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Mídia e Poder em Perspectiva Histórica / Crítica Histórica / 2019
A motivação para a organização do dossiê Mídia e Poder em perspectiva histórica partiu da observação de que, nos últimos anos, se intensificou o debate, em diferentes setores da sociedade, tanto no Brasil como no mundo em geral, a respeito do papel das mídias, ou meios de comunicação, tradicionais e novos. Tem sido enfrentadas questões do tipo se tais meios têm atuado como um elemento que atua no sentido do fortalecimento ou do enfraquecimento da democracia, como mecanismos de legitimação da ordem ou de incitação de agitações político-sociais, como ferramentas para articulação de demandas e estabelecimento de novos vínculos coletivos, ou como u catalisador de desagregações sociais, atomização e pulverização de condutas e ações. Tendo em vista a complexidade do cenário contemporâneo, pois, a proposta do dossiê foi compor um quadro variado de pesquisas que abordassem questões relevantes relativas aos meios de comunicação especialmente sob o ponto de vista de historiadores e historiadoras.
O objetivo, agora alcançado, é permitir um olhar mais amplo no tempo e no espaço que enfoque as transformações conjunturais ou as de mais longo prazo a respeito dos meios de comunicação, sua história, sua importância e suas relações com variadas concepções de história e configurações de poder. O resultado final, aqui materializado e trazido à público, expressa os anseios iniciais dos organizadores e sublinha este campo frutífero de pesquisas que se têm desenvolvido no país.
A problemática política e as relações de poder que perpassam os sujeitos políticos, as organizações de classe e partidárias, o imaginário social, a cultura, a religião e o mercado de consumo na contemporaneidade se destacaram no conjunto dos textos. Os artigos selecionados são exemplares tanto para os pesquisadores da área, como para uma leitura menos profissionalmente comprometida, mas interessada nas relações entre a política, partidária ou não, e a chamada grande mídia durante todo o século XX. Se a imprensa é parte inerente do jogo democrático, como ferramenta ela serve a diferentes interesses, disputados, por vezes, violentamente, podendo se transformar tanto em um agente catalisador e incentivador do fortalecimento das leis, instituições e grupos sociais os mais diversos em formação ou transformação, bem como se constituir em um agente perturbador para o aprofundamento de modos de vida livres, solidários e plurais.
Como elemento explicativo para o foco temporal das pesquisas aqui presentes, é importante destacar a facilidade cada vez maior para o acesso aos acervos e hemerotecas dos grandes jornais brasileiros, muitos agora disponíveis on-line, facilitando uma consulta mais ágil a series maiores de antigas edições de jornais e revistas. Os historiadores têm se aproveitado muito bem dessa nova oportunidade e, apesar de contínuos desafios técnicos e estruturais dos acervos, encontram-se devidamente equipados com um já sólido instrumental teórico-metodológico próprio de nossa disciplina para dar conta dessa tarefa exploratória.
Vamos aos textos! Optamos por apresentar os artigos em ordem cronológica, a partir dos temas que abordam, sem intenções de engessar as temporalidades, mas indicando um processo amplo, que percorre os contextos políticos e econômicos do Brasil republicano, durante o último século.
Abre o Dossiê o artigo de Gabriel José Brandão de Souza, intitulado “Entre disputas e negociações: a construção histórica da região cacaueira a partir do jornal Gazeta de Ilhéos (1901- 1904)”. Nele, o autor analisa “o processo de construção da narrativa histórica da região cacaueira, a partir das disputas políticas e ideológicas entre os grupos de elites na cidade de Ilhéus-BA no início do século XX”. Para isso, utiliza a Gazeta de Ilhéos como fonte principal. Segundo Souza, importa “perceber como esses grupos passaram a utilizar-se da imprensa não apenas como uma difusora de ideias e ideais, mas como um importante partido político de oposição, compondo assim, uma outra estratégia do jogo político para além da violência, voltada para a veiculação das suas opiniões e da disputa de espaços de poder.”
Na trilha da reflexão sobre os usos políticos da imprensa, Douglas de Souza Angeli, em “Deixar de votar é votar no inimigo”: Igreja e imprensa católica na construção do eleitor no Rio Grande do Sul (1945-1950)”, aborda o tema “propondo compreender a mobilização visando à construção do eleitor no período inicial da experiência democrática, ou seja, a construção de um interesse pelo ato de votar no momento de retorno das eleições, de criação de partidos políticos nacionais e de ampliação significativa do eleitorado inscrito”. Para Angeli, para isso foi fundamental “a atuação de agentes específicos […]: a Igreja Católica, a Liga Eleitoral Católica e a imprensa católica”. Utilizando-se dos jornais Correio Rio-Grandense, Jornal do Dia e o Unitas – boletim da província eclesiástica do Rio Grande do Sul, o autor, afirma que “a construção do eleitor católico” foi, naquele momento ,“impelida com base em um discurso marcadamente anticomunista, articulado às estratégias de posicionamento da Igreja perante o Estado e às práticas de mobilização do clero e da Liga Eleitoral Católica visando ao alistamento e ao voto”.
O artigo seguinte, trabalha o mesmo espaço geográfico e temporal, alterando o foco para a análise de discursos voltados não à política, mas à construção de um imaginário social sobre a cidade de Porto Alegre e as “classes perigosas”. Em “Uma cidade nas sombras”: O mundo dos bas-fonds (Porto Alegre – meados de 1950)”, Marluce Dias Fagundes estuda como o centro de Porto Alegre teve sua paisagem transformada naquele período. Para a autora, é perceptível nas fontes “um contraste de luz e de sombras. Na medida em que a “modernidade” avança pelas ruas da capital sul-rio-grandense, a “decadência social e moral” invade esses mesmos logradouros. Uma região que até a contemporaneidade está presente no imaginário social da cidade é a Rua Voluntários da Pátria – parte dela reconhecida como uma “zona de meretrício”. Para compreender esse “mundo dos bas-fonds”, Fagundes recorre “à análise da imprensa local, sobretudo o Jornal Diário de Notícias, entre os anos de 1954 e 1960, destacando também “alguns casos de crimes sexuais de sedução que chegaram até à Polícia e à Justiça”.
Saindo do Rio Grande do Sul, vamos ao Rio de Janeiro, ainda nos anos 1950. Letícia Sabina Wermeier Krilow, no artigo, “Favela representada: disputas em torno de nomeações e significações nas páginas de jornais cariocas (1951-1954)” analisa como parte da “grande imprensa carioca” – Correio da Manhã, Jornal do Brasil e Última Hora -representou as áreas habitacionais chamadas favelas durante o Segundo Governo Vargas (1951-1954)”. Segundo Krilow, a relevância do trabalho dá-se “ao considerarmos que, no pós 1945, o Brasil passou por um acelerado processo de industrialização e urbanização, entretanto, tais processos não ocorreram espontaneamente, bem como geraram diversas consequências, nem todas positivas, o que causou sérios questionamentos”. Nesse sentido, a autora considera que “um dos fenômenos mais impactantes foi o grande aumento das áreas habitacionais chamadas de favelas”, e, por isso, “se torna relevante analisar a forma como este espaço urbano foi representado nos jornais”. Para ela, “levando-se em consideração o grande poder de legitimação / deslegitimação de ideias que os meios de comunicação possuem, notamos que a forma pela qual a favela é representada pode interferir ou legitimar tomadas de decisões políticas – políticas públicas –, o que possibilita vislumbrar que projetos de sociedade estão sendo difundidas, estando tais representações inscritas no que Bourdieu chama de luta simbólica, evidenciando também disputas entre os referidos jornais”.
Na sequência, Marcelo Marcon discute em “O Globo e as disputas em cena: Brizola e a criação e uma sigla emblemática, o Partido Democrático Trabalhista”, “a forma como o jornal Globo elaborou seu discurso no processo de disputa pelo domínio da sigla PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) entre Leonel Brizola e Ivete Vargas, e a consequente criação do PDT (Partido Democrático Trabalhista)”. Segundo Marcon, “isso ocorreu no processo de abertura política do regime militar brasileiro e reorganização partidária” e, através da análise das fontes e da historiografia, entende “que O Globo apoiou Ivete Vargas e investiu na desqualificação política de Leonel Brizola, uma vez que o jornal e o político gaúcho possuíam diferentes visões acerca do rumo da política brasileira”.
Avançamos no período da ditadura militar com o artigo de Pricila Niches Müller, “Negócio da China: a relação entre mídia e poder na diplomacia do Governo Geisel (1974-1979)”. Nele, a autora estuda as “relações entre imprensa e política externa no Brasil, com foco na análise do posicionamento de órgãos da imprensa a respeito da política externa do governo Geisel (1974-1979), a qual buscou a diversificação de parcerias com o emprego de uma política dita “pragmática, responsável e ecumênica””. A ênfase de tal política, segundo Müller, deu-se “no estabelecimento inicial da parceria estratégica com a República Popular da China, inclusive em nível de Embaixadas entre ambos os países”. Objetivando “investigar de que maneira a formação de parceria entre Brasil e China está retratada na grande imprensa brasileira no contexto dos anos que compreendem o Governo Geisel”, o artigo aborda, especificamente, “a representação feita pela imprensa acerca da posse do General Ernesto Geisel e a política externa do governo, bem como uma análise da questão que envolve a imprensa e a “opinião pública”.
Já Luciana Rossato, em “Juventude e publicidade nas páginas das revistas semanais Veja e IstoÉ (década de 1980)”, estuda as relações entre mercado consumidor, juventude e imprensa. O instigante artigo elucida “como ideias sobre a juventude foram veiculadas pela mídia impressa através de peças publicitárias na década de 1980 no Brasil, período marcado pela abertura política e pela ampliação do mercado consumidor”. Rossato utiliza uma documentação “composta por 30 peças publicitárias publicadas nas revistas Veja e IstoÉ no decorrer dessa década”. A análise recorre “aos conceitos de juventude de Margulis e Urresti (1996) e Abramo (1997), aos conceitos de consumo de Feathersone (1995) e aos meios e mediações de Martin-Barbero (2008)”. Nas peças publicitárias a historiadora constata “que as revistas selecionadas eram voltadas a um grupo específico de jovens, pertencente a uma determinada classe social, e difundiam uma concepção de juventude e ser jovem ligada à liberdade e a uma vida marcada por múltiplas possibilidades de escolha”.
Fechando o Dossiê, Thaíse Ferreira da Luz, com o texto “O Bom, o Mau e o Feio: as representações do jornal O Estado de São Paulo sobre os três principais candidatos à Presidência da República nas eleições de 1989”, realiza uma análise “sobre a representação de figuras políticas na mídia impressa”. A intenção de Luz é “verificar como a construção da imagem dos três principais candidatos ao pleito presidencial de 1989, Fernando Collor de Mello, Leonel Brizola e Luiz Inácio Lula da Silva, foi feita pelo jornal O Estado de São Paulo e, de que maneira essas representações elaboram uma construção simbólica desses candidatos”. Para tal, a autora observou “o uso das imagens nas páginas de O Estado de São Paulo e a construção discursiva do periódico, em uma mesma edição”.
Um Dossiê como este não se propõe a esgotar um conjunto de temas ou proposições de pesquisa, mas compor uma amostra, por pequena que seja, que pode auxiliar em desdobramentos posteriores, especialmente, apontando soluções teórico-metodológicas e novos temas e problemas de pesquisa. Tal diversidade e os encontros e desencontros eventuais demonstram que a riqueza da produção historiográfica brasileira está consolidada e extremamente viva e ativa.
Por fim, encerrando essa apresentação, nos parece ser importante nos situarmos como historiadores comprometidos com os problemas de nosso tempo. Por isso, foi inspiradora a imagem de capa selecionada para esta edição: Che lendo o jornal La Nación.
Ernesto Guevara de La Serna, o Che, foi um revolucionário argentino, combatente da Revolução Cubana de 1959, executado com auxílio de agentes da CIA na Bolívia em 9 de outubro de 1967. Che teve sua imagem veiculada mundialmente na grande mídia, impressa e televisiva, em estampas de camisetas, pôsteres e diferentes acessórios de moda, transformada inclusive em uma mercadoria, vinculada ao sistema político e econômico que passou a vida inteira combatendo e tendo sido por conta disso morto. Assim, não buscamos aqui a inspiração na “imagem” de Che, mas no agente teórico e prático que foi. A coerência entre pensamento e ação foi característica de sua trajetória, bem como a sua capacidade de agir no mundo visando transformá-lo de acordo com sua visão de como deveria ele ser.
Como profissionais de história, educadores e pesquisadores, que estão imersos em uma época marcada pelo ressurgimento de formas mais ou menos escancaradas de fascismo, nossa resposta ativa, nossa práxis, deve ser à altura. Desde nosso lugar, de nossa trincheira que são as universidades públicas, agora sob severo ataque, acreditamos que é um dever marcar a solidariedade e a ação que vá ao encontro dos interesses e necessidades dos povos pretos e periféricos, dos indígenas, das mulheres, dos LGBTs, da classe trabalhadora, enfim, daqueles cujas existências mesmas estão em vários sentidos ameaçadas.
E a universidade deve ser um espaço seu de direito! Falava Che aos estudantes cubanos em 1959:
Y, ¿qué tengo que decirle a la Universidad como artículo primero, como función esencial de su vida en esta Cuba nueva? Le tengo que decir que se pinte de negro, que se pinte de mulato, no sólo entre los alumnos, sino también entre los profesores; que se pinte de obrero y de campesino, que se pinte de pueblo, porque la Universidad no es el patrimonio de nadie y pertenece al pueblo de Cuba, y […] la Universidad debe ser flexible, pintarse de negro, de mulato, de obrero, de campesino, o quedarse sin puertas, y el pueblo la romperá y él pintará la Universidad con los colores que le parezca[1].
Que a luta antifascista em toda América Latina e no mundo seja vencedora!
Nota
1. Discurso en el auditorium de la Universidad Central de las Villas (al recibir el doctorado honoris causa) 28 de diciembre de 1959 In Ernesto Guevara. Obras Escogidas. CEME – Centro de Estudios Miguel Enriquez, Archivo Chile, p. 148.
Irinéia Franco
Luiz Alberto Grijó
Dezembro / 2019
FRANCO, Irinéia; GRIJÓ, Luiz Alberto. Apresentação. Crítica Histórica, Maceió, v. 10, n. 20, dezembro, 2019. Acessar publicação original [DR]
História Política: problemas e estudos / Anos 90 / 2016
A história política, vinculada às relações de poder político-institucionais que permeiam as sociedades e o Estado em suas múltiplas dimensões, renovou-se muito nas últimas décadas, ganhando cada vez mais impulso e importância. Neste dossiê, a revista Anos 90 abriu-se para contribuições concernentes a recortes temáticos que pudessem se enquadrar nesta área de estudos históricos, tanto para os problemas teóricos e metodológicos enfrentados pelos pesquisadores quanto para os estudos de objetos característicos desse campo de análise. Recebemos diversas contribuições de várias partes do país e do exterior, pelas quais agradecemos aos pesquisadores que se dispuseram a apresentar seus originais a este dossiê. Depois das avaliações realizadas, restaram os nove artigos que se seguem.
Os artigos estão apresentados em uma ordem lógica e cronológica ao mesmo tempo. Assim, o dossiê inicia com a contribuição de Maria Helena Capelato. Em História do Brasil e revisões historiográficas, a autora busca refletir sobre questões teóricas e metodológicas a respeito da escrita da história de modo geral e, em particular, sobre os seus usos políticos. Desse modo, o trabalho toma uma dimensão ético-política que traz importantes contribuições para o debate tão atual acerca dos lugares de produção de história, seus usos sociopolíticos e o papel dos profissionais e não profissionais nestas tarefas científicas e / ou culturais.
O segundo texto, das professoras portuguesas Isabel Maria Freitas Valente e Maria João Guia, trata da premente e espinhosa questão das políticas de imigração na União Europeia, centrado no exame da legislação respectiva. Ao mesmo tempo em que procura historiar as contribuições legislativas mais gerais a respeito do tema, ao final, as historiadoras concentram-se na temática propriamente portuguesa.
Luiz Alberto Grijó, por sua vez, aborda as empresas de meios de comunicação brasileiras, traçando um panorama amplo, desde o período pré-64 até os dias atuais. O artigo explora a transformação paulatina dos meios. Desde a situação anterior, na qual eram espécies de apêndices da luta política mais ampla, até o momento atual, em qum sequestraram a democracia em nome de seus próprios valores apresentando-se como protagonistas centrais no jogo político-partidário, inclusive agindo para a deposição da presidenta eleita em 2014.
Esteban Javier Campos, em seu artigo, propõe uma história comparada sobre as práticas e concepções políticas da Ação Popular e dos Montoneros tomando suas semelhanças e suas diferenças. O autor parte da análise desses movimentos a partir de suas origens católicas, suas aproximações com o socialismo e seus redirecionamentos entre linhas maoísta e peronista, em meio a reflexões sobre processos políticos em escala nacional.
Por sua vez, Larissa Rosa Correa e Paulo Roberto Ribeiro Fontes dedicam-se, através da análise da produção historiográfica mais recente sobre os trabalhadores e os movimentos sindicais brasileiros na época da Ditadura Militar (1964-1985), a observar “um certo apagamento” da história e da presença desses extratos sociais e suas organizações de classe na referida literatura. Visam, com isso, a lançar luzes em aspectos e lacunas ainda existentes a propósito do regime instaurado em 1964.
Adriane Vidal Costa procura na “prática epistolar de Júlio Cortazár”, em seu período mais frutífero, os anos de 1960 e 1970, instrumentos de compreensão para a formação de redes de sociabilidades intelectuais; de suas ideias políticas como um escritor engajado, ao mesmo tempo em que visa a recuperar o ambiente cultural de discussão literária e as funções sociais do intelectual em meio à defesa que Cortazár promovia do socialismo e sua condenação das ditaduras militares latino-americanas do momento.
O partido do Rio Grande: redes de relações, mediação e revolução de 1930, de Cássia Daiane Macedo da Silveira, discute o papel e a participação dos chamados intelectuais nos acontecimentos que envolveram a Revolução de 1930, especialmente nas articulações que acabaram levando a ela. Cássia centra-se na questão fundamental destes homens de letras como mediadores culturais e sociais e nos efeitos políticos que isso possibilitava, abordando os casos de dois deles: o carioca Rodrigo Otávio Filho e o gaúcho Felipe d’Oliveira.
Carla Brandalise, em seu artigo, remete-se às políticas internacionais da Itália sob o fascismo voltadas para a América Latina na década de 1920. Com efeito, assiste-se nesses anos a um recrudescimento dos interesses italianos sobre essa região, a partir do que se estabelece estratégias, pacíficas, de maior inserção econômicas e político-culturais. Para tanto, joga-se com a questão da latinidade intrínseca ao continente e com a perspectiva de que a Itália constitui a verdadeira líder dos povos latinos, dado que se outorga como lócus original e atemporal da romanidade. Suas ambições, portanto, vão para além da maior interação com sua comunidade emigrada.
Rodrigo da Rosa Bordignon, que encerra o dossiê por ser o que aborda o momento cronologicamente mais recuado, analisa as narrativas dos homens de letras, de comentadores, políticos e pensadores do Brasil na virada do século XIX para o XX. Enfoca especificamente a clivagem entre as posições “monarquistas” e “republicanas” a partir da perspectiva não de reificá-las, mas de desvendar os mecanismos que levaram a estas tomadas de posição, os quais ajudam a revelar qual ou quais concepções de política estavam em jogo e sua relação com os critérios de classificação e ordenação sociais e ideológicos e seus modos de legitimação.
Carla Brandalise.
Luiz Alberto Grijó.
BRANDALISE, Carla; GRIJÓ, Luiz Alberto. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 43, dez., 2016. Acessar publicação original [DR]
História e Mídia / Anos 90 / 2012
Há muito que os meios de comunicação social, também referidos genericamente e no singular como “a mídia”, participam do trabalho dos historiadores, precipuamente como fontes para suas pesquisas com objetivos que vão desde a busca de “fatos”, até a procura de dados para estudos sobre mentalidades, visões de mundo, cultura ou valores de determinadas épocas e lugares. Cada vez mais, porém, os próprios veículos se tem tornado objeto de pesquisas, não apenas para a produção de narrativas a seu respeito, mas em investigações que enfocam e analisam seus agentes e instituições, as concepções e visões de mundo que produzem e reproduzem, suas relações com as demais áreas da produção cultural, especificamente com a história enquanto produção acadêmica ou não, a sua relação com os demais agentes sociais, com o mercado, com a política, com a memória social.
O dossiê História e Mídia, que Anos 90 publica nesse número, reflete um pouco do estado da arte em termos da produção historio gráfica acadêmica a respeito do tema na América Latina. Os textos aqui contidos, de modo geral, se articulam em maior ou menor grau, a partir de estudos de casos, com preocupações epistemológicas e seus corolários teórico-metodológicos que as abordagens nessa área têm trazido para os historiadores. Assim, jornais, cinema, revistas, a televisão e o que produzem seus agentes são tomados como parte de objetos de estudos que findam por enfrentar questões relevantes para a historiografia que vão desde as relações entre determinados periódicos e o mundo cultural de uma sociedade ou época até a relação entre o que socialmente se entende por história, ou se procura fazer entender como tal, e aquilo que é veiculado reiteradamente por um periódico ou por programas de televisão. Ou seja, os artigos aqui apresentados não se limitam às suas excelentes contribuições específicas em termos dos temas e períodos que abordam, mas apontam para uma reflexão mais geral que discute história, memória, instituições sociais, produção e reprodução cultural, política – como disputa pelo poder e relação de dominação – e historiografia.
Desde o lançamento da proposta do dossiê, recebemos uma grande quantidade de artigos a cujos autores agradecemos muitíssimo. Lamentamos, porém, que a maioria não tenha sido incluída, o que ocorreu não pela falta de qualidade dos mesmos, pois muitos tiveram pareceres favoráveis, mas por uma decisão editorial que limitou o número de contribuições às dez aqui contidas.
Elas se iniciam com o trabalho de Marialva Barbosa que, tendo como pretexto “um olhar sobre as práticas, processos e sistemas de comunicação nas últimas décadas do século XIX”, com efeito propõe uma série de reflexões teóricas e, especialmente, metodológicas de apropriação histórica de objetos recortados na área dos meios de comunicação, os quais devem ser entendidos não em si mesmos, mas como imersos no espaço cultural maior a partir do qual se dá a sua produção e significação. A contribuição do artigo não se restringe a temas circunscritos ao período explicitado no seu título, ela é uma contribuição muito mais ampla, sendo aplicável a qualquer tema similar e, além disso, a qualquer escrita de história. A proposta é “que a história da comunicação seja sempre história dos processos e das práticas comunicacionais cujo procedimento metodológico desvende o circuito da comunicação”. Ainda segundo a autora, “uma história dos meios deve colocar a questão da comunicação como centro da reflexão e não apenas tentar descrever o conteúdo das mensagens ou remontar como se caracterizava a mídia outrora”.
O trabalho de Sônia Meneses, analisando o caso do jornal Folha de São Paulo e seu “projeto”, tendo como fonte principal mente os seus manuais de redação, discute a “operação midiográfica”. Este conceito, inspirado no de operação historio gráfica de Michel de Certeau, “tanto funciona para falar de práticas e elementos que conformam a produção midiática […], como sua posterior reprodução e ressignificação em vários ciclos hermenêuticos de significação do tempo”. A reflexão se volta para o modo como a produção midiática se torna também produção de um tipo muito específico de história e os mecanismos que lança mão para tal. Sônia Meneses aporta ainda mais elementos que contribuem com o aprimoramento das reflexões epistemológicas sobre a história e sua relação com o modo como é produzida, por quem é produzida e em quais condições, ao mesmo tempo em que enriquece as possibilidades teórico-metodológicas de apreensão pela historiografia acadêmica de objetos na área de história da mídia.
O trabalho seguinte é o de Claudio Elmir. Os desafios metodológicos da pesquisa em jornais é o seu foco básico. Tendo como ponto de partida uma pesquisa realizada com o jornal Última Hora, de Porto Alegre, as reflexões se voltam para os desafios encontrados, as perguntas formuladas à fonte e sobre ela e as possibilidades ou não de serem elas respondidas. Aqui o leitor encontra um tour pelo mundo da pesquisa acadêmica em periódicos diários de grande circulação, pelo que eles próprios são postos em questão e avaliados a partir dos desafios metodológicos que trazem à pesquisa histórica. “O jornal, nesta perspectiva da recepção, pode ser apropriado de formas as mais diversas. Quero propor uma breve digressão acerca de duas dessas maneiras de ler o jornal para fins de pesquisa. Uma delas […] consiste em tomá-lo (1) com fonte de informação. A segunda […], (2) faz dele objeto intelectual da pesquisa”. Claudio Elmir convida para uma crítica documental e para uma “aventura” pelos meandros da pesquisa histórica e seus desafios.
Marcelo Borrelli estuda o diário portenho El Clarín no período dos últimos meses do governo de Isabel Perón e dos primeiros do governo civil-militar instituído pelo golpe de Estado de 24 de março de 1976. Tem como tema específico o modo como o jornal apoiava as políticas de Estado e as ações clandestinas, “paraestatais”, voltadas para a “luta anti-subversiva”, a qual resultou, como todos sabemos, na carnificina que ceifou milhares de vidas de argentinos e de outras vítimas que foram assassinadas sem direito a qualquer procedimento jurídico-legal. Um estudo desse tipo “se torna imprescindível para se compreender o contexto que circundou o golpe de Estado de 24 de março de 1976, como também os argumentos que legitimaram um aprofundamento da repressão voltada contra os setores da esquerda radical e peronista mais combativos”. Num momento em que se implanta na Argentina a chamada Lei da Mídia de 2009, a qual visa extirpar monopólios e oligopólios na área da propriedade de meios de comunicação entre outras disposições, essa discussão a respeito do apoio que certas empresas monopolistas deram a ações criminosas implementadas por agentes estatais e paraestatais antes durante e depois dos regimes civis-militares latino-americanos mais recentes é extremamente pertinente e, mais ainda, necessária.
O texto de Reinaldo Lohn se debruça sobre questões semelhantes às abordadas por Marcelo Borrelli e, em parte, por Sônia Meneses. Estuda o periódico O Estado de Florianópolis, sob o ponto de vista de suas narrativas, as quais vinham ao encontro de uma certa visão de sociedade e país que se estava tentando estruturar desde os inícios do regime civil-militar de 1964. No caso da capital de Santa Catarina, um discurso do “novo” e do “moderno” que secundava e antecipava movimentos estatais e da iniciativa privada que transformavam a ocupação dos espaços urbanos da cidade com a substituições de edificações tidas como “casas velhas” por prédios “novos” de vários andares, bem como pela abertura de vias urbanas rápidas, parques e calçadões. Nesse caso, o “discurso jornalístico apresenta-se […] como uma das mais destacadas instâncias organizadoras do social, o que incluiu a definição sobre o que deve ser lembrado ou esquecido”.
Claudia Feld realiza uma profunda reflexão a respeito das conexões entre memória social e um meio específico de comunicação, a televisão. Toma como pretexto a reativação mais ampla da discussão na sociedade argentina, que ocorreu a partir de meados dos anos 1990, a respeito dos crimes da sua última ditadura civil-militar, especialmente as prisões, as torturas e as mortes patrocinadas por agentes e agências estatais e paraestatais. A televisão aparece como enquadrável em três eixos que seriam os seguintes: 1) como “empreendedora da memória”; 2) como “cenário da memória”; 3) e como veículo de transmissão de memória entre gerações. A partir de uma sólida discussão com as principais contribuições teóricas e epistemológicas a repeito, o trabalho mostra “que não se pode tomar a televisão isoladamente, porém todo o processo de memória e os atores envolvidos; mas tampouco se pode desconhecer o enorme potencial que tem a representação televisiva nos atuais processos de construção de memórias”.
O trabalho de Margarida Adamatti, por seu turno, também se situa em termos cronológicos no período da mais recente ditadura civil-militar brasileira, enfocando a questão da produção cinematográfica épico-histórica nacional em relação com o regime e, especialmente, em relação com a crítica de cinema em jornais “alternativos”. A sua opção metodológica é mais tradicional, de análise de conteúdo, mas obtém resultados interessantes no sentido de explicitar os critérios que lastreavam os autores das críticas, colaboradores dos jornais Opinião (1972-7) e Movimento (1975- 81), e as discussões que se travavam a respeito das produções cinematográficas, ou melhor, tendo elas como pretexto, pois “os jornais contribuíram com a disseminação de um pensamento historio gráfico oposto ao praticado pela grande imprensa, afinal foi a relação indissociável entre política e cinema que mudou a visão tradicional sobre a função da crítica de cinema.”
Luís Carlos Martins enfoca o período histórico anterior ao da implementação do regime civil-militar no Brasil. Na década de 1950, sob o governo de Getúlio Vargas, discutiram-se intensamente as questões da criação de uma empresa estatal petrolífera e do monopólio estatal no setor. Os principais jornais do país participaram ativamente do processo, o que o artigo analisa em detalhes no que diz respeito à imprensa do Rio de Janeiro, então capital da República. Ao contrário do que se poderia supor, pois é um tanto difundido na bibliografia que a “grande imprensa” dita “liberal” fazia figadal oposição ao governo “nacionalista” de Vargas, “no que se refere à relação entre os jornais e o universo político, notamos que os primeiros adotam sinuosas e distintas estratégias conforme os agentes do segundo se movem taticamente em torno do tema”. Isso aponta para a necessidade de que as pesquisas se aprofundem ainda mais nessa complexa relação entre imprensa e política que dificilmente pode ser reduzida a um maniqueísmo estreito.
O artigo de Aristeu Lopes tem como fonte as imagens presentes em periódicos da “imprensa ilustrada” do Rio de Janeiro na década de 1870. Seu objetivo é analisar a presença de uma simbologia republicana e como ela se articula com a imprensa de humor em si mesma e com um período marcado no Brasil pelo início da chamada “propaganda republicana” mais organizada e sistemática, ancorada em um Partido Republicano. A perspectiva adotada aponta para que “os periódicos analisados […] constituem uma fonte de pesquisa que permite compreender um momento da história do Brasil Imperial demarcado pelo surgimento de grupos políticos que passavam a contestar a ordem estabelecida”. Ou seja, o recurso aos jornais e sua produção não são um fim em si mesmo, mas uma estratégia teórico-metodológica para uma abordagem propriamente historiográfica.
O trabalho que encerra o dossiê é o de Mauro Franco. Seu objetivo é refletir sobre as “figurações do outro” através da imprensa brasileira no século XIX, especialmente a Revista Brasileira, em sua primeira fase de circulação (1857-61). A análise se volta para os conteúdos publicados na revista, tanto quanto às origens dos textos (boa parte composta por traduções de originais publicados em revistas francesas), quanto às suas características que visavam transformar o periódico em “um índice, um sintoma de uma nação / civilização que desejava por meio da palavra impressa contribuir para o desenvolvimento econômico, científico e artístico, em especial, do espaço público do jovem país.” Novamente, o recurso a um periódico abre a possibilidade para a reflexão a respeito das características mais gerais da sociedade imperial brasileira e suas elites.
Esperamos com esse dossiê contribuir para as discussões e reflexões a respeito do tema proposto, seus desdobramentos, limites e possibilidades.
Bom proveito.
Luiz Alberto Grijó.
GRIJÓ, Luiz Alberto. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 36, dez., 2012. Acessar publicação original [DR]