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Globalização e as consequências humanas / Zygmunt Bauman
O livro “Globalização e as consequências humanas” é um livro de perguntas e não de respostas. Não é intenção de Zygmunt Bauman dar respostas ou fazer previsões das condições contemporâneas de nossa civilização. Nas palavras do autor este livro é: “… antes e acima de tudo, um exercício de formulação de questões e estímulos ao questionamento…”.
Há no livro uma proposta de ir além da semântica que permeia o senso comum quando este se refere ao termo globalização. Percebe-se uma proposta de tratar com clareza a condição humana na atualidade. Para isso o autor procura revelar as raízes, bem como as consequências sociais do processo globalizador.
A legibilidade e a transparência do espaço tornaram-se o grande desafio do Estado moderno para a soberania de seus poderes. A reorganização do espaço foi decisiva para a subordinação do espaço social. A necessidade de medir o espaço objetivamente para a arrecadação de tributos fez surgir à imposição de padrões de medidas obrigatórias. Isso impediu a outras medidas locais.
A estrutura espacial ao fim da guerra pelo espaço deveria além de ser completamente legível para o poder estatal, deveria estar livre de toda a semântica por seus usuários ou vítimas.
Segundo Bauman, o modelo do panóptico construído por Michel Foucault, apoia-se numa suposição semelhante, ou seja, por ser um espaço construído de propósito, com assimetria visual, ele permitia manipular conscientemente e rearrumar intencionalmente a transparência do espaço como relação social. Mas em vez de se embrenhar nos ideais panópticos, os Estados modernos optaram pelo mapeamento do espaço, ou seja, despojaram os habitantes locais de suas referências e meios de orientação e empreenderam uma guerra pelo espaço.
A procura da objetividade levou a introdução da noção de perspectiva. A noção de perspectiva está a meio caminho entre a visão de espaço firmemente assentada em realidades coletivas e individuais e seu posterior desenraizamento moderno. O olho do observador era o ponto e partida tal qual anteriormente, mas agora o olho humano era um olho impessoal, que se colocava em um determinado ponto para a observação, retirava se a força as qualidades do observador de homem social e colocava-o numa localização quantificável, culturalmente indiferente e impessoal.
Segundo Bauman, a concepção de perspectiva realizou um duplo feito, atrelou a natureza praxeomórficas da distância às necessidades da nova homogeneidade promovida pelo Estado moderno. A perspectiva ao mesmo tempo em que reconheceu a relatividade subjetividade dos mapas de espaço, simultaneamente neutralizou o impacto dessa relatividade. A busca da transparência e da legibilidade do espaço propiciou o surgimento da objetividade. E a objetividade significava impessoalidade.
Os mapas anteriormente registravam as formas do território. Na tentativa e dar mais legibilidade ao espaço, os territórios é que passaram a refletir os mapas. Tornou-se necessário remodelar ou modelar o espaço.
A visão utópica moderna foi a que mais se adequou a essa exigência. As cidades planejadas eram meticulosamente traçadas, todas foram resultado de planejamentos prévios, estrito e detalhado do espaço. Na busca da transparência do espaço das cidades planejadas, os utopistas modernos permitiram o futuro invadir o presente, em que a disposição lógica das cidades e da arquitetura criou as condições de transparência estabelecidas pela razão impessoal.
Bauman diz que tanto para os teóricos como para os praticantes a cidade do futuro era uma encarnação espacial da liberdade. Do ponto de vista da administração, era muito difícil intervir em uma cidade cuja história já estivesse assentada. Constituída de camadas históricas, as cidades palimpsesto não eram espaços cuja intervenção dos arquitetos pudesse alcançar o monopólio da arquitetura. Para estes utopistas a cidade ideal devia surgir do traçado das pranchetas, as realidades urbanas não estariam à mercê da história, mas na elegância da cartografia impessoal. Cada malha, cada rede social ocuparia o lugar previamente definido pelos planejadores.
Essa condição ideal sonhada para o monopólio da arquitetura modernista teve como principal representante Le Corbusier. Este proferiu uma sentença de morte as cidades existentes, para ele elas não eram funcionais, eram insalubres e ofendiam o senso estético. Para Le Corbusier, tanto a lógica como a estética pede clareza funcional a todos os aspectos da cidade. O espaço é separado de acordo com esta lógica, separam-se os locais com funções domésticos, com funções de trabalho, de lazer.
Esses grandes sonhos arquitetônicos, segundo Richard Sennet, “mostrou que uma cidade para ser boa deve dar às pessoas condições de assumir responsabilidades por seus atos numa sociedade histórica e imprevisível e não em um mundo onírico de harmonia e ordem predeterminada”. É preciso estar atento ao fato de que, antes de operar com os princípios da estética e da razão, os homens não se tornam bons seguindo as boas ordens ou os bons planos de outro. A responsabilidade só é desenvolvida com a alteridade ela precisa do desconhecido e da incerteza da diferença e variedade.
Existe Vida depois do Panóptico? Com essa pergunta Bauman traça uma leitura da metáfora mais perfeita, segundo ele, da transformação moderna, a moderna redistribuição dos poderes de controle. O modelo do panóptico não permite um espaço privado livre de controle. As técnicas panópticas que desempenharam um papel crucial na passagem dos mecanismos de integração de base local, para a integração supralocal não são mais suficientes para explicar a percepção da natureza da mudança atual. Os desafios de hoje são diferentes, não se baseiam no propósito de instalar a disciplina, a igualdade, a fixação do espaço, ao contrário do panóptico, que tem essas premissas como objetivos a serem alcançados. O panóptico serviu ao poder moderno, pois o mesmo preferia a sombra e não o espetáculo, como na pré-modernidade.
Bauman faz uma diferenciação entre o poder panóptico e pós panóptico. Para isso ele faz uma diferenciação entre Banco e dados e o panóptico.
O banco de dados, que para alguns seria uma espécie de panóptico, é tratado por Bauman como uma versão diferenciada, na verdade as semelhanças entre panóptico e banco de dados são superficiais. Enquanto o panóptico laçava seus internos e exigia uma conduta monótona e rotineira, o banco de dados registra os consumidores dignos de crédito. O panóptico era uma arma contra a diferença, a opção e a variedade; o banco de dados trabalha com empresas de crédito que consulta seus arquivos para confirmar a credibilidade do cliente. A principal função do panóptico era garantir a permanência do indivíduo no espaço vigiado. Para o banco de dados, quanto mais informações sobre você, mais livremente você pode circular, ele é um veículo de mobilidade, desde que se seja aceito.
No mundo pós-panóptico, Bauman, a partir de Mathiesen identifica uma nova forma de poder, em que é invertida a relação de poucos vigiarem muito, denominado de Sinóptico.
Ao contrário do panóptico, um estabelecimento local, que com suas regras objetivava a imobilização e, a vigilância visava impedir movimentos autônomos e erráticos, o Sinóptico é global, transporta-se o tempo todo pelo ciberespaço. Os alvos do sinóptico deixam de ser os vigiados e passam a ser os vigilantes. Mesmo parados fisicamente, eles viajam pelo ciberespaço. Enquanto o panóptico usa a força para vigiar, o sinóptico usa a sedução para a vigilância.
O autor se propõe a compreender essas transformações da condição humana a partir do binômio tempo/espaço. Para Bauman, a compreensão da relação cambiante tempo/espaço evidencia as causas e as consequências da transgressão em que o tempo moderno se tornou, antes e qualquer coisa, uma arma na conquista do espaço. “Na moderna luta entre tempo e espaço, o espaço era o lado sólido e impassível, pesado e inerte, capaz apenas de uma guerra defensiva, o espaço era uma obstáculo ao avanço do tempo. O tempo era o lado dinâmico e ativo, a força invasora conquistadora e colonizadora.”
Na modernidade líquida as principais técnicas do poder são agora a fuga, a astúcia, enfim a rejeição a qualquer confinamento territorial. Mover se leve e não mais se aferrar às coisas por sua confiabilidade e solidez é hoje recurso de poder. Fixar se ao solo não é tão importante se o solo pode ser alcançado e abandonado a qualquer momento, à vontade. Assim, fixar-se muito fortemente, estabelecer vínculos pode ser prejudicial dada à possibilidade de oportunidades surgirem em outros lugares. Segundo o autor, é a velocidade atordoante da circulação, da reciclagem, do envelhecimento, do entulho o que traz o lucro hoje, e não a durabilidade e confiabilidade do produto como na modernidade pesada. O poder é cada vez mais móvel, leve e fluido, por isso ele precisa ter liberdade de fluir, o mundo deve estar livre de cercas, qualquer rede densa de laços sociais enraizada em um território é um obstáculo a ser eliminado.
Os capitalistas e os corretores da modernidade recente encontram poucos limites remanescentes para a circulação livre do capital. O capital não fixa raízes territoriais, ele não busca a alteridade. Ao contrário, o capital sendo flexível pode se locomover para uma estrutura mais suave. Na modernidade líquida, o capital não luta para minar resistências, ele se move em favor de uma necessidade menos dispendiosa e cansativa. Ele evita o confronto.
Sem determinação espacial, sem necessidade de localidade para investir, o capital não tem responsabilidade com as consequências sociais, há uma desconexão entre o poder e a localidade. Não há responsabilidade com as consequências sociais, há uma espécie de não obrigação do poder com as obrigações sociais. O capital é livre da obrigatoriedade de contribuir com a perpetuação da comunidade, e com a vida cotidiana da mesma. Sem amarras e sem obrigações o capital flutua livremente, “os custos de se arcar com as obrigações não precisam, agora, ser contabilizados”.
Segundo Bauman, a velocidade do movimento e o acesso a meios mais rápidos de mobilidade chegaram aos tempos modernos à posição de principal ferramenta do poder e da dominação. No mundo atual, denominado pelo autor como modernidade líquida, as condições sociais, sob as quais a política e a vida são levadas, pressupõem um arranjo no qual há uma mudança radical nas formas e convivência humana, pois o esforço para acelerar a velocidade do movimento chegou ao seu limite. O poder pode se mover com a velocidade de um sinal eletrônico. O tempo tornou se instantâneo. O poder é agora extraterritorial, não mais limitado e nem desacelerado pela resistência do espaço. As pessoas que operam as alavancas do poder podem se livrar do alcance a qualquer momento, elas são voláteis, elas vivem a experiência da não terrestrialidade, elas não precisam de nenhuma ligação com seu ambiente terrestre para formar ou fundamentar seu poder. O que elas precisam é isolar-se da localidade, que na modernidade líquida está despojada de significado social, a localidade é reduzida a mero espaço físico.
A desterritorialização do poder caminha lado a lado com a estruturação cada vez mais estrita do território. Assim a extraterritorialidade da elite supra-local se serve dos espaços proibidos para se isolar materialmente e corpórea em relação à localidade. Os espaços proibidos, espaços que não podem ser confortavelmente ocupados, não podem ser utilizados de forma despercebida, se tornam fisicamente inacessíveis para aqueles que não disponham de senhas de entrada. Desse modo a cidade vai se tornando um aglomerado de espaços proibidos, os espaços em que as pessoas se encontram face a face vão sendo desintegrados, as ágoras estão cada vez mais restritas. Os espaços públicos estão sendo suplantados por espaços de produção privada.
A elite paga pela sua segurança, os que não têm condições de pagar são guetoizados, e no processo de guetoização eles também erguem suas placas de “não ultrapasse”, seja ela pela vestimenta, atitudes e desafios à lei e a ordem. O espaço urbano torna-se um território semelhante a um campo de batalha de motins internos. A nova fragmentação do espaço da cidade, o encolhimento do espaço público, a desintegração da comunidade urbana, a segregação e a extraterritorialidade da nova elite são realidades na definição do espaço na modernidade líquida.
Ao contrário da extraterritorialidade da elite, há a territorialidade dos outros, segundo Bauman estas pessoas estão confinadas a uma espécie de prisão. A localidade, além de produzir a imobilidade, no mundo da alta velocidade imobiliza o indivíduo, despoja o território do espaço público, não permite a criação de normas, não há confrontação e nem negociação de valores. Os veredictos podem se tornar desligados da vida local. A vida local, confinada é invadida pelas determinações extraterritoriais, elas aparecem de forma caricatural expropriando os poderes éticos dos habitantes locais, despojando-os de todos os meios para limitar o dano. A localidade no mundo global significa amarras, significa sofrer consequências danosas de um processo de exclusão do espaço criado pelo ciberespaço. Não há espaço para opiniões locais.
A exemplo disso estão às redes da WEB, a elogiadíssima interatividade do novo veículo é um exagero. A rede de interatividade não é para qualquer um, e jamais virá a se abrir totalmente para qualquer um. Os que participam da rede são da elite internacional, sistematicamente das camadas sociais mais elevadas, com poder na vida política, na indústria privada e na burocracia estatal, além dos intelectuais. Porém, mesmo aqueles que têm acesso são obrigados a escolher entre um provedor e outro, entre um pacote e outro. Os que não têm acesso à rede são abandonados às redes de TV sem qualquer simetria na relação entre os dois lados da tela cabem a eles a observação da vida dos poucos vigiados do Sinóptico, as celebridades.
No sinóptico os locais observam os globais, os globais não pertencem ao mundo dos locais, mas eles se encontram pelas telas de TV, os globais são admirados e tem o estilo de vida cobiçado pelos locais. Os ecos do encontro abafam os sons locais que são refletidos pelos muros da localidade revelando e reforçando a impenetrável solidez.
Eloísa Pereira Barroso – Professora Adjunta do Departamento de História da UnB.
BAUMAN, Zygmunt. Globalização e as consequências humanas. [?] Resenha de: BARROSO, Eloísa Pereira. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.19, p.78-83, ago./dez., 2011. Acessar publicação original. [IF].