Androphilia: a manifesto. Rejecting the gay identity, reclaiming masculinity – MALEBRANCHE (CP)

MALEBRANCHE, Jack. Androphilia: a manifesto. Rejecting the gay identity, reclaiming masculinity. Baltimore, Scapegoat, 2006. Resenha de:  GÓIS, João Bôsco Hora. Novos, antigos e diferentes backlashes. Cadernos Pagu, Campinas, n.32, Jan./Jun 2009.

Em Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres, Susan Faludi (2001) faz uma ampla exposição das críticas dirigidas ao movimento feminista nas últimas décadas. Ali ela elenca os argumentos, estratégias e atores empenhados na defesa do que seria uma ordem “natural” dos gêneros e na reversão das conquistas obtidas por aquele movimento. Em uma eventual revisão de sua obra, Faludi poderia considerar a inclusão de determinados segmentos da comunidade gay americana no rol dos detratores do feminismo. Esses segmentos vêm se empenhando em mostrar como a relação entre o movimento feminista e o movimento homossexual tem sido prejudicial ao segundo. Um dos aspectos mais negativos dessa relação seria a suposta adesão do movimento gay às formulações feministas que advogam que a masculinidade só se torna aceitável como algo a ser desconstruído, o que reforçaria uma tendência à efeminação dos homossexuais. O livro aqui examinado – Androphilia: a manifesto. Rejecting the gay identity, reclaiming masculinity – escrito por Jack MaleBranche, dá seguimento a essa tendência analítica.

A par das críticas que dirige ao feminismo e feministas, Malebranche dedica a maior parte de seu livro à reprovação, na verdade, à derrisão do que considera um comportamento social e político impróprio por parte dos homossexuais. As suas considerações sobre isso podem ser agrupadas em dois blocos.

O primeiro refere-se ao desempenho dos grupos gays organizados e à política de identidade associada às suas práticas. O autor afirma que a agenda desses grupos é anacrônica, composta por demandas de pouca importância e que serve apenas para esconder a ausência de necessidade de sua existência. Sobre isso, diz que

(…) se os que hoje defendem os direitos dos gays estivessem realmente preocupados com a opressão verdadeira, eles concentrariam seus esforços na criação de programas de asilo político para homossexuais de países muçulmanos que são constantemente executados ou forçados a submeterem-se a injeções de testosterona. Ao invés de lutar contra a opressão verdadeira, eles se ocupam de combater inconveniências cotidianas (67).1

Malebranche afirma, também, que o movimento gay opera um discurso vitimista que pouco instrumentaliza os homossexuais a lidarem com o que considera “dificuldades eventuais” que encontram ao longo da vida em função da sua orientação sexual. Igualmente, segundo o autor, esse movimento reitera padrões de segregação pouco desejáveis e aprisiona os homossexuais em um mundo de fantasias políticas, psicológicas e sexuais. Para ele,

A comunidade gay, ao separar e colocar em quarentena e em guetos os homossexuais, priva-os de modelos masculinos saudáveis. Ela cria os seus membros a partir de uma concepção feminista equivocada do que seja a masculinidade, ao mesmo tempo em que os priva de figuras paternas que vai desafiá-los, exigir mais deles, requerer que eles se comportem de acordo com um padrão superior – um ideal masculino – e inspirá-los a tornarem-se homens.2

Dessa segregação resultaria também a dificuldade de criação de códigos morais capazes de regular as interações entre gays e entre eles e homens heterossexuais. Na ausência de uma moralidade codificada, inclinam-se aqueles para “promiscuidade sexual, uso de drogas, alcoolismo e comportamento adolescente” (78).

Ainda em relação à política, vale lembrar que para Malebranche o discurso do movimento gay e a construção de uma política de identidade conduzem à associação indevida e desnecessária com outras minorias (negros, mulheres, povos indígenas, etc.) e à homogeneização artificial dos homossexuais. Tal homogeneização, por sua vez, reforça um tipo de percepção pública sobre estes – promíscuos, pouco afeitos à liderança, instáveis, etc. – que ele, acertadamente, considera injusta. Entretanto, Malebranche não problematiza essas percepções, tampouco indaga a forma como foram constituídas, seu caráter repressor ou sua associação com princípios extremamente conservadores em relação à expressão sexual. Ao invés disso, no segundo bloco de considerações, as associa às condutas sociais dos homossexuais, notadamente um suposto hedonismo exacerbado. Aqui, o alvo privilegiado são os “afeminados” – descritos como simulacros tanto de homens de “verdade”, quanto de mulheres, culpabilizando-os pelas dificuldades de aceitação encontradas pelos gays na sociedade americana.

A tendência de um segmento dos intelectuais gays em acusar determinados “tipos” de homossexuais pelas dificuldades de aceitação da homossexualidade nos Estados Unidos não é um fenômeno novo. Como lembra Califia (1992), já na década de 1970 assistiu-se a uma propensão entre organizações gays em condenar os adeptos/as do sadomasoquismo pelo que eles/as confirmariam de um diagnóstico negativo sobre a saúde mental de indivíduos homoeroticamente inclinados. Os adeptos do sadomasoquismo também não foram bem-recebidos quando da formação das organizações homossexuais voltadas à luta contra a aids, tendo sido, por razões semelhantes, gradativamente afastados dos cargos mais visíveis (Patton, 1997). Os “efeminados” têm sido um alvo preferencial dessa tendência, a qual, no afã de obter aprovação social, produz um quase linchamento moral dos “desviantes de gênero”, conforme examino em outro trabalho (Góis, 2004). Assim, nesse particular, o livro de Malebranche não é nada inovador.

No cerne da proposta do autor está a idéia de divisão entre gays e o que ele chama de “andrófilos”. Estes, uma quase proxy dos heterossexuais, deles se diferenciariam “apenas” por desejarem os seus corpos e, ao mesmo tempo, aderirem a um conjunto de valores – autoconfiança, independência, responsabilidade pessoal, conquista, integridade, respeito e honra masculina – supostamente pouco estimados pelos gays. Ao abraçar cada vez mais esses valores, em um processo de evolução natural, os “andrófilos” se recivilizariam nos termos de Elias (1993) e, finalmente, veriam assegurada uma desejada aceitação social. Para tanto, contudo, eles devem lutar pela ocupação de um lugar cultural e político diferente daquele ocupado pelo movimento gay e pelos homossexuais:

Chegou o momento dos homens másculos que amam outros homens se dissociarem da comunidade gay que não representa os seus interesses ou valores. Chegou o momento de apagarmos a antiga acusação de efeminação, rejeitando uma identidade gay limitadora e demandando nosso lugar de direito entre a confraria dos homens. Na época de tolerância em que vivemos, há uma grande oportunidade para aqueles que criticam a cultura gay de encontrar uma nova subcultura baseada na masculinidade tributaria da rica história da própria cultura masculina e não como simples componente da cultura gay. Encorajados e inspirados por valores masculinos testados ao longo do tempo, é dessa forma que poderemos alcançar nosso potencial verdadeiro como homem e ganhar o respeito e admiração dos nossos pares do sexo masculino (21).3

Nesse processo, descrito em tom quase religioso, os afeminados deveriam ser remetidos a um lugar específico, próprio, mas distante dos andrófilos, considerados homossexuais “normais”. Sem reservas, ele expõe seu ponto de vista:

É imperativo se distinga os andrófilos dos homossexuais que acham a identidade gay e cultura gay afeminada interessantes.Chegou o momento de remover o qualificador “gay” daqueles homens que, exceto pela atração por outros homens, não têm qualquer coisa em comum com os gays. Chegou o momento de parar de forçá-los a se auto-denominarem de homens gays e simplesmente permitir que eles sejam homens (62).4

A leitura de Malebranche encerra uma série de pressupostos que vale a pena destacar. O primeiro deles é que nos EUA, e a rigor em boa parte das sociedades ocidentais, os homossexuais vivem em um clima de liberdade tal que torna desnecessárias as políticas de identidade, assim como a agenda corrente dos movimentos sociais relacionados às liberdades sexuais e de gênero. O espaço dessa resenha é insuficiente para uma ampla contestação desse diagnóstico, mas vale lembrar o recente estudo de Pascoe (2007), que mostra como raça, gênero, classe e orientação sexual interagem para criar um ambiente extremamente hostil e violento contra jovens homossexuais no sistema de ensino médio americano. Ainda no campo educacional, o relatório da Humans Right Watch (2001) destaca como a violência contra gays, lésbicas e transgêneros adolescentes naquele país é recorrentemente impetrada nas escolas por colegas, professores e técnicos educacionais, levando a altas taxas de absenteísmo, depressão, abuso de substâncias químicas, comportamentos sexuais de risco, fugas de casa e suicídios.

O segundo pressuposto é o da irrelevância da orientação sexual na diferenciação social das pessoas. Dessa forma, a única distinção importante entre homens gays e heterossexuais seria a paternidade mais acessível aos segundos do que aos primeiros. Esquece ele, contudo, que a produção das masculinidades heterossexuais se dá justamente através da negação peremptória das homossexualidades e que essa negação se desdobra, com grande freqüência, em ações de exclusão, violência e mesmo eliminação física de gays, lésbicas e transgêneros.

A esses dois pressupostos agrega-se um terceiro que atravessa a maior parte das discussões presentes no livro: a crença de que masculinidade e feminilidade são fenômenos naturais associados à anatomia e fisiologia humana a qual faz com que os homens sejam mais agressivos e objetivos. Assim, ele desconsidera as variações relativas aos significados e às expectativas de comportamento e compleição física masculina em diferentes épocas e lugares, como bem estudado por Mclaren (1997), particularmente na sociedade estadunidense, conforme examina Kimmel (1996).

Em outro trabalho (Góis, 1998), analisei como a epidemia de aids nos EUA desencadeou a produção de uma série de escritos que se ocupavam em prescrever uma lista – às vezes risível – de condutas a serem adotadas por homossexuais, de modo a garantir sua aceitação mais plena na sociedade americana. Ao apresentar sugestões que considera úteis para reclamar uma masculinidade perdida, Malebranche dá continuidade a essa tradição – entre elas, abandonar os comportamentos estereotipados e afeminados; reduzir o consumo de trabalhos interpretados por divas da música pop; assistir gêneros de filmes que os heterossexuais comumente apreciam; adotar um ideal masculino; distanciar-se do universo de influências femininas e fazer amizades com homens heterossexuais. Aqui, ele tenta esboçar uma pedagogia do corpo e do comportamento homossexual que ressoa bem com as tecnologias de controle de gênero reinventadas todo o tempo na sociedade americana. Tais tecnologias têm alcançado um alto grau de sucesso na modelação de um campo extremamente normativizado em termos estéticos, por exemplo, para homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais. No caso dos homossexuais, esse processo não foi produzido apenas de fora para dentro. A própria comunidade homossexual vem se incumbindo de produzir normatividades corporais, talvez em uma magnitude e extensão superior àquela impingida a homens e mulheres heterossexuais (Góis e Soliva, 2008). Malebranche capta bem esse processo em um dos poucos momentos de lucidez intelectual do seu livro.

Também não se pode deixar de reconhecer outras interpretações importantes presentes no seu trabalho, a exemplo da hipermasculinização das homossexualidades e de um tipo de consumo do corpo heterossexual, análogo ao consumo do corpo feminino por homens heterossexuais. A tendência ao consumo conspícuo também é outro aspecto bem salientado por ele, algo claramente visualizado nas publicações do segmento nos EUA, no Brasil e em vários outros países. O fato de Malebranche captar e criticar fenômenos tão importantes (às vezes, valendo-se da terminologia presente nos estudos mais críticos da homofobia e misoginia) e, ao mesmo tempo, examiná-los em uma chave analítica claramente conservadora constitui um bom exemplo da complexidade das batalhas culturais e políticas em torno da sexualidade, do corpo e do direito às diferenças, atualmente. Essas batalhas se expressam em discursos que, muitas vezes, se confundem e confundem e, portanto, se colocam como armadilhas nas quais mesmo setores mais progressistas podem vir a cair. Desnecessário dizer o perigo disso para a produção de novos backlashes.

Referências

CALIFA, Pat. Public sex. The culture of radical sex. Pittsburgh, Cleis Press, 1994.         [ Links ]

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. 2 volumes. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1993.         [ Links ]

FALUDI, Susan. Backlash. O contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres. Rio de Janeiro, Rocco, 2001.         [ Links ]

GÓIS, João Bôsco Hora. A Conservadorização do Discurso Anti-Aids nos Estados Unidos. Revista Serviço Social e Sociedade, nº 58, 1998.         [ Links ]

______. Revolta de Stonewall. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX. As grandes transformações do mundo contemporâneo. Rio de Janeiro, Record, 2004.         [ Links ]

HUMAN RIGHTS WATCH. Hatred in the hallways: violence and discrimination against lesbian, gay, bisexual, and transgender students in U. S. schools. New York, Human Rights Watch, 2001.         [ Links ]

KIMMEL, Michael. Manhood in America. A cultural history. New York, The Free Press, 1997.         [ Links ]

MCLAREN, Angus. The trials of masculinity. Chicago, Chicago University Press, 1997.         [ Links ]

MALEBRANCHE, Jack. Androphilia: a manifesto. Rejecting the gay identity, reclaiming masculinity. Baltimore, Scapegoat, 2006.         [ Links ]

PASCOE, C. J. Dude, You’re a Fag: Masculinity and Sexuality in High School. Berkeley, University of California Press, 2007.         [ Links ]

Notas

1 (…) if gay advocates today were truly concerned about real oppression, they’d be concentrating their efforts on political asylum programs for homos in Muslim countries, where accused homosexuals are still routinely executed or forced, foolishly, to submit to testosterone injections. No, instead of fighting real oppression, they concern themselves with fighting inconvenience.
2 By separating gay men from other men and quarantining them in ghettoized gay culture, the gay community deprives its males of productive masculine roles models. It mothers its boys according to a misguided feminist understanding of masculinity, but deprives them of father figures who will challenge them, demand more from them, hold them to a higher standard – a masculine ideal – and inspire them to become men.
3 The time has come for masculine men who love men to break away from politically charged gay community that does not represent their interests or values. It is time for us to wipe away the age-old smear of effeminacy by rejecting the divise, limiting gay identity and to reclaim our rightful place among the brotherhood of men. In this age of tolerance, there is ample opportunity for those critical of gay culture to found a new subculture based on masculinity, not as a mere subset of gay culture but in tribute to the rich history of masculine culture itself. Emboldened and inspired by time-tested masculine values, it is in this way that we can reach our true potential as men and earn the respect and admiration of our male peers.
4 Those men who experience androphilia must be distinguished from those who find effeminate gay culture and the gay identity appealing. It is time to remove the gay qualifier for those men who have nothing in common with gays but homosexual desire. It s time we stop forcing them to call themselves gay men and simply allow them to be men

João Bôsco Hora Góis – Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Política Social da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do CNPq. E-mail: jbhg@uol.com.br.

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