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Formas de governabilidade e dominação durante a Antiguidade e a Idade Média | Outras Fronteiras | 2019
A historiografia que emerge, especialmente na França, ainda que não somente no Hexágono, no período que medeia as duas grandes guerra do século passado se realizou uma crítica contundente a uma forma de escrita da história que denominava de événementielle e profundamente identificada com aquilo de François Simand qualificava de ídolo do político.
O sucesso, em particular, da proposta historiográfica formulada por Marc Bloch e Lucien Febvre e que foi continuada e aperfeiçoada por diversos e deferentes historiadores que de uma forma ou outra se vincularam o que ficou conhecida como “Escola dos Annales” lançou a história política num ostracismo senão absoluto, bastante profundo. Leia Mais
Política e governabilidade: diálogos com a obra de Maria de Fátima Silva Gouvêa / Tempo / 2009
Para Luigi e Lili
Política e governabilidade são conceitos que Maria de Fátima Silva Gouvêa desenvolveu com maestria em seus trabalhos. Desde seu mestrado e doutorado – ambos realizados em Londres, em finais da década de 1980, sob a orientação dos professores John Lynch e Leslie Bethell –, ela se dedicou a analisar as imbricadas teias da política e as condições de governabilidade de dois grandes impérios: o do Brasil, no século XIX, e o português, nos tempos modernos.
Em 1991, já de volta da Inglaterra, Fátima, como vários de nós, seus colegas e contemporâneos, fez concurso para o Departamento de História da UFF. Porém, ao contrário de muitos de nós, já doutora, começou a atuar na graduação, dedicando-se à história colonial da América, e na pós-graduação. Em ambas, “fez escola”, formando um sem número de graduandos, bolsistas, mestrandos e doutorandos. Este, certamente, é um dos seus legados, e de importância incalculável; outros não são menos importantes, como os inúmeros projetos que desenvolveu e que, por sua vez, resultaram em outros tantos trabalhos, artigos, capítulos de livros, obras individuais e coletivas.
Em 1995, tornou-se bolsista de Produtividade do CNPq. Em um de seus primeiros projetos de pesquisa, intitulado “Em Busca de Governo e Soberania: homens bons no Rio de Janeiro, 1780-1822”, dedicou-se às dinâmicas do poder local e às redes de poder que, tecidas por aqueles que participavam da governança da cidade, garantiam a administração e a soberania do Império.
Neste trabalho, já enunciava uma nova interpretação da história colonial do Brasil, rompendo com os dualismos metrópole / colônia, colonizador / colono, propondo interpretar a sociedade que se formava nos trópicos a partir de práticas e instituições herdadas do Antigo Regime português, baseadas no ideário da conquista, no sistema de mercês, no desempenho de cargos administrativos, na intensa negociação entre poder central e poderes locais. Em 2001, organizamos, com João Fragoso, o livro O Antigo Regime nos Trópicos, fruto de uma rica interlocução de um conjunto bastante amplo de historiadores. Para Fátima Gouvêa, a governabilidade do império português assentava-se, entre outras coisas, numa economia política de privilégios, conceito cunhado também por ela.
Desde então, seu interesse voltou-se, na tentativa de compreensão da política e da administração imperiais, para o “complexo atlântico português”, privilegiando, como ponto de partida, as relações entre Brasil e Angola. Insere-se nessa chave interpretativa o desenvolvimento da pesquisa “Conexões Imperiais: oficiais régios e redes governativas no Brasil e Angola, 1645-1777”. Neste trabalho Fátima foi hábil no estudo das estratégias e das práticas políticas portuguesas no ultramar. Esmiuçou as trajetórias de governadores em ambos os lados do Atlântico; discutiu os critérios para sua nomeação; destrinchou as redes clientelares construídas por eles e pelas elites locais em torno deles; analisou suas relações de poder e os conflitos jurisdicionais em que se envolveram.
Além da produção acadêmica, a formação de pesquisadores ocupou um lugar de destaque na vida de Fátima Gouvêa. Em todos os trabalhos que desenvolveu, a capacidade de agregar colegas e orientandos era sua marca registrada. Entre seus inúmeros projetos de pesquisa, a proposta que apresentou em 2003 à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, “A governação portuguesa no Brasil, séculos XVI-XIX”, calcava-se no trabalho de uma equipe de alunos e bolsistas cujo objetivo era empreender um estudo crítico dos mais de cem volumes da publicação dos Documentos Históricos. No Núcleo de Pesquisa em História Cultural (NUPEHC), laboratório da Área de História UFF que Fátima ajudou a fundar e do qual foi coordenadora, essa capacidade de agregação, aliada à produção, foi uma constante. No desenvolvimento de nossos sucessivos projetos – vários deles em torno do conceito de cultura política, da pesquisa e do ensino da História – sua presença sempre foi marcante.
Porém, sua índole desbravadora e, ao mesmo tempo, agregadora, a levaria a tecer e conectar redes mais extensas, constituídas por historiadores e pesquisadores em diferentes países e hemisférios. Entre 2000 e 2001, realizou seu primeiro pós-doutorado, parte em Lisboa, onde foi recebida por António Manuel Hespanha, e parte na Johns Hopkins University, sob a supervisão do professor A. J. R. Russell-Wood. Voltaria outras muitas vezes a Portugal, para encontros, seminários e pesquisas, como a que reuniu, nos últimos anos, um grupo de historiadores portugueses e brasileiros em torno das “Franjas dos Impérios Ibéricos”, sob a coordenação de Nuno Gonçalo Monteiro.
O ano de 2008 passou-o em Portugal, num segundo pós-doutorado, como investigadora visitante do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, em parceria, mais uma vez, com Nuno Monteiro. Integrava igualmente o convênio CAPES-GRICES, com o projeto “A Monarquia e seus Idiomas: Corte, governos ultramarinos, negociantes, régulos e escravos no mundo português (sécs. XVI-XIX)”, sob a coordenação de João Fragoso. Foi ainda em 2008 que Fátima publicou sua tese de doutorado, O Império das Províncias. Rio de Janeiro, 1822-1889, reafirmando sua persistência no tema da governação, das redes, das conexões e negociação entre poder local e poder central.
Ao buscar em seus diversos trabalhos compreender a política e a governabilidade dos Impérios – do Brasil e de Portugal –, ao tecer redes e conexões entre pesquisadores já consolidados, jovens aprendizes e futuros historiadores, Fátima Gouvêa deu sentido não só à sua própria trajetória, mas foi, sobretudo, um exemplo para todos nós, seus amigos e companheiros. Nós a perdemos ainda muito jovem, em janeiro de 2009. Porém, ela deixou muitas sementes e redes já consolidadas, muitas saudades e um sentimento de privilégio por a termos conhecido e trabalhado com ela.
Este dossiê compõe-se de artigos que dialogam com as várias facetas do trabalho de Maria de Fátima Silva Gouvêa. Cada um dos textos dessa homenagem é fruto da interlocução de seus autores com a obra de Fátima, e da grande amizade que nos unia. Em “As Câmaras municipais e o poder local: Vila Rica – um estudo de caso na produção acadêmica de Maria de Fátima Silva Gouvêa”, Júnia Ferreira Furtado percorre seus trabalhos sobre o papel das câmaras municipais, e analisa a contribuição inovadora da autora sobre o tema. Com “Entre trajetórias e impérios: apontamentos de cultura política e historiografia”, Iara Lis Schiavinatto faz uma leitura do debate historiográfico sobre o império ultramarino português, no qual Fátima esteve sempre presente, e de sua contribuição para a análise da cultura política que marcou o império brasileiro e, mais especificamente, o Segundo Reinado. “Monarquia Pluricontinental e Repúblicas: algumas reflexões sobre a América Lusa nos séculos XVI–XVIII”, assinado por João Fragoso e Maria de Fátima Silva Gouvêa, é uma reunião de textos que ambos escreveram juntos, e nos quais discutem a ideia de autogoverno, o conceito de redes governativas e a noção de monarquia pluricontinental. Em “A circulação das elites no império dos Bragança (1640-1808): algumas notas”, Nuno Gonçalo Monteiro debruça-se sobre as conexões e os equilíbrios imperiais e atlânticos da monarquia bragantina no século XVIII, analisando a fratura identitária entre reinóis e naturais da América portuguesa no início do século XIX. Em “Nobreza Indígena da Nova Espanha. Alianças e Conquistas”, Ronald Raminelli discute as inflexões nas alianças entre castelhanos e chefes indígenas, a partir dos valores aristocráticos vigentes na monarquia hispânica e difundidos pelos conquistadores, e os novos interesses da Coroa. Ronaldo Vainfas, em “Guerra declarada e paz fingida na Restauração portuguesa”, privilegia a discussão do Papel Forte escrito por Antônio Vieira, ao interpretar o conflito diplomático entre Portugal e Países Baixos, no contexto da Restauração e das guerras holandesas em Pernambuco no século XVII. Marília Nogueira dos Santos, em “O império na ponta da pena: cartas e regimentos dos governadores-gerais do Brasil”, reflete sobre os regimentos e a correspondência dos governadores-gerais da América portuguesa, demonstrando como ambos, conjugados, visavam o bom governo das conquistas. Em “A cobrança do ouro do rei nas Minas Gerais: o fim da capitação – 1741-1750”, Joaquim Romero Magalhães analisa a intensa negociação entre oficiais régios e as câmaras das principais vilas da região mineradora, em torno da imposição e do funcionamento desta nova forma de tributação. Marcus J. M. de Carvalho, em “A repressão do tráfico atlântico de escravos e a disputa partidária nas províncias: os ataques aos desembarques em Pernambuco durante o governo praieiro, 1845-1848”, discute como o envio da polícia para apreender a carga dos navios negreiros no período analisado serviu como instrumento político e econômico na luta contra o partido conservador.
Todos nós que integramos este dossiê convivemos com Fátima Gouvêa e temos, de uma forma ou de outra, nossas trajetórias interligadas. Nossa intenção, com mais esta homenagem que fazemos à sua memória, é compartilharmos com os leitores da revista Tempo algumas reflexões sobre temas tão caros ao seu percurso intelectual e à paixão com que nossa amiga e companheira dedicava ao seu trabalho e à sua vida.
Maria Fernanda Bicalho – Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. E-mail: mfbicalho@uol.com.br
BICALHO, Maria Fernanda. Apresentação. Tempo. Niterói, v.14, n.27, 2009. Acessar publicação original [DR]