Perú y la Guerra Civil Española – CARRASCO (H-Unesp)

CARRASCO, Olga Muñoz. (Org.). Perú y la Guerra Civil Española. La voz de los intelectuales. Madrid: Calambur Editorial, 2013, 559 p. Resenha de: GONÇALVES, Marcos. História [Unesp] v.33 no.2 Franca July/Dec. 2014.

A coleção HGCE – Hispanoamérica y la Guerra Civil Española – consiste em uma série de estudos sob a direção geral do poeta e crítico literário britânico Niall Bins. Trata-se de uma recompilação de textos de época introduzidos por adensados comentários críticos sobre o impacto da Guerra Civil da Espanha entre os intelectuais da América hispânica. O Volume 3, ora apresentado, foi organizado por Olga Muñoz Carrasco, poetisa, professora e investigadora da Saint Louis University (Madrid Campus) e colaboradora honorária do Departamento de Literatura Hispanoamericana da Universidad Complutense de Madrid. Encontram-se publicados entre os anos de 2012 e 2013 quatro volumes da coleção: Equador (volume 1), Argentina (volume 2), Peru (volume 3) e Chile (volume 4), estando em fase de preparação o volume 5, alusivo a Cuba. Cada um deles reúne testemunhos que permitem conhecermos o panorama do campo intelectual do país em questão no período de 1936 e 1939, quando as disputas estavam concentradas na convivência entre as vicissitudes da política interna e as tensões geradas pelo drama da guerra espanhola. A coleção, ao aliar o diálogo entre as análises dos especialistas organizadores aos documentos selecionados, propõe uma compreensão sobre o termo “intelectual” no contexto altamente politizado e ideologicamente polarizado dos anos 1930, sem, contudo, prescindir de considerá-lo necessariamente elástico: “Para nuestra colección, “intelectual” es toda persona que participó con la palabra escrita en el debate de ideas sobre la guerra civil”. (p. 15).

A cuidadosa pesquisa de Muñoz Carrasco – desenvolvida em arquivos e bibliotecas das cidades de Lima e Madrid – constitui, assim, uma referência importante para os estudiosos da história intelectual iberoamericana, pelo menos, por duplo motivo. Primeiro, porque demarca os inevitáveis contrastes e níveis de engajamento dos intelectuais peruanos, cujas escolhas entre nacionalistas e republicanos na guerra da Espanha praticamente não admitiam recuos ou tergiversações. Segundo, porque os documentos que acompanham a obra proporcionam uma mirada sobre a representação que a elite pensante do país latino-americano construiu a partir de uma metáfora, fosse de natureza poética ou de conteúdos enunciados mais especificamente pela narrativa política: a metáfora do “espelho” traduziu o fenômeno da guerra em termos de identificação dos peruanos com a “madre patria”. Em outras palavras, o conflito não foi tratado como um acontecimento estranho ou exterior às sensibilidades políticas peruanas. Chegou a ser vivido como uma causa própria, ao aprofundar as divisões entre os intelectuais mais tradicionalistas – à direita do espectro político – e os de esquerda. Enquanto os primeiros viam na guerra a possibilidade real de acabar com o comunismo que ameaçava destruir a raiz católica do mundo hispânico, seus rivais defenderam uma ordem que designavam democrática pela qual também lutavam no Peru. Na parte inicial, uma indagação decisiva lançada às fontes atravessa o debate proposto por Muñoz Carrasco: como buscar uma Espanha que se projetava para além de suas fronteiras e de seu tempo; ou, como recuperar a origem comum entre a Iberoamérica e a mãe pátria dado que o presente de então somente as aproximava pela violência e terror compartilhados? É nessa perspectiva que a autora traçou similitudes entre as realidades históricas de Peru e Espanha, elaborando o quadro descritivo, a um só tempo amplo e preciso das atitudes e práticas que conduziam os intelectuais peruanos a caminhos incertos e antagônicos.

Segundo Carrasco, o contato entre os dois países havia sido mínimo durante quase todo o século XIX, desde que o Peru não manteve relações diplomáticas com a monarquia ibérica nos primeiros 50 anos de sua independência. Ainda que tenha se restabelecido a partir de 1879, escasseavam na relação demandas institucionais que permitissem o intercâmbio, e, em muitas ocasiões, iniciativas isoladas definiram a criação de espaços de diálogo como a Academia de la Lengua, a Academia Nacional de la Historia e a Sociedad Geográfica de Lima.

A situação passou por mudanças entre os anos 20 e 30 do século passado. Pouco a pouco foram se desfazendo as imagens negativas herdadas da época da independência, e nas celebrações do centenário da batalha de Ayacucho (1924) começaram a ser construídos novos laços culturais, evidenciados por expressivo número de livros e artigos dedicados à Espanha. A violência política e a turbulência social também foram marcas comuns no Peru e na Espanha, assim como outros pontos de contato, quanto à urgência de transformações estruturais, acentuavam o parentesco entre as duas sociedades:

[…] ambos países poseían élites políticas que buscaban un camino pacífico hacia la modernidad, habían heredado un sistema de distribución de tierra arcaico y mostraban diferencias dramaticas en el reparto de la riqueza. Por otro lado, tanto España como el Perú contaban con sectores económicos emergentes en la industria y el comercio, así como con una burguesía y un proletariado que, cada vez más, consideraban los modelos tradicionales obstáculos a sus aspiraciones. (CARRASCO, p. 33).

Se no Peru a proibição e o expurgo de movimentos políticos como a APRA de Victor Haya de la Torre se intensificaram com a ditadura de Óscar Benevides e com a ascensão do fascismo, na Espanha republicana muitos projetos que apontavam para a modernização da sociedade (laicização, reforma agrária, reforma trabalhista, etc.) tenderam ao fracasso diante da intransigência obstinada de fontes de poder social, como a Igreja, o Exército, os terratenentes e a influente FE – Falange Espanhola. Depois de 1935, a brecha aberta entre as duas Espanhas (republicana e nacionalista) também apareceu no Peru, ainda que sua relevância tenha sido menor do que em outros países latino-americanos, como Argentina, Chile ou México. A maioria de intelectuais peruanos contemporâneos da guerra civil firmou-se na identidade e na trajetória política e social do Peru para mostrar o que considerava a única possibilidade viável do momento: o apoio aos nacionalistas de Franco. A oposição a eles aconteceu não só por meio dos textos de viajantes eventuais, mas também de uma poética insurgente e de um periodismo de resistência que encontraram, ora na clandestinidade, ora no exílio de intelectuais pró-republicanos, os principais lugares de ressonância.

A travessia do estudo de Muñoz Carrasco para a documentação histórica confere ao volume sua circunstância determinante, porque é ali que são escutados os dilemas saídos das vozes dos intelectuais. Podemos indagar e, sobretudo, compreender a partir de um mínimo olhar sobre os manifestos: como se organizava o campo das disputas e, principalmente, de que modos o conflito espanhol afetava vidas, obras e compromissos políticos?

A linguagem tensionada nos revela, junto ao processo de degeneração da guerra, as mudanças que aconteceram na percepção dos indivíduos e o empenho em circunscrever o conflito num horizonte de compreensão. Dos manifestos hispanofóbicos de Alberto Hidalgo e seu grito ¡España no existe! – passando pela poesia de vanguarda de Magda Portal a verter sentimentos de amor e ódio (“Te odiaba España por tus frailes hipócritas y sombrios…”), chegando-se à defesa do fascismo em Víctor Andrés Belaúnde -, o volume é rico pelo contraditório que continuamente desperta. De um lado, tal exemplo pode ser rastreado na ação do escritor pró-republicano César Vallejo (1895-1938). Do seu desterro madrilenho em 1931, via com ceticismo os primeiros passos de uma República que, a seu juízo, “no hacía más que perpetuar las jerarquías de antes”; no entanto: “Cinco años después, en cambio, la radicalización de la República bajo el Frente Popular y la resistencia popular al levantamiento militar lo encandilarían”. (CARRASCO, p. 493).

Depois de várias manifestações do poeta em favor da República por meio de correspondências, artigos em jornais e periódicos, uma de suas últimas intervenções antes da morte no exílio parisiense de 1938 veio da participação no II Congreso Internacional de Escritores para Defensa de la Cultura, realizado em Madrid no mês de julho de 1937, quando a guerra civil espanhola completava o primeiro ano. No texto-discurso “La responsabilidad del escritor”, a comovedora argumentação de Vallejo parece reafirmar uma “vocação zolaiana”, se nos é permitida a expressão, para definir o papel do intelectual na defesa intransigente daqueles que percebe como oprimidos e negligenciados pelas mais variadas espécies de injustiças e tiranias:

Me refiero ahora al aspecto de la responsabilidad del escritor ante la Historia y, señaladamente, ante los momentos más graves de la Historia. Hablemos un poco de esa responsabilidad, porque creo que en este momento, más que nunca, los escritores libres están obligados a consustanciarse con el pueblo; a hacer llegar su inteligencia a la inteligencia del pueblo y romper esa barrera secular que existe… […] Camaradas: los pueblos iberoamericanos ven claramente en el pueblo español en armas una causa que les es tanto más común cuanto que se trata de una misma raza y, sobre todo, de una misma historia. […] la causa de la República Española es la causa del Perú, es la causa del mundo entero [y] los pueblos que han sufrido una represión, una dictadura, el dominio de las clases dominantes, poderosas, durante siglos y siglos, llegan por una aspiración extraordinaria a tener esta rapidez; porque un largo dolor, una larga opresión social, castigan y acrisolan el instinto de libertad del hombre en favor de la libertad del mundo hasta cristalizarse en actos, en acciones de libertad. (VALLEJO apud CARRASCO, p. 513-514).

Ao extremo de Vallejo encontra-se José de la Riva-Agüero (1885-1944). De raízes aristocráticas, Marquês de Montealegre de Aulestia, ele encarnava, segundo a análise de Jeffrey Klaiber (2008, p. 460-462), o pensamento integrista e nacionalista, também designado nacional-catolicismo. Riva-Agüero ingressou tarde no rebanho católico, porque em sua juventude e ainda como professor em San Marcos professava ideias liberais e positivistas. Em célebre discurso de 1932 diante de seus companheiros de promoção no colégio La Recoleta, formalmente renunciou a seu passado liberal e declarou-se católico, ao alegar seu distanciamento da religião como fruto de leituras imprudentes e atropeladas. (KLAIBER, p. 460). Para traduzir seus impulsos nacional-católicos do campo da retórica ao da ação efetiva, Riva-Agüero liderou, durante a guerra civil espanhola, campanhas de arrecadação de fundos e apoios para Franco: “yo soy el mayor contribuyente mensual para la Cruz Roja Nacionalista. Deseo que allá se enteren de que cumplo con mis deberes”. (RIVA-AGÜERO apud CARRASCO, p. 433). Foi precisamente sua lealdade ao franquismo que o levou a tecer elogios ao governo peruano quando este rompeu as relações com a República, reconhecendo, ao menos implicitamente, a vitória antecipada dos nacionalistas de Franco. A radical distinção entre os intelectuais aderentes a um lado e outro da contenda fica mais patente quando Muñoz Carrasco nos oferece um excerto de discurso pronunciado por Riva-Agüero na noite de 17 de junho de 1938, no banquete do Club Nacional de Lima em homenagem ao escritor e conselheiro da Falange Espanhola Eugenio Montes:

Con inmenso alivio de ánimo, hemos visto que el Gobierno de Perú ha roto al cabo y en definitiva las relaciones diplomáticas que, siquiera en protocolo y apariencia, lo ligaban a esa hechiza y nefasta España de los rojos, la cual durante un año no cesó de agraviarnos, hasta agotar nuestra paciencia tan sufrida; España roja que no es sino la rabiosa antítesis, la negación blasfema, execrable, de la genuina y bendita España tradicional; de la sustantiva, católica y duradera: la de nuestros antepasados, civilizadores y progenitores del Perú moderno. (RIVA-AGÜERO apud CARRASCO, p. 438).

Resultado de anos de investigação, o estudo de Muñoz Carrasco recupera textos pouco conhecidos de dezenas de intelectuais peruanos da época. Coloca-nos em contato com figuras centrais no panorama das letras e da política, cuja produção completa sobre a guerra civil é imprescindível registrar. Outra virtude do trabalho é que a variedade de materiais se apresenta, metodologicamente, dentro de um critério unificado quanto às tipologias de textos selecionados: a dimensão política do conflito se revela por meio de correspondências, poemas, discursos e artigos em jornais e periódicos que formam o cerne da produção intelectual peruana sobre a guerra civil. Junto à matriz propriamente política e ideológica das militâncias, quedamos surpreendidos pelo impacto pessoal e moral que emerge da ação de cada um dos envolvidos, cujas consequências, não raras vezes, podem estar além da ação das organizações. Resta ponderar sobre a atualidade do tema. Quando muito se discute a rarefação do indivíduo no campo da literatura e a evasão do sujeito da atividade política, ou quando as marcas tradicionais do engajamento são confrontadas pelo anonimato e a diluição, que parecem frustrar o próprio núcleo narrativo das experiências, o estudo de Carrasco restitui um debate que propõe repensarmos as grandes causas emancipacionistas, as vivências e representações sobre princípios e dilemas éticos.

Referências

CARRASCO, O. M. (Org.). Perú y la guerra civil española. La voz de los intelectuales. Madrid: Calambur Editorial, 2013. [ Links ]

KLAIBER, J. , S. J. Los intelectuales y la religión en el Perú. In: AGUIRRE, C.; McEVOY, C. (Eds.). Intelectuales y poder. Ensayos en torno a la república de las letras en el Perú e Hispanoamérica (ss. XVI-XX). Lima: Instituto Francés de Estudios Andinos, 2008, p. 457-477. [ Links ]

Marcos Gonçalves – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil. Contato: paideia_mg@yahoo.com.br.

Mussolini e a ascensão do fascismo – SASSOON (H-Unesp)

SASSOON, Donald. Mussolini e a ascensão do fascismo. Trad. De Clovis Marques. São Paulo: Agir, 2009, 200 p. Resenha de: GONÇALVES, Marcos. História [Unesp] v.28 no.2 Franca  2009.

Em obra traduzida recentemente ao português, o sociólogo Michael Mann concluiu pela impossibilidade política de reaparecimento vigoroso do fascismo. A não ser pela eclosão dispersa de agrupamentos neofascistas na Europa Ocidental que teriam como princípio de ação o antiimigrantismo, Mann enumerou alguns fatores que desmotivam uma revitalização acentuada de tais movimentos.1

Parece-nos, no entanto, que o fascínio pelo tema é contínuo devido à preocupação crescente de historiadores e demais cientistas sociais, em estabelecerem marcos conceituais cada vez mais precisos para estudá-lo, classificando-o não somente dentro do seu contexto imediato de referência histórica, isto é, entre o fim das duas guerras mundiais do século passado, e, sim, como uma categoria ampla e de permeabilidade sócio-histórica significativa. Esta dupla razão tem implicado em que as interpretações sobre o fascismo sejam conduzidas pela originalidade na análise dos materiais e nas descrições tipológicas do fenômeno, consolidando-se daí, conteúdos de alcance multidisciplinar.

Não se cogitaria da mesma forma, em uma retomada pura e simples dos estudos sobre o fascismo que viesse a suprir apenas ambições intelectuais, se tomarmos em consideração os argumentos ainda presentes de Renzo De Felice, eminente historiador do fascismo e também, biógrafo de Mussolini. 2 Em meados da década de 1970, Renzo De Felice produziu uma clássica revisão historiográfica do fenômeno, e explicou que as primeiras tentativas de interpretação do fascismo correram contemporâneas a ele e seguiram o processo de sua afirmação. Segundo De Felice, foi apenas por breve período e imediatamente após a segunda guerra que a cultura européia, esgotada com um problema trágico que se queria esquecer e encerrar optou por um distanciamento de curta duração.3 A angustiante necessidade de entender o fascismo e suas variantes de ação e representação, sua violência, rituais e manifestações regionalizadas, fez com que o tema voltasse a ser objeto de indagações com renovada intensidade já no início dos anos 1960.

Desse modo, ao contrário de recuar, ou de ser eclipsada por modismos, a historiografia do fascismo exibe uma notável tendência de avanço e adensamento analítico constatada por recentes traduções que são recepcionadas em nosso meio.

Mussolini e a ascensão do fascismo, estudo de Donald Sassoon, professor de História Comparada da Europa na Universidade de Londres, se constitui como exemplo de excelente síntese de história política sobre a elevação do fascismo a regime político na Itália, berço do movimento.

Numa análise envolvente, ágil e de fôlego, Sassoon traça um painel conjuntural de uma Itália pós primeira guerra sendo rapidamente engolfada pelo fascismo. É dentro desse contexto que o autor estabelece o debate sobre as questões centrais, divididas em cinco capítulos de uma uniformidade ímpar. Sassoon está menos preocupado em investigar as razões de consolidação de uma ditadura e suas raízes intelectuais e ideológicas, ou nem sequer é atraído em saber por que Mussolini conseguiu manter-se durante vinte anos como Chefe de um Estado totalitário. A questão consiste em saber por que Mussolini chegou ao poder, ou seja, o motivo, considerando-se as circunstâncias relatadas, de um líder de um partido eleitoralmente impopular, sem apoio nacional nem controle dos militares, ser nomeado primeiro-ministro e receber o beneplácito da monarquia e de outras fontes de poder social.

Atento a esse problema,Sassoon se empenha em relativizar certos mitos legitimadores do fascismo. Um deles é a lendária “marcha sobre Roma”, de outubro de 1922; o outro é a suposta penetração eleitoral dos fascistas. Neste segundo aspecto, embora o número de adeptos e militantes do fascismo viesse aumentando de forma constante nos primeiros anos da década de 1920, chegando em maio de 1922 a aproximados 322 mil membros, o fascismo nunca se caracterizou por ser uma força eleitoral antes da tomada do poder. Pressionado entre os dois maiores partidos italianos da época, o PPI (Partito Populare Italiano, católico) e o Partido Socialista, representante dos trabalhadores urbanos e da nova intelligentsia, o movimento fascista teve que recorrer a alianças. Reiterando os argumentos enunciados pelos estudos de Robert Paris e Stanley Payne,4 Sassoon indica que foi a aproximação com liberais e nacionalistas de direita o elemento favorável ao crescimento do fascismo:

Em termos eleitorais, o fascismo não fora um grande sucesso. A primeira eleição de que participaram, em 1919, revelou-se um desastre. (…) Os fascistas saíram-se um pouco melhor na eleição de maio de 1921, mas só porque estavam integrados ao blocco nazionale de Giolitti, juntamente com liberais e nacionalistas de direita. Não se pode dizer que Mussolini fora levado irresistivelmente ao poder numa onda de apoio eleitoral (p. 18-19).

A superestimação da “marcha sobre Roma” também é alvo da crítica de Sassoon. Pontuada de fina ironia, a descrição do autor sugere que a linguagem de Mussolini e seus acólitos para justificarem a chegada ao poder pintava um quadro de sublevação e celebrava a violência revolucionária. Impressões falsas que se legitimaram através das duas décadas do regime, destroçando a lembrança de que Mussolini fora designado primeiro ministro dentro de um quadro de legalidade constitucional, malgrado a crise política e econômica atravessada pela Itália no início dos anos 1920.

Neste sentido, é sombrio constatar com Sassoon, que boa parte do programa preliminar fascista visando recuperar e estabilizar a Itália depois da tremenda crise gerada pela primeira guerra, tinha pontos assemelhados, para mais ou para menos, com alguns itens do conteúdo programático de correntes liberais e socialistas. O autor assinala que o programa dos fasci não era abertamente de direita, pois encampava uma série de reivindicações que fugiam aos programas nitidamente conservadores, como, por exemplo: extensão do sufrágio às mulheres, recuo da idade de voto para 18 anos, abolição do Senado, salário mínimo, jornada de trabalho de 8 horas, representação dos trabalhadores nas empresas, imposto sobre a riqueza, confisco de bens da Igreja, imposto especial sobre os lucros da guerra (p. 63-64).

Dois substanciais fatores combinados ajudam a explicar, segundo Sassoon, a razão de ter o poder caído nas mãos dos fascistas: os resultados insatisfatórios da primeira guerra, e as fragilidades históricas do sistema parlamentar italiano.

Considerada uma potência imperialista de segunda classe no começo do século XX, a Itália aderiu à primeira guerra como aliada de franceses e britânicos por injunções e pressões dos entusiastas intervencionistas a favor do conflito, e pela promessa de futuras compensações financeiras e territoriais estabelecidas pelo Tratado de Londres, assinado em 1915. Tão logo encerrado o conflito, produziu-se um descontentamento generalizado em razão de o verdadeiro espólio de guerra recebido estar muito aquém das expectativas italianas. Esta herança mal digerida pelos promotores da presença italiana no conflito foi resumida pelo poeta D’Annunzio em poema no qual aludia à “vitória mutilada”, e à humilhação sofrida por toda uma geração de jovens combatentes. Sassoon explicita que os beneficiários da guerra foram os grupos que formavam o grande triângulo industrial da Itália: Ansaldo (aço), Fiat (veículos), Pirelli (borracha). Enquanto a indústria italiana mostrava-se, como sempre, dependente do governo que era o seu principal comprador, o Estado se escorava nos bancos credores e nos impostos dos contribuintes para equilibrar seus orçamentos. Por seu lado, as associações de veteranos de guerra, além da construção de forte sentimento de comunidade, exigiam mais espaço político, e reconhecimento pelos sacrifícios que a experiência de violência e brutalidade de uma guerra tinham representado: “O número de baixas italianas na Grande Guerra foi muito alto: 650 mil mortos e um milhão de feridos” (p. 46).

Já, as debilidades do sistema parlamentar italiano são detectadas por Sassoon como algo enraizado na cultura política italiana, pelo menos, desde o processo de unificação na segunda metade do século XIX. Sem partidos fortes e estabelecidos, e com uma monarquia que pouco sensibilizava a audiência pública, o Estado italiano era, por conseguinte, um Estado fraco. O parlamento era basicamente uma arena em que os representantes dos interesses fundiários e os industriais entravam permanentemente em disputa em torno de cada lei ou medida financeira:

Da noite para o dia, adversários podiam ser transformados em aliados mediante suborno direto ou indireto – razão da designação pejorativa “transformismo” ser aplicada ao sistema. (…) Desenvolveu-se um sistema de “clientelismo”, no qual os políticos prometiam empregos aos eleitores e seguidores, proteção e um constante fluxo de dinheiro público. Esse tipo de proteção pessoal dificultou o desenvolvimento de partidos políticos modernos e centralizados (p. 71-72).

O avanço do fascismo foi projetado, justamente, nesse quadro crônico de crise social e política em desdobramento. As primeiras percepções sobre o que era o fascismo foram casuais, fortuitas, e críticos antifascistas do futuro próximo, como os líderes comunistas Antonio Gramsci e Palmiro Togliatti apenas faziam menção breve sobre a violência dos fascistas, e, provavelmente, não viam nele, uma real possibilidade de vir a se tornar uma força política estável e candidata à governabilidade.

Através do emprego da violência, o fascismo foi gradativamente angariando adeptos nas zonas rurais e nas classes médias urbanas. Ao eleger o antiesquerdismo e o antisocialismo como fontes de todas as mazelas da Itália, Sassoon sublinha que o fascismo destruiu em pouco menos de dois anos a estrutura institucional do socialismo italiano. A uma velocidade que ninguém poderia ter previsto, descortinou-se aos proprietários de terras a perspectiva de ver o odiado sindicalismo rural liquidado por um movimento, o de Mussolini, que parecia mais capaz de representar suas aspirações de longo prazo: a defesa da propriedade privada, uma política externa nacionalista e a realização de obras públicas para fomentar a economia rural.

Ministros como o velho líder liberal Giollitti, e mais tarde Nitti, foram reiteradamente demonizados pagando o preço da excessiva concentração nas necessidades do setor industrial: “Relegados, os proprietários fundiários das províncias do norte e do centro contra-atacavam, tendo como arma principal os esquadrões do fascismo” (p. 103).

Sassoon reconhece que uma das grandes forças internas do fascismo foi seu expressivo contingente de jovens, sistematicamente propagandeado por Mussolini. Esta força também se materializou na base social do eleitorado fascista constituído por esmagadora maioria do sexo masculino. A juventude fascista enxergava a si como vanguarda imbuída de uma missão épica germinada na experiência dos conflitos, batalhas e da ruína da primeira guerra. Tal demografia juvenil, aliás, é fundamental para percebermos que a ideologia do fascismo, longe de ser difusa ou marcada pela assimetria, era sedutora por estabelecer fronteiras claras no discurso que reforçava as antinomias novo / velho, moderno / arcaico. O fascismo anunciava a construção do homem novo, apropriava-se das filosofias vitalistas e voluntaristas da época, opondo-se à direita tradicional, mais fiel aos valores conservantistas.

Sassoon pretendeu capturar o inusitado do acontecimento fascista a partir da cumplicidade construída pelo conjunto das elites italianas, que por sua posição de visceral antisocialismo preferiu fortalecer o que julgava ser um “mal menor”, e temendo por suas posições consolidadas em face de possíveis avanços de socialistas e comunistas, não aceitaria que a Itália fosse um espelho dos recentes acontecimentos na Rússia. Segundo o autor, essas elites pretendiam transformar Mussolini em “criatura”. As questões que as preocupavam eram a governabilidade e a “ordem pública”, e Mussolini, que pouco tempo antes era apenas uma figura secundária e inexperiente na cena política, num momento estratégico apareceu como o “instrumento” a garantir a tranquilidade dos industriais, não atrapalhar os proprietários rurais, apascentar os sindicatos.

O estudo de Sassoon nos esclarece que a ascensão de Mussolini ao posto de primeiro ministro se não foi recebida com entusiasmo por algumas correntes políticas que, naquele momento, comungavam de projetos aparentados com o fascismo, pelo menos, recebeu desses mesmos setores uma adesão implícita, tornando-os ainda mais cúmplices, seja por omissão deliberada, seja por engajamento escancarado: “Assim, quando Mussolini assumiu, ouviu-se um coro de aprovação, oscilando entre o franco entusiasmo (os nacionalistas e a direita em geral) e a aceitação resignada do fato como um mal necessário (os liberais)” (p. 145). Isto é, antes Mussolini, do que a esquerda.

Embora a conciliação com a Igreja tenha representado uma árdua tarefa para os fascistas, ela se realizou plenamente em fevereiro de 1929. Neste ano, o Estado italiano selou a paz com o Vaticano assinando a Concordata e pondo fim à “questão romana” que se arrastava desde a unificação nas décadas de 1860/70. O acordo reconhecia a soberania do Vaticano, estabelecia indenizações a serem pagas à Igreja pelas perdas sofridas em 1870, reconhecia o catolicismo como “religião de Estado”, determinava o ensino da doutrina católica em todas as escolas oficiais: “Não surpreende que o papa Pio XI considerasse Mussolini o homem ‘que a Providência nos enviou'” (p. 152).

A contínua rediscussão do fenômeno fascista seja como evento historicamente localizado, ou como “grande unidade de análise”, como bem posicionou Francisco C. Teixeira da Silva,5 encontra no estudo de Donald Sassoon um respaldo bibliográfico e metodológico de inegável contribuição. A partir de suas análises, os estudiosos motivados pelo tema podemos localizar hipóteses de trabalho, e insights reflexivos para (re) construir discursos derivativos e / ou elementos comparativos do fascismo. Além do que, podem-se estabelecer pontos de contato entre as múltiplas clientelas filofascistas que agem na cenografia política da contemporaneidade. Não obstante, sobre o fascismo, ou em relação ao que vem sendo chamado de neofascismo, devemos guiar-nos sempre pelas dúvidas e desconfianças quanto aos modelos teóricos que fecham a questão sobre os setores supostamente restritos que abraçam unicamente uma das possíveis tendências do fenômeno.

Notas

1 Dentre os fatores que o autor cita como potentes inibidores dos fascismos estão: 1) a democracia liberal consolidada em toda Europa ocidental; 2) a União Européia, cuja exigência de democracia é um pré-requisito para a entrada dos países pretendentes. Cf. MANN, Michael. Fascistas. Tradução de Clovis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2008.

2 Cf. DE FELICE, Renzo. Mussolini il rivoluzionario 1883-1920. Turim: Einaudi, 1965. Cf. _____. Mussolini il fascista. La conquista del potere 1921-1925. Turim: Einaudi: 1966.

3 Renzo de Felice também alude a certa inércia intelectual relacionada às três interpretações que se cristalizaram a partir da década de 1920: a liberal, a radical e a marxista. Essa cristalização teria impedido que os estudos a respeito do fascismo não somente deixassem de avançar para novos problemas, como também teria gerado posições acomodatícias por satisfazer adeptos das três correntes, num período marcado pela extrema ideologização da cultura política. Cf. DE FELICE, Renzo. Explicar o fascismo. Lisboa: Edições 70, 1977.

4 Cf. PARIS, Robert. As origens do fascismo. Tradução de Elisabete Perez. São Paulo: Perspectiva, 1993. Cf. PAYNE, Stanley G. El fascismo. Traductor: Fernando Santos Fontela. Madrid: Alianza Editorial, 2006.

5 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Os fascismos. In: FERREIRA, Jorge; REIS FILHO, Daniel Aarão; ZENHA, Celeste. (Orgs.). O século XX. O tempo das crises: revoluções, fascismos e guerras. 4. ed. V. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

Marcos Gonçalves – Professor Adjunto do Departamento de Ciências Humanas – Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de Paranaguá – FAFIPAR – Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR – 83203-280 – Paranaguá – PR – Brasil. E-mail: paideia_mg@yahoo.com.br.