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Uma história da leitura – MANGEL (VH)
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Resenha de: GOMES, Leonardo José Magalhães. Varia História, Belo Horizonte, v.15, n.20, p. 178-181, mar., 1999.
Em uma conferência ditada na Universidade de Belgrano e publicada em seu livro “BORGES ORAL”, o mestre portenho chama a atenção do papel do livro como extensão da memória e da imaginação, qualificando-o como o mais assombroso dos diversos objetos humanos, cuja função principal é a recordação do passado e dos sonhos. Mais adiante, manifesta o desejo de escrever uma história das diversas valorizações que o livro recebeu ao longo do tempo, tarefa que nunca chegou a realizar. Também no pequeno ensaio “DEL CULTO DE LOS LIBROS”, parte de “OTRAS INQUISICIONES”, estão já presentes muitas das idéias mais tarde expostas na conferência. Se considerarmos as quase três décadas existentes entre um e outro texto fica clara a constância destas idéias em sua Obra.
Se Borges não chegou a escrever seu estudo, nos privando assim de mais uma de suas fascinantes contribuições, a idéia não se perdeu, já que agora nos chega esta “UMA HISTÓRIA DA LEITURA”, do argentino naturalizado canadense Alberto Manguei, que ao longo de suas 408 páginas traça um interessante painel das diversas valorizações que a leitura, e conseqüentemente seu continente, o livro, vêm recebendo ao longo dos tempos.
Começo este texto lembrando a figura de Jorge Luis Borges, porque embora Manguei não o admita explicitamente, talvez por ser desnecessário de tão óbvio, sua obra está impregnada pelo universo simbólico e pelas idéias do velho mestre, inspirador evidente da concepção e de muitas das passagens capitais desta “UMA HISTÓRIA DA LEITURA”. Basta uma leitura de cada uma das obras citadas (no caso de Borges, a conferência “EL LIBRO” em “BORGES ORAL”) para que seja comprovada esta afirmação. Além da influência natural de um grande autor sobre um seu conteporâneo e conterrâneo mais jovem, há nesse caso um elo mais forte, já que Manguei, como ele mesmo conta, foi leitor para Borges, tendo assim, ao substituir os olhos do outro, a oportunidade de uma convivência muito mais íntima e cúmplice do que a de um mero leitor com um autor distante.
Não vai aí nenhum demérito, não estou dizendo que Manguei copia Borges, longe disso, acho apenas que ele desenvolve, e de maneira brilhante, idéias que foram adquiridas pela convivência e/ou leitura de seu antecessor. Nada de mais lisonjeiro para um leitor que ampliar, melhorar e desenvolver o texto lido, num verdadeiro trabalho de recriação, transferindo-o para um novo universo, ainda mais quando a fonte de inspiração é um autor do porte de Jorge Luis Borges. Além disso, e podemos dizer sem problemas, já que ele próprio o alardeava, um dos traços mais característicos da obra de Borges é exatamente este, a releitura, recriação e inserção em nova realidade de obras e conceitos de autores do passado, proporcionando assim uma nova vida a criações que de outra forma desapareceriam no vai-e-vem das modas, criando com isso uma meta-literatura.
Histórias da escrita, da imprensa, das bibliotecas, da indústria gráfica, ou seja, do objeto-livro em suas mais diversas formas e conjuntos, e até mesmo manuais de editoração, produção, aquisição e de cuidados com os livros há muitos. Exemplos recentes, escritos em ou traduzidos para o português, que ainda se acham nas livrarias e sebos da cidade, são: “O LIVRO” de Douglas C. McMurtrie, “O APARECIMENTO DO LIVRO” de Lucien Febvre e Henry-Jean Martin, ‘SÍNTESE HISTÓRICA DO LIVRO”, de José Barboza de Mello, “A PALAVRA ESCRITA”, de Wilson Martins, “A CONSTRUÇÃO DO LIVRO”, de Emanuel Araújo e os “ELEMENTOS DE BIBLIOLOGIA”, de Antônio Houaiss, além do há muito esgotado “O BIBLIÓFILO APRENDIZ” de Rubens Borba De Moraes. Mas histórias da leitura ou como disse Borges, das diversas valorizações que o livro tem recebido ao longo do tempo, têm sido raras.
É claro que quando se fala de livros há que se falar de leitura, e que em diversos momentos este tema é tratado nestas obras. Mas parece interessar aos seus autores mais o objeto material, cobiçado pelos bibliófilos antes pelo aspecto e raridade do que propriamente pelo conteúdo, que a íntima relação entre o leitor e o autor através da obra, da qual o livro é apenas o necessário, indispensável e, é bom que se diga nestes tempos de computador em que muitos apressadinhos tentam declará-lo em extinção, eterno suporte físico.
Obras que tratam deste assunto sob esta ótica da leitura, em português, só me vêm à lembrança no momento, os belos e indispensáveis “OS LIVROS NOSSOS AMIGOS” e “O DIABO NA LIVRARIA DO CÔNEGO”, de nosso mestre Eduardo Frieira, que juntamente com seus diversos ensaios merecem uma divulgação muito mais ampla do que têm, tal a sua qualidade e perene contribuição. É bom lembrarmos que Frieira, que por coincidência morreu cego como Borges, não só escreveu livros, como também os fabricou, pois começou sua vida profissional como impressor e tipógrafo, adquirindo assim um conhecimento dos dois lados da produção dos livros talvez único entre intelectuais de seu porte, o que dá um sabor especial às suas obras sobre o tema. Mas como santo de casa não faz milagre …
Esta “UMA HISTÓRIA DA LEITURA” chega em boa hora, no momento em que a própria sobrevivência do livro como suporte material está sendo contestada. Há aqueles que, provavelmente porque ou não gostam da leitura como prazer, fora das atividades profissionais, ou nem chegam a imaginar a existência deste hábito, acham estar o livro com seus dias contados, sendo substituído pelos computadores. Isso é grande bobagem. A tela da máquina pode substituir as obras de referência, tais como enciclopédias e dicionários, e os periódicos. Mas quem vai ler “GUERRA E PAZ”, um conto qualquer de Rubem Fonseca ou um exemplar de Asterix numa tela?
Por enquanto não há melhor suporte para leitura que o nosso bom e velho “códice”, um dos mais geniais objetos de “design” criados pelo Homem, que, como já foi amplamente dito, é leve, portátil, permite acesso quase imediato às informações nele contidas, sua leitura não cansa como a da tela do computador, além de ser extremamente durável.
A teia, por outro lado, como o próprio Manguei diz em sua obra, é uma versão moderna, eletrônica, dos antigos rolos de papiro ou de pergaminho e velino, que tinham de ser desenrolados à medida que iam sendo lidos, dificultando assim o acesso ao seu conteúdo, além de ser de difícil armazenagem e transporte. Experimente ler na cama, ou mesmo em uma poltrona com um computador, mesmo daqueles pequenos, portáteis. E quando acabar a luz, qual vela iluminará a tela?
O livro de Manguei está dividido em quatro partes, organizadas como um livro às avessas começando com “A ÚLTIMA PÁGINA” e terminando com as “PÁGINAS DE GUARDA”, com os “ATOS DE LEITURA” e “OS PODERES DO LEITOR” pelo meio. Nestes capítulos é traçado um vasto painel do surgimento, desenvolvimento e variação da atividade da leitura nas diversas fases e situações por que passou o Homem ao longo de sua trajetória.
Neles aprendemos sobre a solidão e a discriminação sofridas pelo leitor, sobre as suspeitas que a leitura gera em épocas de totalitarismo, o que leva estes regimes a combater com vigor, desde o início, esta atividade para melhor controlar a sociedade e reprimir a oposição. Aprendemos também, como era vista a leitura na Antigüidade Clássica e nos primórdios da Idade Média, em que o importante era a palavra dita e não a escrita, sendo os livros vistos como verdadeiros túmulos das ide ias, e destruidores desta outra arte quase perdida para nós, a da Memória, diluída hoje no infinito mar de informação que nos afoga, espalhado que está em seus suportes eletrônicos, e não como achavam Sócrates e Platão dentro do cérebro, ou coração de cada um, trazendo assim a necessária sabedoria como fruto da aprendizagem, e não apenas a repetição mecânica.
Discute-se também o espanto de Agostinho ao ver Ambrósio lendo silenciosamente, o que nos leva a crer que esta era a prática incomum nos primeiros séculos· da leitura, o que deveria causar um verdadeiro tumulto nas bibliotecas e locais públicos, além da inevitável indiscrição em relação ao texto lido. Fala-se da lenta evolução para uma leitura silenciosa, que foi possibilitada pela invenção dos sinais de pontuação no início da Idade Média.
Temos, também, um painel do aparecimento das heresias causadas pela leitura silenciosa, que deixava o leitor divagar pelo texto lido, imaginar teorias e chegar a conclusões não ortodoxas, fato impossível quando da leitura em voz alta. Por aí o autor vai, até chegar aos nosso dias, passando pelos mais variados aspectos da arte e do prazer de ler em suas mais diversas formas, situações e conseqüências, como o roubo de livros, a leitura do futuro através dos textos consagrados. o futuro da leitura como atividade, a leitura do mundo e dos códigos não escritos, a aprendizagem da leitura, a relação entre estas duas e muito mais. Tudo isto é exposto em linguagem clara, de maneira extremamente agradável, que aliada a uma boa tradução e ótima apresentação gráfica torna este livro indispensável para quem se interessa pelo assunto, e inevitável para quem gosta de ler.
Leonardo José Magalhães Gomes – Licenciado em História pela UFMG.
[DR]