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A Cultura Escrita em Perspectiva / Revista Maracanan / 2017
Cultura escrita – conhecimento e poder: duas faces da mesma moeda?
Mesmo que não sejamos exclusivamente uma sociedade baseada na cultura escrita e embora tenha perdurado no Brasil uma forte tradição oral, resultante do persistente alto índice de analfabetismo – estimado em 82,3% da população no primeiro censo oficial realizado em 1872 e ainda parte do cenário nacional no ano 2000, registrando a marca de 16,7% [1] –, já foi extensivamente demonstrado pelos estudos historiográficos o papel crucial exercido pela escrita, seja ela manuscrita ou impressa, no processo de construção do Brasil. Ademais, sua produção, assim como o seu posterior arquivamento possibilitaram aos historiadores do século XX expandir suas indagações acerca de diversos objetos, acompanhando de perto a produção historiográfica mundial, principalmente a partir dos anos 1970, quando se iniciou a expansão dos programas de pós-graduação no país.
Assim, se por um lado os manuscritos, atualmente tomados como fontes históricas, têm sido crescentemente explorados e problematizados pelos historiadores dedicados ao período anterior à permissão oficial para a instalação de tipografias no Brasil (entre 1808 e 1820), também os impressos produzidos em território nacional, a partir do Oitocentos, têm sido alvo crescente de investigações. Ademais, foi ao longo do século XIX que a palavra (então impressa), no Brasil, conseguiu alçar uma mentalidade abstrata [2] que lhe conferiria legitimidade, permitindo-lhe ocupar um lugar estratégico nesta sociedade. Além do mais, a produção de conhecimento, enquanto base de uma cultura fortemente influenciada por uma mentalidade iluminista [3] − perpassada pela cultura escrita −, passou a ocupar um papel central também no Brasil a partir do XIX, com o efervescente processo de criação de instituições como museus, faculdades, bibliotecas e etc.
Tanto através de instituições forjadas pelo Estado, como por meio de iniciativas particulares de cunho comercial – a exemplo das casas tipográficas e livrarias – foi se construindo um ambiente crescentemente familiar a essa cultura escrita, conhecida pela população diretamente ou indiretamente, “por ler, ouvir ler ou ouvir falar”. Pois, como destaca Marialva Barbosa, mesmo aqueles indivíduos analfabetos faziam parte do mesmo universo comunicacional dos letrados, através de um imbricamento entre o oral e o escrito.
De forma geral, como asseveram autores dedicados à história do livro e da leitura, como Robert Darnton e Roger Chartier, foi “revolucionário” o impacto da invenção de Gutenberg para a cultura escrita nas sociedades ocidentais. A impressão, ao possibilitar a reprodução, cada vez mais eficiente e barata, de vários exemplares idênticos ao mesmo tempo, possibilitou uma aceleração do processo de circulação de ideias nacional e internacionalmente. Processo que se intensificou com a agilização dos transportes terrestres e marítimos no século XIX. As novas tecnologias tipográficas e de transportes possibilitaram, portanto, uma intensificação das trocas de informações e conhecimentos entre intelectuais e cientistas de diferentes países do hemisfério.
Ao mesmo tempo, a cultura escrita adquiria, paulatinamente, mais importância nas dinâmicas societárias de poder, associadas ao desenvolvimento científico, cultural, político e econômico. Cultura escrita, conhecimento e poder passaram a constituir “faces de uma mesma moeda”, faces em constante interação e sobreposição com diferentes resultantes de acordo com os variados atores e contextos em questão.
Tendo em vista as questões sumariamente apresentadas, vamos tratar dos artigos que compõem a Edição nº 16 da Revista Maracanan, cujo tema proposto para o dossiê foi Cultura escrita em perspectiva. Pretendíamos com esta chamada reunir trabalhos inéditos, resultantes de pesquisas que versassem sobre a cultura escrita em suas mais diversificadas manifestações, focando em manuscritos ou impressos, e com atenção para as correlações entre a cultura escrita e a política, a cultura, a economia e a ciência, sob diferentes enfoques teóricos e metodológicos.
Na atual edição conseguimos reunir, após rodadas de avaliações dos textos submetidos à pareceristas ad hoc, 14 artigos, sendo: 7 pertencentes ao Dossiê, 3 à seção de artigos livres, 2 notas de pesquisa e 2 resenhas.
Abrindo o dossiê, trazemos o artigo do historiador Ronaldo Vainfas que apresenta um balanço historiográfico de uma produção bibliográfica nacional sobre a colonização do Brasil, em especial sobre o período filipino (1580-1640), abarcando obras clássicas de autores como Francisco Adolfo de Varnhagen, Capistrano de Abreu, Pedro Calmon, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior (entre outros), até pesquisas universitárias mais recentes. Intentando “reforçar a importância do estudo da colonização no período filipino como problema de investigação relevante e não apenas como acidente de percurso cronológico”, argumenta se tratar de um período histórico crucial, devido à relevante inflexão produzida pela governação filipina na formação colonial do Brasil com a introdução do “exclusivo comercial”.
O artigo oferece panorama completo e atualizado para todos aqueles que intentam enveredar por essa temática, além de apresentar as premissas defendidas por um historiador bastante experiente e premiado, autor de livros e artigos sobre a história ibérica e ibero-americana na época moderna. O segundo artigo, de autoria de Maria Cristina Bohn Martins, intitulado Cultura escrita e projetos coloniais: “A Descrição da Patagônia” de Thomas Falkner, apresenta uma análise sobre um manuscrito produzido pelo jesuíta Thomas Falkner, acerca de um período de quase 40 anos em que morou na região do Rio da Prata, em especial nos territórios da Pampa-Patagônia da atual República Argentina. O livro analisado, publicado em 1774, a partir deste relato, apresentava um “quadro de informações inéditas ao público europeu, especialmente inglês, sobre territórios que mesmo os espanhóis pouco conheciam”. Martins destaca a singularidade deste texto em comparação aos produzidos contemporaneamente por religiosos jesuítas (interessados no trabalho de evangelização dos nativos). Falkner veio para a América comissionado pela Royal Society de Londres, como os viajantes naturalistas típicos de sua época e seu interesse era decodificar o mundo a partir da ciência, não rememorar o trabalho missionário dele e de seus colegas. A contribuição da autora vai, no entanto, além de uma análise dos aspectos que perfazem a obra, já que ele atenta para questões relacionadas à sua edição, publicação e recepção, se constituindo como um bom exercício de aplicação de uma metodologia bem embasada nos debates concernentes ao campo da história do livro e da leitura.
O artigo de Felipe Cittolin Abal, O Relato como vingança: as memórias de Stanislaw Szmajzner, consiste numa análise do livro Inferno em Sobidor: a tragédia de um adolescente judeu de Stanislaw Szmajzner, escrito por um ex-prisioneiro do campo de extermínio de Sobibor na Polônia que, posteriormente, passou a residir no Brasil onde publicou suas memórias. A escrita e a publicação desta obra autobiográfica, escrita por um sobrevivente sobre os horrores dos campos de concentração nazista, evidenciam, para Abal, o desejo do autor de imortalizar-se como um herói e vítima dos horrores nazistas. A publicação de suas memórias atenderia ao seu sentimento de vingança frente às humilhações e agressões sofridas, ao passo que pretendia servir como uma lição, um alerta para que os horrores não mais se repetissem. Ao que conclui que Szmajzner teria feito um bom uso dos abusos da memória, ao fazer de seu livro uma forma de buscar justiça ao genocídio cometido contra os judeus. Apesar de se tratar de um tema denso, o autor busca aporte em uma extensa discussão bibliográfica acerca da escrita autobiográfica para analisar a obra em questão, problematizando-a.
Saindo das fronteiras nacionais, trazemos a pesquisa de Madalina Elena Florescu. As autobiografias também são o seu tema no artigo “Autobiografias angolanas”: um gênero em questão. A autora desenvolve um interessante esforço de debate teórico e metodológico com foco nas potencialidades e problemáticas associadas à análise de memórias autobiográficas angolanas. O ponto fulcral de sua proposta consiste na utilização da metáfora do “palimpsesto” para pensar a textualidade como uma forma de memória. Tal metáfora, segundo Florecu, busca evitar os “guetos etnolinguísticos ou etnográficos” dos discursos nativista ou pós-colonial. Além de apresentar relevante contribuição concernente ao debate sobre a produção e análise de memórias históricas, memórias autobiográficas e biografias, a autora mergulha em um estudo de caso através da análise da obra intitulada Minhas origens e aprendizagem: uma autobiografia, do cardeal angolano Alexandre do Nascimento, publicada pela imprensa do governo de Angola em 2006.
Alexandre Guilherme da Cruz Alves Junior, em Memórias de um pornógrafo: a revista Hustler, liberdade de expressão e a política nos Estados Unidos (1970 – 1980), analisa as memórias do polêmico Larry Flint, fundador e editor-chefe da Hustler magazine, sobre o período de lançamento e consolidação da revista no mercado pornográfico norte-americano nos anos 1970-1980. Enfatiza, por outro lado, a sua atuação na revista como um meio de atuação política e cultural estadunidense, haja vista que Flint alcançou, nos anos 1990, o status de militante pela defesa da liberdade de expressão e imprensa nos Estados Unidos. Suas conturbadas memórias evidenciam como mesclou a luta pela liberdade de expressão e de imprensa com business, passando por diversas polêmicas, processos judiciais e até mesmo por um atentado à bala que o deixou numa cadeira de rodas.
Fernando Cezar Ripe e Giana Lange Do Amaral analisam um conjunto de obras publicadas em Portugal (de fins do XVII ao XVIII) que tratavam dos cuidados relativos à infância, no artigo intitulado O dispositivo da cultura escrita na constituição do sujeito infantil moderno: evidências em impressos portugueses do século XVIII. A partir do arcabouço teórico construído por Michel Foucault, defendem que “foi somente com a modernidade que a população se tornou objeto tanto de interesse de diferentes campos do saber como de gerenciamento do Estado”. Tal interesse se traduziria, pois, pela utilização de impressos como dispositivos estratégicos de busca de homogeneização dos comportamentos da sociedade portuguesa no que concernia às questões morais, religiosas e políticas. Tais dispositivos são legitimados, segundos os autores, por uma extensa lista de publicações que colocavam as crianças como alvos de cuidados, proteção e educação a serem implementados por uma sociedade paulatinamente pautada por códigos disciplinares.
Fechando o dossiê, trazemos o artigo de Antônio Sérgio Pontes Aguiar e Ruben Maciel Franklin, intitulado Romantismo nos trópicos: motivos literários no Brasil Oitocentista. O texto apresenta o resultado de reflexões acerca da emergência do romantismo no Brasil, a partir dos debates promovidos por romancistas e críticos ao longo do século XIX. Analisam, assim, as principais obras lançadas no Oitocentos, visando compreender o romantismo como um movimento literário e artístico que trouxe à tona uma série de questões concernentes à afirmação de uma identidade nacional, num contexto de afirmação da Nação recém-independente.
Iniciamos a seção de artigos livres com o texto de Carlos Augusto Bastos intitulado Demarcações e circulações nas fronteiras da Amazônia ibérica (c.1780-c.1790). Com ele, retornamos ao tema das disputas entre Portugal e Espanha, agora no tocante à demarcação das fronteiras ultramarinas, no século XVIII. Na América do Sul, conforme destaca Bastos, a Amazônia figurava como uma das áreas de conflitos fronteiriços entre as duas coroas ibéricas e as demarcações de limites realizadas na região pelas comissões demarcadoras, entre 1780- 1790, procuraram definir as soberanias territoriais hispano-portuguesas, assim como viabilizaram diferentes formas de circulação na região de fronteira. Neste âmbito, são exploradas pelo autor, as relações permeadas por tensões e auxílios, aproximações e desconfianças, alianças e competições entre as comissões demarcadoras de Portugal e Espanha que, ao mesmo tempo em que cumpriam seus trabalhos de demarcação (com vistas ao controle de áreas confinantes), alimentavam interações e circulações nessa região do continente.
Henrique Pinheiro Costa Gaio, em Entre passado e futuro: pessimismo e ruína em Retrato do Brasil de Paulo Prado, volta suas atenções para a obra de Paulo Prado, Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira (1928), em especial ao seu Post-Scriptum. O autor propõe um novo olhar sobre esse clássico, pois considera equivocada a leitura corrente que enfatiza somente o aspecto pessimista de sua interpretação do Brasil. Assim, considerando o seu Post-Scriptum argumenta que neste texto Paulo Prado muda a sua postura frente a um passado pouco edificante apresentado em Retrato do Brasil, revelando uma “disposição combativa que visa romper com o peso do passado e com o que acredita ser o equivocado desenrolar da história nacional”.
O trabalho de Gustavo Granado, A Ascenção da Extrema-direta na França, é o terceiro e último texto da seção de artigos livres. Nele, o autor analisa o fortalecimento da Frente Nacional (partido de extrema-direita francês), principalmente após a posse de François Hollande. Partindo de sua fundação em 1972, quando surgiu como um partido político “cuja ideologia era lutar contra a imigração, internalização da economia e a valorização constante do nacionalismo francês”, vai demonstrando como que, mesmo de forma tímida, o partido foi ganhando representatividade no cenário nacional a ponto de se tornar um partido político temido pelos partidos tradicionais a partir de 2014.
Entre as notas de pesquisa temos os artigos de Raphael Silva Fagundes e Mariana Albuquerque Gomes. Fagundes, em Uma nação fundada com lágrimas: uma análise da retórica nas cerimônias fúnebres do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1839-1848), analisa a estratégia retórica utilizada por membros do IHGB “para a promoção de um projeto político que visava à construção de uma identidade nacional una e indivisa”. Centrando-se na Revista do IHGB, distribuída em diversas províncias do Império do Brasil, analisa os discursos fúnebres, argumentando que eles se constituíam como um investimento numa retórica ligada às emoções. Assim, pretendiam construir um discurso unívoco, face à possibilidade de dispersão, enfatizando uma retórica da nacionalidade que procurava forjar a existência da nação com base na figura de “brasileiros” exemplares, ali alçados a representantes da nação.
Mariana Gomes, por outro lado, propõe compreender as experiências estéticas simbolistas que pensaram o corpo no final do século XIX, no Brasil. Em Pierrot, entre risos e zombarias: notas sobre a tendência coloquial-irônica das experiências estéticas simbolistas, a autora apresenta resultados parciais de uma análise centrada no hebdomadário literário e ilustrado Pierrot, publicado no Rio de Janeiro a partir de 1890. Pierrot, segundo a autora, “apresentava uma proposta de crítica irônica e irreverente, valendo-se dos temas do cotidiano, da oralidade e dos signos da cultura popular como motes de zombaria e sátira” o que fazia com que suas matérias reverberassem em outras publicações como A Tribuna, Cidade do Rio e Gazeta de Notícias. Destaca, assim, a importância da independência desta publicação que não contava com vínculos institucionais, anúncios ou formas de financiamento, para a atuação autônoma tão fundamental para os escritores simbolistas do período.
Encerram a edição as resenhas dos livros de Robert Darnton, Censores em ação: como os estados influenciaram a literatura (2016), e de Emília Salvado Borges, A Guerra da Restauração no Baixo-Alentejo (2015), respectivamente de autoria de Fabiano Cataldo de Azevedo e Luiz Felipe Vieira Ferrão.
Não poderíamos dar por encerrada esta apresentação sem antes nos manifestar sobre a grave crise pela qual passa a Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A Universidade é, sem dúvida, o corolário de uma sociedade pautada pela cultura escrita. Ela é a base de toda a produção e divulgação acadêmica. É através da escrita que trazemos à tona as pesquisas que desenvolvemos na Universidade, tornando-as públicas e por isso, passíveis de serem incorporadas pela sociedade. É também a cultura escrita a base do ensino e da extensão de toda Universidade. Portanto, tratar dessa cultura escrita em um momento de completo descaso com uma Universidade como a UERJ nos faz refletir sobre a importância, ou melhor, sobre a falta de importância conferida pela sociedade ao ensino e à pesquisa no nosso país, no atual contexto político e econômico. Esta é, com certeza, uma oportunidade de refletirmos sobre a importância desse conhecimento construído nas fronteiras universitárias e sobre a relação que o poder estabelece com esse conhecimento.
As condições em que essa edição vem ao ar são deploráveis. Salários e bolsas de professores e estudantes envolvidos atrasados, além de uma estrutura física completamente sucateada pela falta de interesse do poder público pela manutenção deste espaço de excelência em ensino, pesquisa e extensão.
A capa, com detalhes pretos, é a expressão do sentimento de luto compartilhado pela comunidade acadêmica neste triste momento. A publicação desta revista um ato de resistência. Mas até quando isso será possível?
Notas
- É importante destacar que somente no Censo de 1960 foi registrado um índice de analfabetismo inferior a 50%, perfazendo 46,7% da sociedade brasileira.
- BARBOSA, Marialva. A história cultural da imprensa: Brasil, 1800-1900. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010.
- PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. A imprensa como uma empresa educativa do século XIX. Caderno de Pesquisa, São Paulo, n.104, p.144-161, jul. 1998. Para uma visão mais geral sobre o conhecimento ver: BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento: de Gutenberg a Diderot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
Monique de Siqueira Gonçalves – Doutora em História das Ciências pela Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz) e atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em História da UERJ, como bolsista Nota 10 FAPERJ.
Tânia Bessone – Doutora em História pela USP, professora Associada da UERJ / IFCH / Departamento de História, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História, Procientista, Pesquisadora Bolsista do CNPq, sócia Honorária do IHGB.
GONÇALVES, Monique de Siqueira; BESSONE, Tânia. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.16, 2017. Acessar publicação original [DR]
História das Ciências: debates e perspectivas / Revista Maracanan / 2015
Entre a história das ciências e a história política: desatando o nó górdio
“Qualquer que seja a etiqueta, a questão é sempre a de reatar o nó górdio atravessando, tantas vezes quantas forem necessárias, o corte que separa os conhecimentos exatos e o exercício de poder, digamos a natureza e a cultura. Nós mesmos somos híbridos, instalados precariamente no interior das instituições científicas, meio engenheiros, meio filósofos, um terço instruídos sem que o desejássemos; optamos por descrever as tramas onde quer que elas nos levem. Nosso meio de transporte é a noção de tradução ou de rede. Mais flexível que a noção de sistema, mais histórica que a de estrutura, mais empírica que a de complexidade, a rede é o fio de Ariadne destas histórias confusas.”
Bruno Latour1
O Dossiê História das Ciências: debates e perspectivas foi idealizado com o objetivo de estreitar o diálogo entre os pesquisadores dedicados à história das ciências e aqueles mais familiarizados com uma abordagem própria à história política. As problemáticas teóricas e metodológicas que envolvem a escrita da História das Ciências já foram o cerne de múltiplos e acalorados debates envolvendo cientistas, filósofos, sociólogos, cientistas políticos, antropólogos e historiadores das ciências. E são esses debates o ponto de partida deste número, que busca evidenciar a diversidade de aportes analíticos sob os quais são construídas as interpretações no campo da história das ciências.
Desde fins dos anos 1970 foram gestadas, no meio acadêmico brasileiro, diferenciadas perspectivas acerca da constituição das práticas científicas no Brasil. Nessa ocasião, uma parcela significativa de estudiosos da institucionalização das ciências no Brasil já tomava o discurso científico como uma fonte de autoridade e poder, capaz de organizar as relações sociais e as formas de pensar. Nas décadas seguintes, o mito do cientista abnegado, em busca da verdade e indiferente às convulsões do mundo, foi definitivamente sepultado. E, pela mesma razão, a percepção da Ciência como uma atividade isolada, autônoma e independente da sociedade cedeu lugar a interpretações que enfatizam sua dimensão como fator de produção, instrumento do poder e legitimação social.
No atual século, assistimos ao desdobramento desses trabalhos pioneiros, com a multiplicação de dissertações e teses cujo objeto de estudo tem, como referência, variadas práticas científicas. Assim, sob perspectivas teóricas e metodológicas diferenciadas, tais estudos têm se multiplicado, evidenciando a potencialidade de uma temática à qual se dedicam pesquisadores atrelados a programas de pós-graduação com concentração em história política, social e cultural. Para a “nova” história das ciências, o trabalho de produção, controle e circulação dos diferentes saberes científicos é eminentemente social. As novas abordagens asseveram que aquilo que se convencionou denominar de Ciência corresponde a um conjunto diferenciado de práticas culturais voltadas à interpretação, explicação e ao controle do mundo natural, cada qual com suas características singulares, experimentando distintas formas de evolução e mudança, sempre em interação com outras esferas sociais.
Os organizadores deste Dossiê dedicado à história das ciências reuniram, assim, um conjunto de trabalhos que versam sobre esse tema, sob os mais variados matizes. Longe de esgotar as possibilidades de enfoques teóricos e metodológicos, objetivamos apresentar o campo, apontando algumas tensões existentes entre as diferentes correntes interpretativas, bem como enfatizar a potencialidade dessa temática no âmbito historiográfico.
No artigo que inaugura o Dossiê, Maria Margaret Lopes articula duas fronteiras da historiografia das ciências: os oceanos como espaços de produção de conhecimento e as disciplinas como estruturas dinâmicas que controlam poder e recursos materiais e simbólicos em departamentos e laboratórios. Como o estudo dos oceanos impõe uma abordagem interdisciplinar que perdura por décadas, temos aqui uma oportunidade para avaliar a complexidade das estruturas envolvidas nas investigações e os aspectos micropolíticos do cotidiano e, assim, identificar e situar padrões de tomadas de decisões para se examinarem mudanças nos programas de pesquisa em períodos mais longos. Como observa a autora, “as disciplinas não são categorias estáveis, mas arranjos, acordos temporários” o que deve ensejar uma análise das fronteiras inter e intradisciplinares no processo de produção e validação do conhecimento científico.
Em seguida, Flavio Coelho Edler nos convida a um sobrevoo panorâmico por alguns tópicos que se contituíram como balizas no desenvolvimento da disciplina História das Ciências nos últimos 40 anos. Ao discutir as mudanças historiográficas que implicaram no abandono da narrativa sintética da história das ciências por outra, voltada a esmiuçar as camadas mais finas, isto é, a micro-história das práticas científicas, o artigo avalia como as diferentes abordagens repercutem sobre distintas audiências. Aqui delineia-se um novo desafio: continuar a ver a história das ciências como um campo unificado de pesquisas capaz de envolver um público mais amplo.
A contribuição de André Luís Mattedi Dias e Tais Oliveira da Silva para esta coletânea enfoca a emergência contemporânea da temática da religião e espiritualidade no âmbito acadêmico da saúde mental, em especial, no campo da psiquiatria e da psicologia. Ao examiar a trajetória pessoal e acadêmica de três psiquiatras brasileiros, onde se conectam orientações religiosas e científicas diversas, os autores discutem a complexidade das relações entre ciência e religião, enquanto reavaliam as teorias sociológicas da secularização. Como ficará evidente para o leitor, no presente – tal como no passado –, as fronteiras entre ambas as esferas culturais não podem ser claramente delimitadas, nem suas relações expressas esquematicamente, em termos de conflito ou harmonia, como pretendeu a tradição positivista. Já o artigo de Eucléia Gonçalves Santos, que discute a definição de sertão na obra de Afrânio Peixoto, ajuda a embaralhar outras fronteiras: aquelas que apartam os mundos da ciência, da literatura e da política. Ao abordar a atuação intelectual do médico, higienista, educador e escritor baiano, a partir do contextualismo linguístico de Skinner, a autora desvenda como os sentidos que ele atribui ao sertão e sua relação com o clima e a raça mediavam os conflitos políticos e científicos com seus pares no processo de construção do campo científico, na Primeira República.
Também na Primeira República, mais precisamente no período de construção do projeto republicano, compreendido entre 1890 e 1907, se situa o estudo de Erika Marques de Carvalho sobre os projetos emanados pelo Clube de Engenharia, visando à integração territorial brasileira. Aqui, vê-se claramente a dimensão da ciência como força produtiva, alinhada ao discurso do progresso nacional. O modo como essa elite de engenheiros buscou se inscrever na formação de um Estado civilizado é o tema desse artigo. A agenda da integração territorial, através dos projetos de viação, estradas de ferro e de linhas telegráficas, afinada com o ideal de progresso, posicionou o Clube e seus engenheiros nas arenas de decisão técnica dos governos republicanos.
O caráter social e a utilização comercial da prática científica no processo de instituição social da hegemonia científico-farmacêutica em São Paulo, nos anos 1930, são o tema do trabalho de Gabriel Kenzo Rodrigues. Aqui se discute como o discurso legitimador inerente ao ideário científico foi apropriado por diversos grupos sociais, servindo para sancionar hierarquias sociais. A pura racionalidade da ciência, legitimando o discurso competente da medicina, é avaliada como socialmente construída, servindo para fundamentar a assimetria entre o modelo – supostamente universal e atemporal – de cura dos especialistas e os saberes populares. O discurso médico, agora em torno da história da eugenia, é o assunto abordado no ensaio de Leonardo Dallacqua de Carvalho e Gerson Pietta. Os autores levantam questões e apresentam novas perspectivas emergentes na historiografia sobre a eugenia. Presente no discurso de incontáveis personagens de variadas áreas do conhecimento, aglutinando teorias provenientes de fontes diversas, como a biotipologia humana, a criminologia, a psiquiatria, a endocrinologia e a medicina legal, os estudos históricos sobre os movimentos eugênicos constituem, para o historiador – como demonstram os autores – “um canteiro de obras”.
Leonardo Mendes e Renata Ferreira Vieira revisitam o polêmico “caso Abel Parente”, que agitou a sociedade brasileira entre as décadas de 1890 e 1900, e que resultou na realização de investigações policiais e processos judiciais contra o médico que anunciara, nos jornais do Rio de Janeiro, o seu método contraceptivo, interpretado pelos setores conservadores da classe médica e da sociedade carioca como uma forma de aborto. A análise apresentada coloca em foco os debates realizados na imprensa leiga entre médicos e intelectuais, problematizando a relação entre conhecimento científico e concepções morais acerca da sexualidade, da gravidez e do corpo feminino.
Fechando a seção de artigos do Dossiê, Viviane Machado Caminha São Bento e Nadja Paraense dos Santos analisam a atividade científica dos jesuítas na América portuguesa através das informações encontradas na obra Colecção de Varias Receitas, que reuniu receitas de medicamentos fabricados nas boticas jesuíticas espalhadas pelo mundo ultramarino. A partir da análise desse impresso, as autoras procuram demonstrar a inserção da Ordem Inaciana no processo de desbravamento e conhecimento do mundo natural, próprios da ciência da Época Moderna, contribuindo para desmistificar a imagem que associa a ação dos jesuítas pela negação de sua relação com questões de foro científico.
O depoimento escrito por Maria Amélia Dantes, a convite da Revista Maracanan, sobre o processo de constituição do campo da História das Ciências no Brasil, é perpassado pela sua atuação pioneira nessa área, em especial no que tange aos estudos sobre o processo de institucionalização das ciências no Brasil Oitocentista. Ao alinhavar a sua trajetória profissional nessa temática, preocupa-se em relacionar a sua contribuição com a de outros profissionais contemporâneos, empenhados em compreender a singularidade das práticas científicas nacionais mediante os debates sobre a ciência periférica em curso no último quartel do século XX. A leitura do seu depoimento proporciona ao leitor compreender os desafios enfrentados pelos pesquisadores brasileiros, em especial desde os anos 1980, com atenção às temáticas abordadas e às clivagens historiográficas analíticas vivenciadas por uma área do conhecimento ainda em expansão.
Na conclusão do seu depoimento, Maria Amélia Dantes faz uma importante menção às preocupações atuais dos estudos produzidos na esfera da História das Ciências, afinados com os parâmetros de uma História Global, com destaque para a utilização dos conceitos de circulação e produção de conhecimentos, que são o tema dos trabalhos e do artigo de Kapil Raj, traduzido por Juliana Freire. Raj apresenta um balanço das principais problemáticas interpretativas enfrentadas pelos pesquisadores dedicados ao estudo do conhecimento científico produzido pelos países periféricos, desde a publicação do clássico trabalho de George Basalla, que reduzia os países não europeus a meros receptores / reprodutores de uma concepção científica disseminada pelos centros de ciência europeus. Depois de apresentar as sucessivas clivagens e aporias produzidas pela historiografia a essa concepção, defende a realização de análises com o foco na própria circulação como um “local de formação do conhecimento”, argumentando que a perspectiva circulatória permite ver a ciência como sendo coproduzida pelo encontro e pela interação entre comunidades heterogêneas de especialistas de diversas origens – o que possibilita a construção de uma história global fundamentada.
O artigo de Raj encerra o Dossiê ao mesmo tempo que representa um apelo à realização de mais pesquisas sob a perspectiva da circularidade, haja vista que ainda constitui uma novidade no campo da história das ciências, cujas produções, paulatinamente, têm conseguido desfazer o nó górdio que separava a ciência da política, ou que, por vezes subjugava a primeira à segunda. Fica o convite.
Os dois últimos artigos, publicados na seção de textos avulsos, dão o tom do “estado de arte” de outras duas temáticas relacionadas aos estudos em história política e evidenciam a diversidade dos objetos visitados pelos pesquisadores dedicados a essa linha de pesquisa no âmbito da UERJ. André Bueno analisa as teorias tradicionais chinesas de preservação material, construídas com base em uma cultura da cópia, que se voltam para a preservação do método pelo qual o objeto foi fabricado em detrimento da manutenção do objeto material em si. Assim, ao mesmo tempo que as cópias se constituiriam como “miragens” do original, elas seriam eficazes na manutenção das tradições culturais chinesas ao conservarem o conhecimento tradicional sobre as antigas formas de produção, mantendo padrões, métodos e técnicas muito similares (senão idênticos) aos do passado.
A história da emigração de Santa Comba – município pertencente à província de A Coruña, na Galiza – para o Rio de Janeiro, durante os séculos XIX e XX, é reconstituída por Erica Sarmiento, através do arquivo privado (composto por cartas, fotos, anotações notariais e agenda pessoal) da família Mouro, em especial do seu patriarca, Francisco Mouro. A autora realiza uma análise desse fenômeno migratório, a partir do estudo de uma família, com base no argumento de que as fontes pessoais permitem situar o emigrante em seu espaço de atuação, relação e influência, nos aproximando de suas estratégias, pautas e seus objetivos familiares, oferecendo a possibilidade de seguir de perto os seus passos. Seu trabalho nos permite compreender melhor tanto o processo de imigração como o de permanência de emigrantes em terras estrangeiras.
Assim, encerramos a edição de número 13 da Revista Maracanan, com a expectativa de que possamos contribuir com a consolidação da publicação dos docentes do Programa de Pós-Graduação de História (PPGH-UERJ) como um espaço de debates e apresentação de renovadas perspectivas historiográficas e incentivando o diálogo entre as diferentes áreas de pesquisa, explorando paulatinamente a natureza híbrida dos objetos históricos.
Nota
1. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. 1994. p. 9.
Monique de Siqueira Gonçalves – Doutora em História das Ciências pela Casa de Oswaldo Cruz, mestre em História Política pela UERJ, graduada em História pela UERJ. Desde 2011, faz pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em História da UERJ (como bolsista FAPERJ), atuando como docente colaboradora desse programa e do Departamento de História da UERJ e, desde 2013, atua como membro do corpo editorial da Revista Maracanan.
Flavio Coelho Edler – Doutor em Saúde Coletiva pela UERJ, mestre em História Social pela USP e graduado em História pela UFRJ. É professor do PPGHCS – COC / Fiocruz. Dedica-se à História das Ciências, com ênfase na história da medicina no Brasil. Entre outras publicações, é autor do livro Medicina no Brasil Imperial: clima, parasitas e patologia tropical (Ed. Fiocruz, 2011) e Ensino e profissão médica na corte de Pedro II (Ed. UFABC, 2014).
Alex Gonçalves Varela – Historiador, graduado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, mestre e doutor em História das Ciências pela Universidade Estadual de Campinas. Dedica-se aos estudos no campo da história das ciências, com ênfase na história das geociências e na história das ciências oceanográficas. É autor de Atividades Científicas na “Bela e Bárbara” Capitania de São Paulo (1796-1823). São Paulo: Annablume, 2009.
GONÇALVES, Monique de Siqueira; EDLER, Flavio Coelho; VARELA, Alex Gonçalves. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.13, 2015. Acessar publicação original [DR]