análise sobre a pandemia de 1918, os autores Abel Fernando Martinez Martin, Juan Manoel Ospina Diaz, Fred Gustavo Manrique-Abril e Bernardo Francisco Meléndez Alvarez se estendem para além dos dados relativos à influenza espanhola, fazendo um registro do impacto da mortalidade atribuída à doença no período abarcado entre os anos de 1912 e 1927. Foram levantados 106.408 registros de óbito em 68 municípios do Departamento de Boyacá e, nesta análise ampliada sobre os impactos da moléstia naquela região, observa-se que a pandemia apresentou um comportamento relativamente distinto daquele relatado em diversas regiões do mundo. Dividindo o período analisado em pré-pandêmico (1912-1917), pandêmico (1918) e pós-pandêmico (1919-1927), os autores apontam que não se observam as três ondas de contágio verificadas especialmente nos Estados Unidos e nos países europeus, ou ainda o significativo aumento de vítimas entre os adultos jovens, que teria dado ao gráfico da mortalidade da gripe por faixas etárias uma forma distinta ao que normalmente era observado (o padrão em U, com a mortalidade concentrada nas duas faixas etárias extremas e o padrão em W, em que o impacto da mortalidade se tornava bastante expressivo também ente os adultos jovens, como foi verificado em estudos dedicados à pandemia de 1918 em diferentes países). Para a região em exame, os dados sinalizam que os grupos mais afetados pelo crescimento da mortalidade durante a pandemia continuaram sendo os indivíduos maiores de 60 e os menores de 7 anos de idade. Também é possível verificar que, diversamente do observado nos períodos pré e pós-pandemia, houve um significativo aumento na proporção de óbitos por gripe entre os adultos jovens, ainda que ele não tenha ultrapassado o crescimento verificado nas duas faixas etárias anteriormente destacadas. Apesar dessas diferenças, os dados também apontam a expressiva mortalidade causada pela doença no ano de 1918 (cerca de seis vezes maior que no período pré-pandêmico) e a concentração de óbitos no último semestre daquele ano (o que também é observado na maioria dos países, confirmando a drástica mutação do vírus em meados de 1918). Para o período pós-pandêmico, os dados sugerem ter a influenza se estabelecido como causa significativa da mortalidade entre a população, assumindo uma proporção elevada entre os óbitos registrados a qual não se verifica no período pré-pandêmico. Ao lado destes dados, os autores ainda revelam os impactos da moléstia na vida cotidiana de diferentes localidades do Departamento de Boyacá, onde também se pode observar as críticas e os limites da atuação das autoridades sanitárias, a mobilização social em torno das vítimas ou o apelo à religião e ao sobrenatural para afastar a ameaça da doença, como revelado em outros textos deste volume.
O presente Dossiê não pretende esgotar as possibilidades de abordar o tema da pandemia da gripe espanhola. Ao contrário, busca instigar, a partir da apresentação de pesquisas de diversas partes do mundo, os novos pesquisadores para o potencial de investigação da história das doenças e suas situações epidêmicas. A diversidade de perspectivas presente nos artigos ora apresentados indica, além da multiplicidade de abordagens possíveis, que há muito a ser trabalhado, pesquisado e discutido neste campo, que se constitui, por natureza, como interdisciplinar. Neste Dossiê apresentamos algumas das possibilidades de leitura e interpretação do episódio de 90 anos atrás e aguardaremos, com expectativa, que o campo de pesquisa nesta área no Brasil cresça e prolifere e, neste caso, com a mesma virulência da pandemia espanhola.
Belo Horizonte, outubro de 2009.
Notas
1.ROSENBERG, Charles E. Explaining epidemics and other studies in the History of Medicine. Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p.2. [ Links ]
2. ROY, PorterDas tripas coração. São Paulo: Record, 2004; [ Links ] PESTRE, Dominique. Por uma nova história social e cultural das ciências: novas definições, novos objetos, novas abordagens. Cadernos IG / Unicamp, v.6, n.I, 1996. [ Links ]
3. ROSENBERG, Charles E. e GOLDEM, Janet. Framing disease: studies in Cultural History. New Brunswick: Rutgers University Press, 1997, p.XXIII. [ Links ]
4. EVANS, Death in Hamburg: society end politics in the cholera years, 1830-1910. London: Penguin Books, 1987, p.XVII. [ Links ]
5. ROSENBERG, Charles E. Explaining epidemics and other studies in the History of Medicine. [ Links ]
6. Tucidides. História da Guerra do Peloponeso. Brasília: UNB, 1987. [ Links ]
7. DEFOE, Daniel. Diário do ano da peste. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2002. [ Links ]
8. PYENSON, Lewis. Comparative history of Science. History of Science, v.XL, p.1-33, 2002. [ Links ]
Anny Jackeline Torres Silveira – Professora do Centro Pedagógico e da Pós-graduação em História – UFMG. E-mail: anejack@terra.com.br
Betânia Gonçalves Figueiredo – Professora do Departamento e da Pós-graduação em História – UFMG. E-mail: beta@ufmg.br
(Organizadoras)
TORRES, Anny Jackeline; FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.25, n.42, jul. / dez., 2009. Acessar publicação original [DR]