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História de crimes, justiça e instituições: fontes judiciais e agentes | Aguinaldo Rodrigues Gomes, Magda Nazaré Pereira Costa e Adson Rodrigo Silva Pinheiro
Magno Francisco de Jesus Santos | Imagem: Infonet, 2014
A obra História de crimes, justiça e instituições: fontes judiciais e agentes é uma coletânea organizada por Aguinaldo Rodrigues Gomes, Magda Nazaré Pereira da Costa, Adson Rodrigo Silva Pinheiro e Raick de Jesus Souza, que tem como objetivo apresentar discussões sobre perspectivas de pesquisa em História Social. Reunindo estudos sobre diferentes temáticas e problemáticas do campo do conhecimento histórico, a presente coletânea é resultado da 12ª edição do Encontro de História da Anpuh-Pará, com o tema Passado e Presente: os desafios da história social e do ensino de história, realizado em formato virtual entre os dias 2 a 4 de dezembro de 2020.
A apresentação da coletânea foi escrita pelo historiador Francivaldo Alves Nunes, Presidente da ANPUH-Seção Pará, abordando em seu texto a importância da obra e da realização do evento para o diálogo entre o ensino de história e a história social como campos de pesquisa. Atentando para a relação entre passado e presente na pesquisa histórica, mediante questões socialmente vivenciadas, a proposta da coletânea é reunir trabalhos voltados para uma crítica historiográfica que possibilite ampliar discussões acerca de métodos e análises documentais no campo da História Social. Leia Mais
História & Teoria Queer | Miguel Rodrigues Sousa Neto
História & Teoria Queer, publicado em 2018 pela editora Devires, é uma das primeiras obras publicadas no Brasil que busca apresentar a potencialidade, os usos e as apropriações da Teoria Queer (PÉREZ NAVARRO, 2019) pelo saber histórico. Com prefácio da socióloga Berenice Bento1 e posfácio de Alessandra Ramos2, a coletânea soma 13 capítulos, divididos em duas partes.
Na primeira, intitulada “Teoria queer e historiografia: contribuições ao debate”, focaliza-se os jogos de (in)visibilidade de temas como as homossexualidades, as transgeneridades e a relação da alteridade na escrita da história. Genealogicamente, a Teoria Queer chegou ao âmbito acadêmico brasileiro no início dos anos 2000 por caminhos diversos como a Educação (LOURO, 2001), a Linguística (LUGARINHO, 2001) e as Ciências Sociais (BENTO, 2006). Todavia, ainda tem uma presença tímida no campo historiográfico (SOUZA e BENETTI, 2012; REA e AMANCIO, 2018). Leia Mais
Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades | Aguinaldo Rodrigues Gomes
A obra Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades, sob organização de Antonio Ricardo Calori de Lion e Aguinaldo Rodrigues Gomes, nos apresenta, em suas 408 páginas, uma sequência de vinte artigos, divididos em três partes distintas: Existências/Resistências; Subjetividades e as reinvenções de si; e (In)visibilidades e representatividades. Pontuando variados períodos da história humana, o conjunto de textos englobados na obra nos fornece um interessante panorama acerca do corpo e de suas subjetividades desde a antiguidade romana até a contemporaneidade.
Ao considerarmos o atual momento histórico-social brasileiro, no qual a invisibilidade e a marginalização da comunidade LGBT+ [2] aparenta ser uma questão à qual os poderes governamentais gradativamente parecem se afeiçoar, principalmente através de discursos de ódio voltados ao “diferente”, o conteúdo disposto em Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades apresenta-se como uma leitura fundamental para entendermos não apenas as transmutações históricas da mentalidade, corporalidade e sexualidade LGBT+, mas também como uma maneira de compreendermos a vivência desses sujeitos frente às violências quotidianas a que são submetidos.
Embora o foco da maioria dos textos que a compõem seja voltado para experiências de travestis e mulheres transexuais, a obra mostra-se uma prolífica mina de conhecimento ao englobar ideias de importantes pensadores como Judith Butler, Paul Beatriz Preciado, Angela Davis e Michel Foucault, entre outras/os, além de entrevistas com sujeitas/os cujas vivências foram e ainda são marcadas por experiências corporais tidas como desviantes dentro de um contexto patriarcal cis- heteronormativo.
A obra inicia na antiguidade romana, ao examinar a corporeidade masculina em contraste com a idealização quase utópica acerca do conceito de masculinidade e feminilidade da época. Ao explorar a relação do imperador Nero e do escravo Esporo em Um eunuco e um imperador: o discurso literário sobre casamento, corpo e gênero no Império Romano, o autor do texto, Benedito Inácio Ribeiro Júnior, traça uma importante análise sobre o corpo masculino e as funções sociais de homens e mulheres no Império Romano. Ao explorar as relações de poder que permeavam os estratos sociais mais altos da sociedade romana da época, o autor nos convida a questionar como são construídas as identidades de sexo, gênero e corpo, bem como os papéis atribuídos socialmente ao masculino e feminino na sociedade antiga – um questionamento que nos causa também uma reflexão sobre esses mesmos elementos na sociedade contemporânea.
Corpos e comportamentos em desconformidade às regras socialmente estabelecidas também são abordadas no texto Efeminados, travestis, transexuais e hermafroditas luso-afro-brasileiras nas garras da inquisição, de Luiz Mott. Nele, o autor comenta acerca do modo como sujeitos biologicamente identificados como sendo do sexo masculino eram levados aos tribunais inquisitoriais devido a comportamentos desviantes dos padrões patriarcais do período. Para a realização de seu estudo, Mott reúne registros da Torre do Tombo e traça um panorama não apenas do pensamento e valores da época sobre o “ser” masculino, mas também uma visão do feminino enquanto um elemento depreciativo na conduta de homens e rapazes. Nesse contexto, a transexualidade e a travestilidade são empurrados para a margem social como condutas consideradas violações sérias aos olhos da sociedade e da religião, punidas com a prisão, degredo ou mesmo a morte.
Ao pensarmos a realidade brasileira desses indivíduos marginalizados, um ponto bastante complexo e muitas vezes ignorado pelos poderes governamentais é a situação dessas pessoas quando parte da população carcerária. É essa realidade que Aguinaldo Rodrigues Gomes e Josimara Aparecida Magnani exploram em seu texto Travas e Trans – abjetificação e precarização de vidas no cárcere brasileiro. O capítulo traça um retrato da precarização e do desrespeito aos direitos humanos dentro do sistema penal, bem como da violência reservada a esses corpos dentro das instituições carcerárias no Brasil, dando-nos uma visão bastante ampla acerca da virilidade inserida no sistema penal como um instrumento de dominação e uma forma de subjugar corporalidades consideradas abjetas, excluídas do ideário machista.
A questão da corporalidade é também trabalhada lançando-se um olhar para a área da saúde. Nos textos Cada cicatriz conta uma história: corpos doloridos, de Regiane Corrêa de Oliveira Ramos e Frida Pascio Monteiro; Paradoxos discursivos na luta pela inserção social das brésiliennes em Paris, de Marina Duarte e Daniel Wanderson Ferreira; e Despatologização das identidades trans desde os transativismos na Abya Yala: notas sobre uma experiência acadêmica-ativista avaliativa e participativa, de Fran Demétrio, vemos as relações estabelecidas entre o discurso médico e a “criação”, manutenção e (des)patologização dos corpos em transição.
Ramos e Monteiro conectam a vivência de homens e mulheres transexuais no Brasil e na Índia ao discorrer sobre a insubmissão dos corpos frente ao sistema patriarcal, e sobre a violência sofrida por esses corpos em trânsito em suas buscas pela adequação corporal à sua subjetividade. Aqui, nos é exposto também um panorama relativo à lida médica diante de indivíduos transexuais que desejam intervenções cirúrgicas em sua construção corporal.
Duarte e Ferreira comentam sobre a migração de travestis brasileiras para Paris, principalmente com o objetivo de trabalhar no mercado sexual. Também nos é apresentada a figura de Camille Cabral, ativista brasileira trabalhando em território francês em prol da saúde das prostitutas travestis e transexuais. O texto conta com um extenso trabalho de pesquisa relativo à trajetória dos projetos de saúde desenvolvidos por Cabral e associações que trabalham em parceria com esta, em um esforço para a visibilidade e manutenção da saúde dessa população, principalmente em relação ao vírus do HIV/AIDS.
Demétrio, por sua vez, traz a discussão desses corpos em trânsito para o âmbito da América Latina. Em seu texto a autora analisa a situação cultural e sociopolítica de pessoas trans em vários países latino-americanos, além de refletir sobre o papel da justiça, da medicina e da psicologia no tratamento dispensado às comunidades transexuais.
A corporalidade como instrumento da expressão da subjetividade e como fazer artístico é assaz visível nos textos Reflexões transversais sobre o corpo de Hija de Perra (1980-2014), de Thiago Henrique Ribeiro dos Santos; “Com a sobrancelha lá na puta que pariu”: a arte de ser drag em Belém do Pará – a NoiteSuja e as drags Themônias (2014-2018), de Ana Paulo Gomes Barbosa; “Não quero ouvir falar em outro transformista, o que não for Olga del Volga é vigarista”: o nonsense debochado de Patrício Bisso na década de 1980, de Robson Pereira da Silva; DZI Croquettes e os corpos em trânsito, de Natanael de Freitas Silva; e Identidades em trânsito: revisitações acerca da arte da montação, de Juliana Bentes Nascimento.
Em sua análise sobre a trajetória de Hija de Perra, Santos vale-se de conceitos como o de corpo falante, o de máscara e mascaramento, e o de rostilidade, para traçar um esboço sobre a construção corporal de Hija de Perra, em um estudo que mistura fragmentos de dados biográficos e ficcionais do que Santos nos apresenta como uma “poética abjeta e marginal”, um corpo monstruoso e indisciplinado. Colocando-se fora de uma lógica colonial binária, que admite apenas “homem” e “mulher” como construções sociais e sexuais cujas existências são autorizadas, Hija de Perra inventa outros modos de existir, surgindo como uma subversão do sistema, um indivíduo incompreensível pela mentalidade patriarcal hegemônica.
A fuga da normatividade é também explorada por Barbosa ao dissertar acerca das drags Themônias, um grupo que se diferencia das drags “convencionais” a partir, entre outros pontos, da criação de novos conceitos estéticos. É nesse contexto que Barbosa questiona o que é ser drag, além de comentar sobre o pensamento binário ainda existente em meio à comunidade LGBT+ que privilegia as drag queens aos drag kings. A autora também reflete a respeito dos elementos que caracterizam um gênero e quais os limites, se é que existem, entre sexo, gênero e sexualidade dentro de uma lógica heterossexual compulsória. Em sua análise, Barbosa discorre sobre indivíduos que, ao se montarem, são identificados com o gênero masculino, feminino ou nenhum dos dois.
Robson Pereira da Silva, por sua vez, investiga a performance artística de Patricio Bisso como a sexóloga russa Olga del Volga. Em seu texto, o autor explora a performatividade da linguagem da personagem de Bisso de forma a dar vazão a uma subjetividade de gênero que não seria, dado o momento histórico no qual o artista viveu, benquisto frente à sociedade. A mistura de dualidades na figura de Olga del Volga e de Histeria (outra personagem tratada no texto), como o belo, o feio, assim como a fuga aos padrões de beleza e o discurso enviesado por absurdos, unem-se na criação do nonsense utilizado por Bisso em sua arte. Silva defende que ambas as personagens apresentadas no capítulo seriam elas próprias afrontas aos padrões de beleza e comportamento impostos às mulheres.
No âmbito desses questionamentos acerca dos padrões decretados pela lógica cis-heteronormativa, Natanael de Freitas Silva explora a problematização da virilidade e das atribuições de gênero socialmente construídas ao comentar sobre os DZI Croquettes. O autor reflete sobre o período ditatorial brasileiro e como a homossexualidade foi associada a uma doença social, uma degenerescência e um grave pecado aos olhos de setores sociais conservadores. Nesse panorama, a negação de traços tidos como femininos era vista como uma necessidade, uma vez que o feminino era uma mácula na utopia cis-heteronormativa. Em seu texto, Silva comenta também sobre o corpo não mais como uma ferramenta de adequação, mas sim de aperfeiçoamento da performance artística em constante diálogo entre a corporalidade masculina e feminina, uma ambiguidade subversiva e perigosa à “moral e os bons costumes”.
Na discussão relativa à quebra desses parâmetros cis-heteronormativos, Nascimento contribui ao enviesar seus comentários em direção à montação. Ligada ao conceito de mascaramento, a autora trabalha a ideia de montar-se para uma ação em busca não apenas de um efeito estético, mas também de uma nova percepção corporal. Ao comentar sobre formas de montação, como drag queen, drag king, transformismo, cross-dressing e drag queer, incluindo também as drags Themônias, Nascimento monta um panorama sobre esse processo identitário e artístico, em constante diálogo com a performatividade de gênero.
Em alguns capítulos o corpo em trânsito é observado a partir das vivências da infância. Em Vidas dissonantes em memórias de infância: as artes de existência como resistência ao desaparecimento social, de Raquel Gonçalves Salgado e Bruno do Prado Alexandre; e Traíd@s pela verdade: análise cinematográfica sobre a infância trans nas obras francesas Ma vie em rose (1997) e Tomboy (2011), de Márcio Alessandro Neman do Nascimento, Eloize Marianny Bonfim da Silva, Jefferson Adriã Reis e Jéssica Matos Cardoso, nos é exposto um panorama sobre a vivência e construção da identidade sexual e de gênero de crianças em meio a um ambiente adultocêntrico e LGBTfóbico.
Salgado e Alexandre exploram as bagagens memorialísticas de infância de travestis durante suas passagens por instituições escolares. Um fato que torna-se bastante evidente nas narrativas apresentadas é o despreparo da escola para lidar com experiências de gênero dissonantes dentro do sistema de heteronormatividade compulsória. São vivências rechaçadas e desprezadas, mas também rebeldes frente às convenções de gênero e sexualidade.
Já Nascimento, Silva, Reis e Cardoso tecem uma reflexão a respeito das experiências de gênero e sexualidade na infância a partir de obras cinematográficas. Assim como no texto de Salgado e Alexandre, notamos nesse capítulo a violência direcionada à criança que de alguma maneira desvia do comportamento convencionado segundo as normas da sociedade machista. Ambos os textos trabalham em consonância, proporcionando-nos relevantes contribuições ao entendimento da vivência do indivíduo transexual na infância, um importante período de construção da individualidade.
A carga memorialística também é perscrutada por Fábio Henrique Lopes e Paulo Vitor Guedes de Souza no capítulo Suzy Parker e Yeda Brown. Amizade, modos de existência e invenções de si. Nele, por meio de entrevistas, somos apresentados à cena cultural do Rio de Janeiro da década de 1960, na qual travestis inseriam-se no entretenimento noturno da cidade e experimentavam intervenções estéticas corporais a partir de modelos de feminilidade branca e cisgênera. Nesse período notamos a formação de redes de solidariedade para com as artistas travestis que inseriam-se nesse meio.
Lopes e Souza discutem o abandono da ideia do comportamento viril como algo necessário e o autorreconhecimento dessas artistas como mulheres, numa emancipação do padrão cis-heteronormativo – um rompimento com padrões sociais de gênero artificialmente construídos e já então falidos.
A representação das incongruências corporais na mídia também é discutida por Jéfferson Balbino em Representações da transgeneridade na teledramaturgia brasileira, texto no qual o autor preza por explorar, no cenário televisivo do Brasil, a forma como personagens transexuais foram levadas à grande massa consumidora de telenovelas.
Como comenta Balbino, configurando-se enquanto veículo de grande influência cultural e política, a mídia televisiva tem capacidade de provocar reflexões em larga escala e revisões de aspectos culturais. É a partir desse pensamento que o autor analisa a figura de transexuais inseridas em três novelas, a saber: Tieta (1989), As filhas da mãe (2001) e A lua me disse (2005). Balbino pondera sobre questões de subversão de gênero, comicidade voltada ao tratamento dessas personagens e confusões comuns no tratamento dos conceitos de sexualidade e gênero.
Acerca da (in)visibilidade de subjetividades e corporalidades trans, os capítulos Da invisibilidade visível: o caso de Edmundo de Oliveira (Belo Horizonte, 1952-1981), de Luiz Morando; Travestis e transexuais brasileiras: ativismos e estratégias de resistências nos processos históricos de pessoas e coletivos organizados, de Adriana Sales, Herbert de Proença Lopes e Wiliam Siqueira Peres; e A invisibilidade das vivências não binárias das sexualidades e gêneros e a reivindicação do direito de aparecer: itinerários de uma pesquisa/viagem no cistema binário na educação, de José Augusto Gerônimo Ferreira e Leonardo Lemos de Souza, tecem reflexões sobre a forma como as manifestações de gênero e sexualidade, desviantes da norma cis-heterossexual hegemônica, são lançadas na marginalidade em uma tentativa de apagamento dessas vivências. Ao lançar foco sobre a experiência de vida de Edmundo de Oliveira, Morando traça um panorama do modo como a mentalidade patriarcal obriga Oliveira a jogar com a visibilidade e a invisibilidade de sua identidade, de modo a tentar encaixar-se na sociedade de sua época.
Da mesma maneira, Sales, Proença e Peres pintam um retrato das invisibilidades e violências que atingem as comunidades de travestis e transexuais, ao mesmo tempo em que essas coletividades resistem ao apagamento de suas histórias. O texto aponta para o fato de que, ao transitarem seus corpos, esses indivíduos tornam-se um desafio ao poder machista que deseja apagar suas histórias, negando o processo de desumanização desses corpos.
Já Ferreira e Souza lançam sua atenção para a academia ao discutirem a produção de conhecimento sobre transexualidades dentro da universidade, muitas vezes realizada através de um olhar cis-heteronormativo. A visão da academia explorada pelos autores é a de um ambiente no qual o progresso e o retrocesso de ideias comumente coexistem e acabam produzindo saberes construídos sob pontos de vista hegemônicos.
Em Ode à engenharia textual transvestigênere: uma leitura de Liberdade ainda que profana, de Ruddy Pinho, Cláudia Maria Ceneviva Nigro e Luiz Henrique Moreira Soares dissertam sobre a representação de transgeneridades e travestilidades dentro do discurso literário. A partir da escrita em tom memorialístico de Ruddy Pinho, vislumbramos o modo como a autora torna-se ela própria um sujeito de sua escrita ao desconstruir ideais de gênero, sexualidade e identidade única, reafirmando sua existência enquanto um corpo transgressor. A maneira como a escritora é retratada denuncia a instabilidade da identidade masculina e feminina dentro de um contexto sociocultural que caminha, ainda que vagarosamente, para uma configuração plural.
Por fim, em A busca pelo corpo perfeito: uma rápida autoetnografia e análise interseccional da intersexualidade, Carolina Iara de Oliveira discorre acerca das violências sofridas pelo corpo e pela subjetividade de pessoas intersexuais. No texto de Oliveira, os discursos social e médico são ponderados a partir da vivência do indivíduo, na qual misturam-se violências geradas por preconceitos não apenas relacionados à sua materialidade genital, mas também à sua sexualidade, raça e classe social. Oliveira traça assim um quadro bastante claro acerca da maneira como a interseccionalidade atua ativamente na tentativa de adequar os corpos aos padrões cis-heteronormativos.
A recolha de materiais dos mais diversos tipos e nos mais diversos meios, como documentos oficiais, novelas, vídeos de internet, livros e entrevistas, torna a coletânea uma prolífica fonte de informações e fornece uma relevante base para reflexões sobre a subjetividade e a corporalidade dentro da comunidade LGBT+, principalmente no concernente a travestis e transexuais. Os relatos que servem de base para as análises desenvolvidas nos capítulos são em algumas ocasiões apresentados pelas palavras do próprio indivíduo a vivenciar tais situações, permitindo um mergulho na subjetividade das/os entrevistadas/os e o surgimento de um sentimento de empatia por aqueles cujas experiências estão sendo tratadas.
Na obra Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades somos confrontados com corporalidades que não afirmam sua existência a partir de uma forma única de ser. Esses corpos posicionam-se enquanto elementos integrados política, social e culturalmente, ainda que empurrados à margem, em uma sociedade de base patriarcal hegemônica, na qual a valoração dos corpos dá-se através de um olhar cis-heteronormativo. Os modos artísticos de construção do corpo e de expressão do eu interior através das estruturas corporais abrem um horizonte no qual não encontramos apenas a violência comumente dispensada à comunidade LGBT+, mas também uma forma de arte e de enfrentamento do sistema limitante de binaridades homem/mulher.
Transitar, na obra, é mais do que apenas expressar uma individualidade e uma subjetividade latentes, é também transgredir as rígidas normas sociais, políticas e religiosas que vêm regulando o comportamento humano há milênios, em busca de uma expressividade sem restrições. Formada por textos de leitura acessível, diversas vezes utilizando vocabulário próximo ao comumente usado por membros das comunidades LGBT+, Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades configura-se como uma oportunidade de conhecimento e aprendizado, além de uma valiosa contribuição aos estudos corporais, aos estudos sobre gênero e sexualidade, bem como aos estudos LGBT+.
Notas
2. Utilizamos a sigla LGBT+ pelo fato de “LGBT” ser de uso mais corrente do que outras abreviações, como LGBTQI, por exemplo, e por considerar que o sinal de adição (+) indica a abrangência de todas as individualidades representadas por essa comunidade, como queer, intersexuais, assexuais etc. Dessa maneira a nomenclatura fica menos extensa.
Marco Aurelio Barsanelli deAlmeida1 – Possui graduação em Licenciatura em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2010). Desenvolveu estudo acerca do processo de adaptação fílmica de obras do escritor Neil Gaiman. Concluiu em 2015 o programa de graduação em Licenciatura em Letras com habilitação em Português-Italiano da Unesp Câmpus de São José do Rio Preto. Concluiu também em 2015 o curso de Mestrado, cujo foco de estudos foi a adaptação cinematográfica da figura do herói do romance Stardust (1999). E-mail: marcoaurelio_maba@hotmail.com
GOMES, Aguinaldo Rodrigues; LION, Antonio Ricardo Calori de (org.). Corpos em trânsito: existências, subjetividades e representatividades. Salvador: Editora Devires, 2020. Resenha de: ALMEIDA, Marco Aurelio Barsanelli de. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 12, n. 23, p. 197-203, jan./jun., 2020.
História e Teoria Queer | Miguel Rodrigues de Sousa Neto e Aguinaldo Rodrigues Gomes
O Livro História e teoria queer, organizado pelos historiadores Miguel Rodrigues de Sousa Neto e Aguinaldo Rodrigues Gomes e publicado pela editora Devires em 2017, de 391 páginas, é uma obra que reúne, adotando critérios bem simplificados e simplificadores, textos de duas naturezas. Na primeira parte, denominada Teoria queer e historiografia: contribuições e debates, é apresentado em termos gerais um panorama da produção historiográfica referente às temáticas dos sujeitos inseridos nas complexas identidades tlbqg+, tais como corpo, gênero, heteronormatividade, normalização, e ainda suas articulações com questões raciais em processos de interpelação. Na segunda parte, de nome As potencialidades dos estudos queer: corpo, performances e representações, são trazidos alguns estudos mais específicos referentes a alguma dessas individualidades ou grupos.
A primeira parte da obra começa com o texto de Miguel Rodrigues de Souza Neto, Rotas desviantes no oco do mundo: desejo e performatividade no Brasil contemporâneo. O autor inicia a reflexão lembrando a vinda ao Brasil, em novembro de 2017, da filósofa estadunidense Judith Butler para participar de um seminário organizado pelo Sesc Pompeia, intitulado “Os fins da democracia”, e toda a comoção social causada, naquela ocasião. Vale lembrar que ela é acusada de ser uma das fundadoras do que se convencionou denominar, no Brasil e em outras partes do mundo, de “Ideologia de gênero”. Aí está uma das marcas que o leitor encontrará em boa parte dos escritos na obra: a relação entre a discussão teórica e algumas questões contemporâneas que eclodem socialmente. Ao longo do texto o autor nos apresenta um histórico do desenvolvimento dos estudos relacionados à sexualidade e ao gênero, a partir de disciplinas e lugares específicos, em áreas como a antropologia e a sociologia, até serem encampados pelos estudos históricos. Também nos é apresentado um certo histórico da produção dos discursos a respeito dos sujeitos desviados daquilo que é denominado de heteronormatividade, que parte de uma aproximação simplificadora entre sexo biológico e performatividade de gênero, e que, portanto, tende a normalizar os sujeitos de maneira binária. Tais discursos seguem certo percurso: começam a ser produzidos sobre os sujeitos, sobretudo por parte do universo religioso e jurista, e com uma percepção pejorativa, e em algum momento passa a ser produzida também por esses sujeitos, na medida em que são inseridos no discurso por meio de estudos que lhes conferem protagonismo.
O segundo texto, Normatizar para normalizar: uma análise queer dos regimes de normalidade na historiografia contemporânea da homossexualidade, Bruno Brulon afirma que “a teoria queer propõe a desconstrução dos regimes de identidade na medida em que estes criam a marginalização dos sujeitos e seu consequente silenciamento”. Nesse sentido sua reflexão faz caminho parecido à anterior, na medida em que apresenta o que denomina regime jurídico-religioso, um regime médico, um regime psicológico e um regime epistemológico como sistemas explicativos que, hegemonicamente, marginalizaram e silenciaram. Daí a necessidade, segundo o próprio Bruno, de historicizar o queer, e de queerizar a história, na medida em que isso permita oferecer espaço e fornecer voz a sujeitos até então totalmente subalternizados.
Na sequência, em Cisgeneridade e historiografia: um debate necessário, Fábio Henrique Lopes segue a mesma linha de reflexão, valendo-se de autores como Michel Foucault e Judith Butler. Ele inicia apresentando um elemento interessante, que é o próprio domínio do gênero masculino da delimitação do que deve ser estudado ao longo da consolidação da disciplina histórica. A partir daí, mostra a relevância dos estudos feministas para a ocupação de espaço por mulheres no campo das ciências humanas, passando pela denominada História das Mulheres. Por último, a incorporação da abordagem de gênero pela própria história. O autor lembra ainda como foi fundamental a diferenciação entre identidade de gênero e orientação sexual na possibilidade de ampliação de atribuição de sentidos e nomeações de histórias, experiências, comportamentos, corporalidades, identidades e subjetividades.
Na sequência, como o texto Com o sangue de quem foram feitos os meus olhos? Uma reflexão feminista sobre corpos negros e tecnologias da visualidade, Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro reuniu as reflexões sobre teoria feminista e prática política às quais já dava andamento para a escrita a um evento impactante: o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Pedro Gomes. Novamente a obra conecta teoria e realidade social. Mas a estratégia central da autora no trabalho do texto é a utilização de fontes iconográficas, lançando mão de fotografias de amas- de leite com crianças brancas no colo, no Brasil do século XIX, e contrastando com a imagem da vereadora Marielle, com o slogan “Marielle presente”. As relações dos lugares reservados aos corpos ao longo do tempo, a presença ou não do racismo e as suas configurações, tudo isso recebe abordagem a partir de tais documentos e, evidentemente, de aparato teórico.
Em Outras histórias de Clio: escrita da história e homossexualidades no Brasil, Elias Ferreira Veras e Joana Maria Pedro refletem sobre a invisibilidade das figuras homossexuais na historiografia brasileira. Voltam a frisar como até a década de 1970, no Brasil, os registros sobre experiências homossexuais foram produzidos predominantemente pelos campos médico e policial, sendo raras as ocasiões nas quais o próprio sujeito produzia algum discurso sobre si. Lembram, a partir daí, a relevância da História das Mulheres, dos estudos de gênero, da figura de Foucault, como marcos para algumas alterações nesse sentido e, por fim, apresentam algumas produções no Brasil que resultam dessa mudança de perspectiva.
Fechando a primeira parte com Estudos queer na historiografia brasileira (2008-2016), Benedito Inácio Ribeiro Júnior realiza um inventário sobre tais estudos na historiografia recente e aponta a história como a área das ciências humanas que mais tempo demorou para inserir tais reflexões entre suas preocupações. Ele denomina a história, de maneira sarcástica, de “Tia velha”. A partir daí aponta para a relevância da interdisciplinaridade para que avanços ocorressem no sentido de abarcar outros sujeitos na historiografia, e por fim apresenta os ganhos por parte da própria disciplina histórica com a inclusão de certas temáticas.
A segunda parte do livro tem abordagens que visam romper com certa tendência contemporânea de identificação entre sexo e gênero, tendendo, portanto, a normalizar as subjetividades de maneira binária. Em Corpos migrantes: a presença da primeira geração de travestis brasileiras em paris, Marina Duarte procura analisar, como ela própria afirma, corpos que atravessam duas fronteiras fortemente estabelecidas: a do estado-nação e das relações de gênero. Para tanto a autora retorna à cidade de Paris antes da chegada das travestis, e procura compreendê-las também antes da ida a Paris. Quando as estuda lá, analisa inclusive como trafegam pelos espaços e, portanto, como elas o influenciam e são por ele influenciadas.
Na sequência, em Experiências trans: amizades, corpos e outros trânsitos, Rafael França Gonçalves dos Santos analisa, a partir de Michel Foucault, como a categoria da amizade poderia auxiliar na compreensão das sociabilidades homossexuais, sobretudo na formação de suas subjetividades e identidades ao longo da existência, já que a própria intervenção do corpo realizada por alguns deles necessita de identificação, apoio, laços estabelecidos. O autor insere na reflexão o conceito de rede, caro às formas de sociabilidade contemporâneas, assim como a questão da migração.
Em As “genis” representadas nas páginas do Lampião da Esquina, Débora de Souza Bueno Mosqueira realiza um estudo da importância das páginas desse periódico que circulou entre 1978 e 1981 para a construção de espaços de circulação de temas relativos à homossexualidade, integração dos gays em movimentos que defendessem seus direitos e denúncias relativas às violências cometidas contra homossexuais. A autora lembra, inclusive, de como mulheres foram incluídas na equipe do jornal a partir da pressão dos próprios leitores, em um processo dinâmico, e de como a mulher negra, brasileira e da periferia encontrou espaço em algumas de suas páginas.
Em Corpo anacrônico (sucedido por uma alegoria queer para as musas), Antonio de Lion lembra, parafraseando Carlos Alberto Vesentini, a dificuldade de um historiador ou historiadora para falar das lutas de agentes de um tempo que não é o seu. A partir daí, por meio de uma avaliação de como os estudos foram se desenvolvendo a partir, sobretudo, da interdisciplinaridade, desemboca na afirmação de que a contribuição dos estudos queer consiste justamente na capacidade que eles têm de promover uma ampliação dos olhares aos corpos que importam, para que, em algum momento, se possa compreender que todos os corpos importam.
Na sequência Kauan Amora Nunes, em O que Queer tem a ver com as calças: uma análise histórica do conflito entre críticas marxista e queer, nos apresenta uma relação, em geral no mínimo intranquila, entre estudos marxistas de um lado, que em geral entenderam que questões referentes a etnia ou gênero seriam menores se comparadas à questão da luta de classes, e a bibliografia queer do outro, que evidentemente critica a percepção marxista por lhe reduzir o nível de importância. O autor lembra, no caso brasileiro, da controversa relação entre o próprio PT, com orientações iniciais do marxismo, e a questão da homossexualidade.
Em “Vai malandra…seu corpo é instrumento [contra] violento”: Figurações da marginalidade no filme “A Rainha Diaba” (1973), Robson Pereira da Silva busca compreender em que medida a arte da década de 1970 pôde responder, com figurações de corpos marginais, às lesões efetuadas pelo Estado autoritário configurado na ditadura militar no Brasil, que vigorou entre 1964 e 1985. A partir disso o autor trabalha com possibilidade de ler, nas obras de arte, uma possível contraviolência praticada por uma diversidade de figuras da classe artística nacional.
Fechando a obra Aguinaldo Rodrigues Gomes e Peterson José de Oliveira, em Erosão das masculinidades e dos discursos marginais no app Grindr, buscam compreender a configuração das identidades e subjetividades de sujeitos que interagem nas redes sociais. A chamada heteronormatividade dominante se aplica, evidentemente, nos espaços virtuais, e a análise dos autores se realiza na busca de compreender até que ponto, em um aplicativo mais específico para um público homossexual, os sujeitos conseguem romper com tais parâmetros de visão de si e dos outros e até que ponto permanecem enredados na teia de representações hegemônicas.
A obra, a meu ver, pela multiplicidade de referenciais teóricos e de abordagens metodológicas sobre uma diversidade de temas pertinentes, é objeto valioso para aqueles que se dedicam a objetos teóricos que estejam nas fronteiras do que é tratado no livro, assim como para aqueles que, no mínimo, queiram ampliar sua compreensão sobre a complexa formação das subjetividades nas sociedades contemporâneas.
Cássio Rodrigues da Silveira – Possui graduação em Filosofia, mestrado em História e doutorado em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Atualmente leciona Filosofia no Instituto Irmã Teresa Valsé Pantellini, da Rede Salesiana de Escolas.
SOUSA NETO, Miguel Rodrigues de Sousa; GOMES, Aguinaldo Rodrigues (Org.). História e Teoria Queer. Salvador: Devires, 2018. Resenha de: SILVEIRA, Cássio Rodrigues da. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 11, n. 22, p. 256-259, jul./dez., 2019.