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Deleuze e Guattari: uma filosofia para o século XXI | Antonio Negri
Antonio Negri | Foto: Christian Werner e Alexandra Weltz
Textos de Antonio Negri, marcados por intensos diálogos com o trabalho de Gilles Deleuze e Félix Guattari, bem como entrevista concedida pelo próprio Negri a Jeferson Viel, caracterizam este livro como uma notável radiografia histórica da incessante transformação do pensamento filosófico.
A partir do “Prefácio”, e mais especificamente, no decorrer da apreciação do Capítulo “Gilles-felix”, constata-se, com interessantes nuanças de sensibilidade, que, além de inspiração e parceria profissional, Negri encontrou em Deleuze e Guattari um fundamental suporte de natureza pessoal. A dinâmica da convivência dessa distinta tríade de filósofos, expõe laços de amizade fortalecidos essencialmente, a partir do apoio dispendido a Negri (de modo singular por Deleuze) durante seu exílio na França, em consequência de perseguições políticas sofridas em solo italiano. Certamente, louváveis peculiaridades da carreira de Negri, a exemplo de seu estilo de escrita, foram forjadas a partir da lealdade apreendida no que ele próprio retrata: “a arte de escrever a quatro mãos”. Tal habilidade foi por ele inauguralmente experimentada durante a concepção do livro As verdades nômades, em conjunto com Félix Guattari. Negri conta, com provável saudosismo, que a época compartilhada com seus companheiros guardava dias de infindáveis discussões sobre política, direito, modelos sociais disfuncionais e a latente necessidade de alterar ideais solidificados de há muito. O respeito mútuo existente entre amigos tão generosos uns com os outros, torna evidente que ambos não hesitariam em contribuir mutuamente, com suas épicas jornadas, nos rumos inquietantes daquela que lhes é uma obsessão: a filosofia. Leia Mais
Contra o juízo: Deleuze e os herdeiros de Spinoza – HEUSER (ARF)
HEUSER, E. M. D. (Org.). Contra o juízo: Deleuze e os herdeiros de Spinoza. Curitiba: Appris, 2019, 207p. Resenha de: MENEGHATTI, Douglas. Aufklärung – Revista de Filosofia, João Pessoa, v.7, n.2., p.131-136, mai./ago., 2020.
O livro é uma coletânea de textos escritos por 17 autores, organizados pela Prof. Ester Heuser, que se apresenta como um movimento de insurreição à doutrina do juízo. Para contrapor-se ao juízo são chamados à cena os filósofos que Deleuze nominou de “herdeiros de Spinoza”: Nietzsche, D. H. Lawrence, Kafka e Artaud. Conforme sugere o subtítulo presente na Apresentação, esses “herdeiros” podem ser considerados “cavaleiros do apocalipse ao revés”, cujo empreendimento é vencer o juízo, através de uma batalha libertadora que visa restabelecer o devir criativo, contrapondo o sistema transcendente do juízo à existência. Muitos são os tremores e temores daqueles que se opõem aos ‘castigos’ oriundos dos julgamentos sacralizados pela própria história, entretanto, como contrapartida, o livro deixa bem claro que o único caminho é resistir e lutar.
A menção ao apocalipse nos remete ao último livro do Novo Testamento da Bíblia cristã, mais especificamente a um texto de João de Patmos no qual é consumada a escatologia do juízo final da doutrina de salvação da cristandade. A profecia teleológica presente no apocalipse transforma o Cristo amoroso dos evangelhos em um Cristo vingativo, onde a justiça divina se torna preponderante sobre a misericórdia, por meio de um julgamento definitivo em que prevalece o ressentimento contra o pecado e todos os deleites de uma ‘vida profana’1. Para contrapor a visão determinista do apocalipse são apresentadas contundentes reflexões dos “cavaleiros do apocalipse ao revés”, numa perspectiva que leva o leitor desde a compreensão do livro de João de Patmos até a crítica ao mesmo, com uma visão de Deleuze-Lawrence.
Lawrence chega a duvidar que o evangelho de João e o Apocalipse tenham sido escritos pela mesma pessoa. Pois no Evangelho se encontra um Cristo afável e amoroso, enquanto no Apocalipse um Cristo rancoroso e vingativo (LAWRENCE, 1990, p. 2022).
Essa dicotomia levou Anna Lorenzoni et al, autores do capítulo: “Lawrence e Deleuze entre apocalipses: o julgamento final e o final do juízo”, a acentuar a conclusão de Lawrence: “João, o apocalíptico, trabalha imerso no terror e na destruição, fundamentando sua profecia em uma mescla infesta de ameaça e pânico; enquanto João, o evangelista, seguia de perto Jesus, trabalhando o amor humano e espiritual” (p. 117).
Teria então João de Patmos distorcido a doutrina de seu grande mestre Jesus de Nazaré? Para Lawrence, essa parece ser uma conclusão inevitável, uma vez que o “patmismo” se aproxima muito mais do antigo Judaísmo e do Paganismo do que dos Evangelhos.
Contra o juízo é um livro primoroso para quem deseja se iniciar na leitura da filosofia da imanência, haja vista que traz a tona, de forma original, uma perspectiva acerca dos herdeiros de Spinoza, numa conotação de combate ao transcendente e busca pela imanência que se revela nos encontros trazidos pelos autores do livro. No que tange a questão do juízo, ou “juízo de Deus”, como prefere Deleuze, o livro é relevante àqueles que desejam um estudo pormenorizado da questão, ou mesmo, adentrar na temática. Organizado em 4 partes, o trabalho começa com uma reflexão sobre a herança de Spinoza e uma análise da doutrina do julgamento na tragédia grega (Parte um: Juízo e Tragédia), passando por uma análise dos herdeiros de Spinoza e suas lutas contra o juízo nas partes dois e três (Os herdeiros de Spinoza e Contra o Juízo: a luta de Nietzsche, Lawrence, Kafka e Artaud, respectivamente) e finaliza com a apresentação de formas de contrapor a existência ao juízo (Parte quatro: Existências contra o Juízo) .
Presente na história desde a tragédia grega, o juízo se impõe como fundamento sagrado da praxis humana, uma vez que subjaz ontologicamente a qualquer ato. Para Deleuze, a doutrina do juízo: “nos condena a uma escravidão sem fim e anula qualquer processo liberatório” (DELEUZE, 1997, p. 195). A consciência de dívida como alerta constante que antecede a ação coloca todos os viventes sob a égide da doutrina de julgamento, ceifando o “processo liberatório” ao qual se refere Deleuze, os indivíduos se tornam prisioneiros de suas consciências, num processo em que a dívida é selada ontologicamente numa consciência pré-reflexiva.
Nesse processo, cuja ação é seguida pelo julgamento, transparece um estado constante de vigilância e culpa, que pode ser sintetizado pelas próprias palavras do Apocalipse: “Se não vigiares, virei a ti como um ladrão, e não saberás a que horas te surpreenderei”. (BÍBLIA, Ap, 3, 3).
A inspiração que fez germinar o livro Contra o juízo está no capítulo “Para dar um fim do juízo”, presente na obra Crítica e Clínica de Deleuze (1997). Nele o autor apresenta diligentemente os herdeiros de Spinoza que, justamente por terem padecido do juízo, conseguiram transpor o fardo do julgamento por meio de um combate altivo e corajoso que resultou na grandiosidade das obras destes pensadores. Ocorre que a oposição ao juízo é uma tarefa complexa, uma vez que está arraigada à psicologia do sacerdote: “a lógica do juízo se confunde com a psicologia do sacerdote como inventor da mais sombria organização: quero julgar, preciso julgar” (DELEUZE, 1997, p.144). O veredito do juízo atua como parâmetro subjacente a ação, proliferando uma realidade em que ser vítima, culpado, constrangido e pecador passa a fazer parte da “natureza” humana. A lógica do juízo, que estratifica a todos numa posição de submissão e expectativa por um polo transcende que possa servir de recompensa àqueles que se submetem a uma existência ignominiosa, não perfaz apenas o meio religioso e político em grande medida. Os próprios grandes sábios e pensadores, vulgo filósofos, se alimentaram um após o outro do socratismo e suas ramificações cristãs que ascenderam num polo transcendente em que conceitos petrificados serviram de âncora para a construção de ideais norteadores da existência. Situação que levou Nietzsche a conclusão de que “Em todos os tempos, os homens sábios fizeram o mesmo julgamento da vida: ela não vale nada” (GD/CI “O problema de Sócrates” § 1).
Vejamos, se contrapor ao juízo implica nada menos que se opor a uma ordem milenar que se arrasta desde o famoso julgamento de Orestes na antiga Grécia. Para Leandro Nunes, autor do capítulo “Spinoza: o mais feroz combatente às ordens transcendentes e ao juízo”, “O julgamento está intrincado nos modos de vida produzidos pelo homem ocidental, ao menos desde 458 a.C., quando Ésquilo apresenta sua tragédia Eumênides, em que monta o primeiro tribunal, tal como o conhecemos hoje” (p. 25). Na tragédia, Orestes é acusado de matricídio, no entanto, teria realizado este ato funesto para vingar a morte de seu pai, assassinado pela sua mãe. Como o julgamento termina empatado, a própria juíza Atena vota em prol do sentenciado, absolvendo-o.
No enredo, pesam a dor e a vingança de Orestes, a dor da perda do pai e a vingança reparativa contra a mãe, situação que constitui o que Deleuze (2005, p. 118) chamou de “processo de restituição de equilíbrio ou de compensação” renovado a cada desfecho que desencadeia novas reações de causa e efeito que tendem ao infinito.
O juízo de valor arraigado numa concepção moral da realidade nem sempre esteve presente nas tragédias gregas, porém com a construção de uma tirania da razão contra os instintos, protagonizada pela razão socrática apolínea, a espontaneidade e a embriaguez dionisíaca se esfacelaram frente a um novo poder esclarecedor da razão, que aos poucos se tornou a luz que ilumina e orienta o Olimpo – fazendo com que cada indivíduo se encolha frente ao comum, àquilo que a todos orienta e conduz ao caminho do ‘bem’2. Aliás, é praticamente inconcebível a construção de uma ética teleológica com vistas à felicidade, como pretendeu Sócrates e seus disseminadores, sem que o desregramento e a indeterminação dionisíaca sejam postas a prova. Para tanto, ascendeu a necessidade da individuação, para que cada qual possa ser julgado em seus próprios méritos e deméritos.
Associado às belas formas, Apolo é considerado o deus criador do Olimpo, através dele a existência torna-se suportável frente aos poderes titânicos da natureza.
Simbolizando as singularidades por meio do estado do sonho, Apolo traz a ordem ao caos. No entanto, no Nascimento da tragédia, Nietzsche apresentará o impulso apolínio como ilusório, uma vez que nega a multiplicidade da natureza por meio da afirmação do Principium individuationis, ou seja, transparece um estado de ofuscamento em que a realidade é representada a fim de se tornar suportável. Daí decorre a necessidade de emparelhamento dos impulsos antagônicos, de modo que o exagero e a fruição dionisíaca se descarregam sobre o equilíbrio e a moderação apolínea. Acerca desta relação, Heuser (p. 197), ao tratar da “Embriaguez e insônia” sintetiza: “[…] é a conjugação entre lucidez e a embriaguez, a união entre o apolíneo e o dionisíaco, a própria condição para que, no sentido deleuziano, o pensamento seja forçado a pensar – o que é sinônimo de criar, preocupação central da filosofia de Deleuze”.
Em Deleuze, toda a filosofia, arte e ciência se justificam na criação, que emerge da múltipla fluidez do devir. Nesse viés, não há espaço para o predomínio apolíneo ou para a exacerbação do espírito teórico em detrimento do dinamismo dionisíaco. Deleuze faz do filosofar uma atividade criativa ad infinitum, sem espaço para o SER oriundo da tradição platônica. Em sua construção filosófica, os universais não passam de criações que se escondem numa atemporalidade criada e, portanto, apolínea (ilusória). Seu pensamento rizomático é uma contundente negação do juízo: Oposto a uma estrutura, que se define por um conjunto de pontos e posições, por correlações binárias entre estes pontos e relações biunívocas entre estas posições, o rizoma é feito de linhas: linhas de segmentaridade, de estratificação, como dimensões, mas também linha de fuga ou de desterritorialização como dimensão máxima segundo a qual, em seguindoa, a multiplicidade se metamorfoseia, mudando de natureza (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 43).
A partir desta conotação de esfacelamento dos polos opostos que se sustentam dialeticamente na metafísica, a filosofia deleuzeguattariana rompe as raízes do juízo e seus efeitos não são mais capazes de produzir causalidade no mundo da praxis, isto é, a negação do juízo implica no resgate da embriaguez dionisíaca que afasta o dever moral e abre margens para a inocência. Para Nietzsche: O fato de que ninguém mais é feito responsável, de que o modo de ser não possa ser remontado a uma causa prima, de que o mundo não é uma unidade nem como sensorium nem como “espírito”, apenas isto é a grande libertação (grosse Befreiung) – somente com isso é restabelecida a inocência do viraser (Unschuld des Werdens) (GD/CI, Os quatro grandes erros, § 8).
Não havendo mais necessidade de ‘fazer culpados’ se apagam as relações de credor e devedor e, consequentemente, não faz mais sentido emitir julgamentos. Para Stefano Busellato, autor do Capítulo “Nietzsche além do limite de Deleuze: Das Gericht”: “Nietzsche desmascara e, com isso, põe fim ao juízo” (p. 67). Embora presente no mundo da vida em suas mais diversas manifestações, o juízo também é uma construção e, como tal, pode ser desterritorializado e reterritorializado. Disso depende o que Nietzsche mencionou como “grande libertação”, como caminho para o übermensch. Uma construção da realidade aquém do juízo, eis o que propõem os autores do livro em análise, obviamente não se trata da construção de um novo mundo e nem de uma utopia, talvez o seja, mas a efetividade da existência é tamanha que não caberia no espaço de um sonho.
Unificar as cores, os tamanhos, os sentimentos, as virtudes, enfim, igualar as diferenças é um dos fundamentos pelos quais o julgamento se mantém ativo entre os povos. Em prol de seres unívocos e orquestrados pelo dever operam muitas escolas, igrejas, tribunais e tantas outras espécies de instituições mantenedoras dos valores tradicionais que perpetuam o passado indiscriminadamente, como se a certeza do futuro dependesse da reprodução e vivacidade de um passado longínquo, mas ‘glamoroso e glorioso’. Hoje camuflado sobre a falácia da família tradicional, os juízos imperam e se alastram destruindo a diversidade e o poder criativo de novos indivíduos que insistem em resistir em meio a ‘ordem preestabelecida’. Impossível não lembrar a canção de Belchior (1976), que fez sucesso no mesmo ano com a contundente voz de Elis Regina, “Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmo e vivemos como nossos pais”. Nosso passado por vezes nos condena a repetir e a se sujeitar aos antigos juízos, a vivermos como nossos pais, a repetir e novamente repetir os jargões que nos foram repassados, como se os constantes sonhos do passado nos impedissem de viver. O que, também Belchior, numa contunde crítica ao juízo, imortalizou na canção a premissa “Viver é melhor que sonhar”. Viver versus sonhar: um combate travado pela vida contra o juízo, onde se encontram em relação de tensão o impulso apolíneo em seu estado do sonho e o impulso dionisíaco em seu estado de embriaguez.
Ester Heuser, no Capítulo “Elogio a insônia contra o juízo” (p. 196197), expõe: Se o deus solar comanda o sonho e o tribunal, se ele nos encerra na forma orgânica e limitada, em nome da qual julgamos, Deleuze precisa do notívago Dioniso para dar um fim ao juízo. Mais propriamente da embriaguez dionisíaca que só pode se manifestar por meio do ‘sono sem sonho onde, no entanto, não se dorme, essa insônia que, todavia, arrasta o sonho até os confins da insônia’ (DELEUZE, 1997, p. 148).
O sono sem sonhos ao qual Deleuze se refere possibilita o afastamento dos tribunais, afinal o sonho continua a produzir reflexos do dia que insiste em governar e imperar imagens de domínio sobre a mente, então, mesmo durante a noite o efeito onírico não me afasta de meu ego, me tornando subserviente. A psicanálise ao dar significação aos sonhos, nos torna “outro”, um alguém passível de ser vislumbrado, decodificado e, porque não, aprisionado. Para Heuser (p. 195): “Se durmo e sonho, me aproximo da noite, Reterritorializo o sono e também a mim mesma, já não posso mais dizer ‘eu durmo’, nem mesmo dizer ‘eu’. Não sou eu nem outro, sou uma sonhante que não pode ‘verdadeiramente’ ser”. Romper o efeito onírico do sonho é ser capaz de um “autoesquecimento” derivado de uma negação do sujeito em sua individuação, esse esfacelamento do “eu” é o que Nietzsche chamou de efeito ditirâmbico oriundo da embriaguez extasiante de Dionísio. Para Gonzalo Aguirre, autor do capítulo: “Rumino, ergo cogito: para recuperar cada vez el juicio” (p. 110): “El Organismo passional proprio del Juicio nunca puede alcanzar satisfacción, y lo toma todo com esa insatisfacción persistente que, organizada por uma Gramática de la vigilia, avanza incluso sobre las potencias oníricas”.
Criar mecanismos contra o juízo, que se encontra arraigado até no subterrâneo dos sonhos é tarefa que mobilizou escritores como Kafka. Adriana Dias e Paulo Schneider, autores do capítulo: “Kafka: uma escrivida ‘para dar fim ao juízo’”, assim descrevem o estilo do escritor: “A sua escrita é, de certo modo, como um caco de vidro virado contra si, está virado contra qualquer vontade divina, contra a sua condição judaica, contra o caráter social e familiar, a profissão, a justiça, o casamento” (p. 83).
Este domínio que vai até as zonas mais remotas do universo também encontrou solo fértil no inconsciente, fato percebido por Deleuze e Guattari, que encontraram relações de poder e dominação na relação entre analista e paciente. Assim, o juízo opera soberano exercendo violência física e simbólica contra os corpos, corpos vislumbrados em sua estrutura orgânica, como um todo onde cada parte cumpre uma função em vista de uma finalidade maior. Para opor-se a esta estrutura consciente que visa solapar os limites do inusitado, Deleuze lançará mão, alavancado por Artaud, do conceito de Corpo sem Órgãos, noção explorada por Evânio Guerrezi no capítulo “O caso Artaud: o corpo sem órgãos para acabar com o julgamento de Deus”. Para Artaud, apresentado na segunda parte do livro por Cristiano Bedin da Costa, em “Ainda Artaud”, o corpo sem órgãos é condição para a superação do juízo: “Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos, então o terão libertado dos seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade” (ARTAUD, 1983, p. 161162).
A questão do juízo psicanalítico é abordada, essencialmente, no capítulo “No teatro do capital o juízo psicanalítico encena um espetáculo trágico”, escrito por Ronaldo dos Santos. O objetivo apontado é situar a psicanálise como “um produto social e historicamente datado, que nasce, desenvolve-se e é posto a serviço do capital como uma das instâncias de elaboração do juízo” (p. 50). Nesse viés, Freud encontrou no elemento trágico de Édipo uma forma de perpetuação da culpa que faz com o que o indivíduo ressentido se curve mediante seu próprio inconsciente, numa sina onde a divida permanece viva e se alimenta da debilidade de um ser incapaz de sanar seus próprios limites: “O paciente deve deixar de culpar os outros pelos seus sofrimentos e imputar a si mesmo a responsabilidade por aquilo que se passa, o ressentimento tornase culpa” (p. 52).
O mea culpa, mea maxima culpa3 faz com que o indivíduo esteja numa condição de vulnerabilidade, a qual só pode ser superada mediante o arrependimento, seguido da penitência e, por fim, do perdão de Deus. A psicanálise segue um rito muito similar: “Em sua interpretação da realidade, a psicanálise aprisiona os indivíduos nos seus dilemas edípicos, distanciando-os dos determinantes históricos e sociais aos quais estão submetidos” (p. 53). Essa situação levará Deleuze à conclusão de que se trata de um sistema alimentado por uma dívida infinita, impedindo o aparecimento de qualquer novo modelo de existência, uma vez que se crê que a natureza humana dispõe de uma universalidade lógica que a rege em padrões e estereótipos que se repetem.
A transcendência dos valores encontra seu modus operandi no juízo, afinal para manter um sistema vertical em funcionamento é necessário algum tipo de pudor que leve os indivíduos a respeitar e manter a engrenagem do sistema. Para sustentar a falácia do juízo é comum a instituição de um telos que fornece sentido aos atos humanos, assim, aparecem o deleite da felicidade, do bem comum, da pátria, do paraíso e de tantos outros universais inventados e que ganham um caráter ontológico de atemporalidade. Enfim, Contra juízo é uma insurreição de resistência contra a transcendência.
Embora o livro não trace um paralelo filosófico direto entre pensadores que defendem uma filosofia transcendente e os herdeiros de Spinoza, o mesmo traz uma grande variedade de discussões sobre a questão da imanência num viés deleuziano. Dada a diversidade de autores e temáticas abordadas, o livro não traz uma reflexão aprofundada de algum autor em específico, fator que dificulta uma análise mais específica do livro.
No entanto, se apresenta como uma excelente ferramenta introdutória a alguns dos principais escritores do pensamento da imanência, além de instigar e resgatar uma contundente discussão sobre a nefasta influência do juízo à existência. Conforme salienta Ester Heuser no final da apresentação da obra: “Com resistência se responde ao que nega a existência”.
Referências
ARTAUD, Antonin. Escritos de Antonin Artaud. Tradução Cláudio Willer. Porto Alegre: LP&M, 1983.
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução do Centro Bíblico Católico. São Paulo: Ave Maria, 1996.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Trad.: P. Pal Pelbart. São Paulo: 34, 1997.
DELEUZE, Gilles. Sobre Nietzsche e a Imagem de Pensamento. In: A ilha deserta e outros textos. Trad.: T. Tadeu e S. Corazza. São Paulo: Editora Iluminuras, 2005.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, v. 1. Trad.: Ana L. de Oliveira, A. G. Neto e C. P. Costa. São Paulo: 34, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich W. Crepúsculo dos ídolos – ou, como se filosofa com o martelo. Trad.: P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Notas
1 ‘Para Luiz Palauro, autor do capítulo “Malditos mestres subversivos: vinde estragar nossos sonhos”: “O Cristo terreno era doce e aristocrata (de alma). O ‘filho do homem’ é expressão do mais alto grau de ressentimento das ralés, tudo nele é vingança, destruição e impotência remoída, o ódio fermentado” (p. 184).
2 A respeito da questão dos impulsos apolíneo e dionisíaco, bem como acerca da questão do elemento trágico em Nietzsche e Deleuze, Contra o Juízo dispõe do capítulo: “Tragédia grega e a doutrina do julgamento”. Escrito por Ana Acom.
3 Na tradição do catolicismo o “ato de contrição” é professado durante as celebrações da missa e é o simbolismo máximo da admissão dos pecados e da abertura do pecador para o perdão divino. Na íntegra: “Confiteor Deo omnipotenti, beatae Mariae semper Virgini, beato Michaeli Archangelo, beato Joanni Baptistae, sanctis Apostolis Petro et Paulo, omnibus Sanctis, et tibi pater: quia peccavi nimis cogitatione verbo, et opere: mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa.” * Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus Toledo. Professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico EBTT, do Instituto Federal do Paraná. Email: douglas.meneghatti@ifpr.edu.br
Douglas Meneghatti – Instituto Federal do Paraná, Brasil
[IF]Deleuze hermético: filosofía y prueba espiritual – RAMEY (C)
RAMEY, J. Deleuze hermético: filosofía y prueba espiritual. Buenos Aires: Las Cuarenta, 2016. Resenha de: MOSQUERA, Óscar Emerson Zuñiga. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, p. 202-207 2019.
A obra de Joshua Ramey – Deleuze hermético: filosofía y prueba espiritual – publicada em 2016 pela editora Las Cuarenta traz uma relevante contribuição aos estudos de filosofia da educação no Brasil. O livro é para professores e pesquisadores interessados em se aprofundar tanto nos estudos espirituais como na obra de Deleuze, toda vez que as referências espirituais do “filósofo da diferença” foram tratadas como algo acidental no conjunto de suas obras. Em relação ao autor, Joshua Ramey é Doutor em Filosofia pela Villanova University, e suas pesquisas se centram na Filosofia contemporânea, incluindo tópicos como: teoria social crítica, economia política e teologia política. Além do livro que aqui apresentamos, recentemente, publicou Politics of divination: neoliberal endgame and the religion of contingency (2016), além de vários artigos sobre filósofos contemporâneos.
Sem dúvida, Ramey consegue estruturar uma leitura séria e rigorosa da obra deleuziana. Trata-se de uma abordagem heterodoxa em relação aos estudos e usos da obra de Deleuze, especialmente no Brasil, tal como se evidencia em recente coleção sobre o autor intitulada Deleuze, desconstrução e alteridade (CORREIA; HADDOCK-LOBO; SILVA, 2017) ou em obras de destacado valor para estudos deleuzianos no País vinculados à educação (GALLO, 2011), nos quais termos como espiritualidade, hermetismo e Ramey não são mencionados. Igualmente, essa leitura subversiva de Deleuze não está presente no campo dos estudos espirituais, conforme trabalhos importantes nessa temática foram revisitados em Röhr (2013). Isso posto, a leitura hermética do corpus deleuziano possibilita uma convincente interconexão entre aspectos como natureza, política, ontologia e ética. Leia Mais
Gilles Deleuze: Credere nel reale – RONCHI (RFMC)
RONCHI, Rocco. Gilles Deleuze: Credere nel reale. Feltrinelli: Milano, 2015. Resenha de: GATTI, Giorgio Majer. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.4, 147-155, n.1, 2016.
Deleuze sempre rejeitou ter seguidores diretos e constituir uma escola. Nenhum pensamento oficial, nenhum círculo estreito, nenhuma diretiva, nenhuma busca de ortodoxia: “somente” um convite a entrar no laboratório filosófico sem qualquer seleção de entrada (algo que o mundo universitário jamais lhe perdoou). Adentrando então no laboratório filosófico dos conceitos – sujando as mãos, e aprendendo assim os truques do ofício – percebe-se que para cada um deles é designada pelo menos uma assinatura; isso, porém, não deve ser entendido com uma espécie de copyright filosófico, algo como um direito autoral: significa antes que cada conceito é ligado a uma experiência histórica concreta, que pode sempre ser recolhida e relançada, uma vez que a assinatura não é índice de uma propriedade, mas de uma passagem, ou de uma inauguração, ambas quase sempre conflituosas. Essa é a potência de Deleuze, bem como a fragilidade na qual ele quis inscrever seu trabalho e sua herança (a qual sentia bem pouco como sua); mas uma herança não menos exposta aos riscos da escolástica do que aquela de tantos filósofos que desejaram fazer escola desde o início de seu percurso. Deleuze é, para nós, um fantasma que nos relembra continuamente a função do humor em filosofia: o que é o Abecedário se não um retorno fantasmático, pensado para ser humoristicamente póstumo?
Esse Deleuze ativo e fantasmático pode ser apreendido no livro que Rocco Ronchi lhe dedicou, inclusive por meio de alguns aspectos insólitos, que se tratará de receber em seu caráter de preensões, para retomar a inspiração whiteheadiana que percorre todo o texto. Encontramo-nos diante de uma alternativa entre a retomada da prática que Deleuze nos legou e a descrição dessa própria prática. Pode-se dizer que é uma tarefa árdua, em parte porque a alternativa, que de início se mostra não pertinente, resulta, no final das contas, compulsória e asfixiante. A tentativa de Ronchi é a de relançar a prática filosófica de Deleuze, de maneira não ortodoxa, digamos, e isto tanto do ponto de vista terminológico quanto histórico-conceitual; resulta daí a separação de núcleos teóricos importantes, os quais são postos em movimento e retrabalhados: já um tal esforço deveria ser forte motivo de interesse para o leitor, e nos impulsionar para além das litanias da (in)fidelidade.
Ora, já nas primeiras linhas do texto Ronchi insere uma afirmação programática que não deve passar despercebida: “O que me propus a fazer foi escrever uma capítulo de história da filosofia contemporânea” (2015: 9). Não se trata, portanto, de uma introdução à filosofia de Deleuze, tampouco uma interpretação em chave hermenêutica; notese que o intento preciso de Ronchi deve ser acompanhado, caso se queira testar o alcance da operação que realiza, e caso se queira averiguar qual tipo de continuidade ele entrevê entre sua própria operação e o modus operandi característico de Deleuze, notório por seu um historiador da filosofia bastante teorético. Nesse sentido, cabe mencionar o importante conjunto de trabalhos fruto da linha de pesquisa que Ronchi delinou nos últimos anos, dentre os quais Bergson, una sintesi (2011), Come fare. Per una resistenza filosofica (2012), isso sem esquecer volumes que organizou, como Durata reale e flusso di coscienza. Lettere e alti scritti 1902-1939 (a correspondência entre Bergson e William James, publicada em 2014), e a tradução comentada de A transcendência do ego, de Sartre (2011). Lido dentro da teia relacional composta por tais trabalhos, o livro de Ronchi pode ter seu alcance específico mas bem compreendido, o qual quer justamente fugir da pretensão de fornecer o retrato exclusivo de um filósofo a partir de uma suposta identidade histórica cristalizada.
Dentro dessa perspectiva, toda a série de pontos delineados por Ronchi ao longo do livro faz emergir diversos aspectos problemáticos da filosofia deleuzeana. O tema da história da filosofia é apresentado em sua ligação essencial com o objeto de estudo: “De fato, foi Deleuze – mas não apenas ele – que nos ensinou que a história da filosofia não é uma narrativa linear. Não pode sê-lo, porque de outra forma nada restaria da filosofia.” (2015: 9) Esta afirmação coloca em relevo a tentativa de alcançar aquela indeterminação entre a voz de quem escreve e a do filósofo que é tomado como objeto de estudo, algo que Deleuze definira, na esteira de Bakhtin e Pasolini, discurso indireto livre. A emergência desse tema, longe de ser somente um modo de dar continuidade a uma herança, é também o índice de um conflito, nunca efetivamente abafado, entre filósofos teoréticos e historiadores da filosofia, ou, antes, entre filosofia e história da filosofia.
Desde o início, Ronchi desvela – sem se desviar do foco da coleção à qual o livro pertence (Eredi), dirigida pelo psicanalista Massimo Recalcati – o intento preciso de não se defrontar com a filosofia de Deleuze tomada como um corpo morto, ou como una experiência já conclusa, que se trataria então de reconstruir retrospectivamente “com filologia acríbia”. Este é o sentido mais geral que Ronchi atribui à própria prática filosófica, acerca da qual, alguns anos antes, mencionava a “hipótese de uma história teorética da filosofia, que segue percursos diversos daqueles da historiografia filosófica”, demarcando ainda o contraste de fundo com as abordagens historiográficas, mais especificamente historicistas: a história historiográfica da filosofia permaneceria alheia ao ato filosófico, restringindo-se ao fato. Tal premissa orienta todo o texto de Ronchi sobre Deleuze, que além de ter o não desprezível valor de estar explicitada, conduz seu autor por um terreno cheio de riscos, colocando em relevo uma coragem teórica. Um mérito preliminar da perspectiva adotada, para além do grau de condivisão que ela possa suscitar, está na ideia de abordar a filosofia de Deleuze em suas características peculiares, isto é, buscando atravessar os estratos interpretativos de gêneros diversos que ainda ofuscam a recepção deste filósofo (Derrida e Foucault tiveram maior sorte nesse sentido).
Deleuze é então apresentado como o filósofo que, mais do que qualquer outro na segunda metade do século XX, acreditou, ainda que ingenuamente, na possibilidade da filosofia. A partir daí, não é apenas a historiografia filosófica a ser colocada em discussão; Ronchi recorre a uma generalização de cuja insuficiência ele é plenamente consciente, mas a qual utiliza declaradamente com finalidade introdutória, qual seja, a que reconhece em duas linhagens de pensamento, que remontam respectivamente a Heidegger e a Wittgenstein, dois programas de pesquisa filosófica que, mesmo em sua diversidade, encontram-se comprometidos com a temática da descontinuação do filosófico. Ora, o autor coloca-se logo em guarda contra críticas: não se trata de contrapor Deleuze a Heidegger ou Wittgenstein de modo ingênuo ou desavisado, mas de delinear, dentro do amplo espectro dos herdeiros de cada um deles, a descontinuação do especulativo em filosofia (tomemos como referência, por exemplo, o ensaio heideggeriano O fim da filosofia e a tarefa do pensamento, ou a agenda filosófica do linguistic turn, que em grande medida via na segunda filosofia wittgensteiniana seu momento de fundação, conquanto injustificada seja reduzi-la a tal corrente). Note-se também que essa hipótese de Ronchi parece muito próxima da que Quentin Meillassoux defende no seu livro Após a finitude, ao que voltaremos mais abaixo.
Mas como Deleuze teria acreditado na possibilidade da filosofia? Antes de tudo construindo uma ideia diversa de história da filosofia (uma ideia que pode ser definida como problemática – como enfatiza Ronchi, retomando algumas belas e negligenciadas páginas de Diferença e repetição – ou como menor); uma ideia que coloca em relevo justamente a própria possibilidade da filosofia, a partir da influência particulamente decisiva do ensinamento de Martial Gueroult, o “monumental” historiador da filosofia que tanto insistiu na necessária identificação do filosófico com sua instauração. Nessa passagem, Ronchi apreende com lucidez um importante e ainda pouco conhecido eixo do pensamento deleuzeano, o qual, no entanto, ele tende a propor sem ressaltar as diferenças decisivas que separam o professor do aluno, e que podem ser sintetizadas incialmente pelo contraste entre a absoluta recusa de qualquer impulso “criativo” do historiador da filosofia, por um lado, e o desarranjo sistemático dessa recusa, por outro — uma diferença em cuja gênese certamente desempenhou um papel importante Ferdinand Alquié, com sua oposição teórica quase especular a Gueroult.
Deleuze retoma então a concepção estruturalista de Gueroult, reconhecendo seu caráter pioneirístico com respeito ao estruturalismo desenvolvido a partir da matriz linguística, mas não mantém a já menciona “censura” com relação à zona de indeterminação que acomuna o histórico e seu objeto, zona na qual Deleuze encontra a possibilidade de construir e retomar conceitos, no contexto de um movimento mais geral de repensar a temporalidade. Se o “filosófico” deve ser instaurado, conforme a dianoemática gueroultiana, a solução de Deleuze ao problema é justamente o discurso indireto livre, como Ronchi destaca com precisão. Deve-se, porém, levar em conta o fato de que a filosofia da história da filosofia de Gueroult, em seus aspectos mais fundamentais2 , abre-se à contingência pela apropriação deleuzeana, sobretudo a partir do final dos anos 1960. Neste sentido parece que Ronchi reconhece que contingência possa ser exclusivamente uma forma do limite e da negação em sentido antropológico, e não o lugar da virtualidade de todo devir. Mas não foi justamente Deleuze, em um cerrado confronto com a genealogia de Nietzsche, bem como com a de Foucault, (e se deveria também acrescentar aí a filosofia de Canguilhem) a conceber uma relação ativa, e não de mútua exclusão, entre história e vida criativa? O devir na contingência não é justamente o resultado dessa relação? E o próprio sentido da operação deleuzeana não é justamente aquele de problematizar a coexistência entre filosofia teorética e história da filosofia buscando na contingência algo que pode “fugir” à história? Nos escritos de Deleuze parece não haver efetiva contraposição entre história e devir, tampouco uma relação de pura exterioridade entre eles; antes, encontramos precisamente a remissão à relação entre vida criadora e história, isto é, a relação entre o evento que irrompe, perfurando a continuidade linear do tempo, e a temporalidade reificada do atual. Se é verdade que Deleuze tende a conotar negativamente a história, é igualmente verdadeiro que tal postura não corresponde a uma interrupção da dimensão histórica da filosofia, mas a uma ideia da história como “marcador temporal do Poder” (DELEUZE; BENE, 2002: 95), além de corresponder a uma crítica da história entendida como interioridade no conceito (é por isso que Hegel e Heidegger apareciam como historicistas a seus olhos). Ronchi apreende perfeitamente o aspecto produtivo do pensamento de Deleuze enquanto historiador da filosofia, por exemplo ao afirmar que “o historiador não narra a filosofia mas reativa a cada vez sua dimensão problemática e agonística” (2015: 11), muito embora pareça insistir em uma espécie de separação estrita, em nossa opinião não rastreável na filosofia deleuzeana, entre evento (natureza naturante) e contingência (natureza naturada), na qual não é nada simples abarcar o devir transcendental do empirismo. A crítica de Deleuze é entendida por Ronchi como uma prática que abole a si mesma; há uma espécie de identificação problemática entre crítica e finitude (e, portanto, contingência) que deixa algumas perguntas importantes em aberto. Deleuze, seguindo Nietzsche, havia demonstrado como Kant não estivera em condições de levar a crítica até as últimas consequências, algo que certamente leva a um desarranjo radical do nexo entre a crítica e a esfera do transcendental; mas uma tal crítica da crítica equivale a uma espécie de autodemolição operada pela própria crítica? Ronchi parece dar a entender que sim (e nisto talvez esteja mais próximo de Badiou que de Deleuze), enquanto nos parece que, ao radicalizar e revirar a crítica kantiana, Deleuze mostre uma passagem de sentido obrigatório em direção a um princípio de razão contingente, a qual desemboca em uma crítica entendida como tensão imanente, filha monstruosa e indesejada do kantismo (de onde se pode dar sentido ao grande e inequívoco interesse de Deleuze pelos póskantianos, em particular Salomon Maimon).
A referência a Giovanni Gentile que Ronchi propõe, a confirmar a leitura que apresentamos, é audaz e traz consigo o problema da tematização de uma história menor da filosofia, para além da aparente fragilidade da associação entre “o ato de pensar engendrado em sua genitalidade” (DELEUZE, 1997: 217)3 e o conceito gentiliano de ato: seguindo-a no plano propriamente teórico, não parece ponto pacífico que a teoria do ato puro de Gentile possa coexistir alinhado com o arcabouço deleuzeano, algo que Ronchi mesmo explicita ao escrever que “não é preciso dotar esse pensamento de um ‘Si’, como fará Gentile com seu ‘Eu’.” (2015: 11) Contudo, se Ronchi bem sabe que se expõe a uma avalanche de críticas com tal aproximação – as quais, cremos, necessitariam de um aprofundamento que foge ao escopo desta resenha4 –, por outro lado, aquilo que ele destaca do gesto de Deleuze permanece como algo central: a linha menor do pensamento filosófico não se dá o objetivo de narrar de maneira irenista a história da filosofia, trata-se sim de concebê-la como um campo de batalhas “do qual não se conhece antecipadamente o desfecho” (2015: 10), como também acreditava Althusser. É sobre essa base que Ronchi trabalha, buscando delinear as feições de um Deleuze filósofo do absoluto, no sentido etimológico de “ab-solto de seus pressupostos empíricos, da doxa e, em última análise, do preliminar referimento à experiência humana assumida como a única experiência possível” (2015: 10). Orbitamos ainda o supracitado ensaio de Meillassoux, texto que suscitou muitos debates internacionalmente, e que trouxe ao foco da atenção o problema do correlacionismo, tratado por Ronchi como passagem útil para a crítica da finitude e da contingência em filosofia, isto é, para a crítica da exceção humana e da relação entre o humano e o mundo. É a partir dessa diretriz que o livro se divide em cinco sessões: Ética, Método, Ontologia, Cinema, Psicanálise.
A centralidade do maio de ’68 aparece desde o início, colocado como evento paradigmático da ruptura com a representação e com o fundamento transcendente da experiência. A relação entre crença e realidade, presente no cerne da filosofia de Deleuze já desde Empirismo e subjetividade, é colocada na perspectiva da imanência; a representação seria uma normalização e uma despontencialização da experiência, uma sua redução a termo relativo”, escudo contra toda absolutização imanente da própria experiência: “A experiência como tal, para a metafísica, não pode ser absolutizada, o real não pode bastar, o devir, para poder ser possível, precisa de uma sustentação no eterno, no imóvel, no transcendente, enfim, na Lei” (2015: 14). Crer no real significa, para Ronchi, não renunciar à absolutização da experiência, e consequentemente à natureza especulativa da filosofia. A experiência imanente vai lado a lado com a univocidade do real, concebida por Deleuze como a igualdade ontológica de todos os entes, uma igualdade que tem o caráter da infinitude, e que Ronchi aproxima recorrentemente ao neoplatonismo, em particular àquele do Renascimento, de autores como Giordano Bruno e Nicolau de Cusa. Ora, Deleuze sempre estabeleceu precisos referenciais em sua história da univocidade do ser, e portanto da imanência: enquanto em Diferença e repetição o precursor designado era Duns Scoto, em Espinosa e o problema da expressão Deleuze mostrava o alcance histórico-filosófico do neoplatonismo internamente a uma pequena história da imanência, amplamente ignorada por muitos estudiosos em seu caráter complementar às teses desenvolvidas em Diferença e repetição. Em parte, esse interesse pelo neoplatonismo explica-se até mesmo em aspectos bastante concretos: o diretor da grand thèse de Deleuze foi Maurice de Gandillac, autor de La philosophie de Nicolas de Cues, estudioso da tradição neoplatônica cristã, que escreveu numerosos ensaios sobre esses temas. Também Jean Wahl, outro professor que teve grande importância para Deleuze, já havia falado difusamente sobre a relação entre transcendência e imanência na segunda parte de seu Traité de métaphysique.
Dessa forma, o Deleuze que Ronchi retrata é um filósofo da experiência pura que levou a sério as análises foucaultianas sobre filosofia moderna como antropologia transcendental: a finitude como fundamento da compreensão do ser, o homem como ente que goza de um primado ontológico. Como Ronchi justificadamente destaca, o movimento crítico de Foucault certamente estava voltado para a fenomenologia, mesmo em sua versão heideggeriana. Deleuze condividia com Foucualt essa orientação, e havia sido desde o início mais “livre” na construção de uma linha de fuga5 ; a sua primeira e já significativa tomada de posição remonta à resenha de Logique e existence, de Jean Hyppolite, livro fundamental para toda uma geração de filósofos franceses, no qual o autor “implantava” o pensamento ontológico do Heidegger da Carta sobre o humanismo na lógica hegeliana, através de um confronto não secundário com Bergson. Deste célebre livro de Hyppolite, Deleuze criticava fundamentalmente o resíduo antropológico e a concepção dialética da diferença. A propósito desse importante tema, Ronchi fala do dogma antropológico dos modernos, e elenca as teses constitutivas dessa antropologia da qual Deleuze se distanciará: 1) a finitude, enquanto limite negativo estrutural; 2) o par desejo-falta, enquanto imposição da Lei, a qual transcende a experiência; 3) a semelhança com o Deus dos monoteísmos, na “miserável transcendência do morrer” (2015: 25), enquanto imitação da transcendência do Princípio; 4) o débito, na medida em que o homem recebe o ser “de um Outro que o possui, ao contrário, de modo eminente” (2015: 25). Junto com Guattari, Deleuze teria buscado uma via de escape às armadilhas dessa antropologia analógica, construindo uma filosofia da experiência pura que, para Ronchi, é uma clara aproximação às filosofias da natureza, em particular à filosofia do processo de Whitehead6 . O anti-Édipo, através de sua crítica radical da negação e do uso negativo da síntese disjuntiva, não faria outra coisa que dissolver a antropologia analógica ainda presente na psicanálise, assim como Diferença e repetição e Lógica do sentido faziam o mesmo com respeito à tradição filosófica dominante. Assim, Ronchi sustenta que aquele de Deleuze é “o programa de uma nova filosofia da natureza que finalmente se desvincula do homem como unidade de medida, isto é, que não parte daquele ente para o qual se dá apenas negação” (2015: 33). Ora, percebe-se como não estava tanto em jogo, naqueles textos publicados entre os anos 1960 e 1970, uma suposta recaída no fundo indiferenciado para o qual Hegel apontava o dedo (gesto que Žižek procura atualizar), o ponto de apoio imprescindível para todos os que renegam ou renegaram o maio de 1968. Porém, pode-se perguntar, ao emancipar-se do limite humano, da falta e de transcendência da Lei, o que restará se não a noite escura da indistinção? A resposta que Deleuze e Guattari buscaram deixar clara era: a experiência pura é a experiência do real que escapa à alternativa entre simbólico e imaginário, experiência esta que viria “antes da relação sujeitoobjeto, antes da representação, antes da intencionalidade” (2015: 36). É aqui que a filosofia da natureza de Deleuze se hibrida com o último Lacan, segundo Ronchi: o Real lacaniano não possui uma consciência como suporte, e não possui qualquer dogma antropológico que o funde. Curiosamente, estamos justamente diante do que William James defendia nos seus Ensaios de empirismo radical a propósito da experiência pura. Eis aí, enfim, o peculiar alinhamento no qual Ronchi coloca Deleuze, caracterizando-o como o filósofo que pensou o real “absolto da relação” (2015: 37), reeditando uma filosofia do absoluto.
Há um mérito no esforço de Ronchi em trazer à tona os diversos elos de possível conjunção do pensamento de Deleuze, algo particularmente profícuo no capítulo dedicado ao cinema. A função estratégica do texto sartreano A transcendência do ego é um bom exemplo, uma vez que o mesmo inadvertidamente descortinava a hipótese de um campo transcendental impessoal, constituindo uma antecipação de algo caro a Deleuze: “Eis que se desenha sobre o fundo dessa consciência desprovida de um eu o vulto atordoado e estúpido da natureza naturante!” (2015: 104) Mas aqui também Ronchi mostra com habilidade um outro lado da construção deleuzeana: destituindo os últimos resíduos de intencionalidade da consciência fenomenológica, Deleuze serviu-se das pesquisas de uma outra figura importante, a saber Raymond Ruyer. Desse pouco conhecido filósofo da biologia, Deleuze retoma sobretudo a ideia, definida por Ronchi como whiteheadiana, de que “toda entidade atual – o que equivale a dizer todo ser realmente existente – é um processo capaz de autossobrevoar-se a uma velocidade infinita” (2015: 105). Trata-se sempre da imanência, de uma consciência desprovida de ego e que acomuna todos os entes, ou melhor, de uma consciência que não é de algo, como em Husserl, mas que é algo, tal como em Bergson. Eis que emerge novamente o Deleuze filósofo da imagem em si e da reviravolta do transcendental, kantiano e, em seguida, fenomenológico; um filósofo para o qual, no cinema, tem-se “um conjunto de imagens que existem em si mesmas, um imenso espetáculo sem espectador, uma memória sem lembrança ou uma consciência sem testemunho” (2015: 110).
Ronchi está particularmente interessado, em sua leitura de Deleuze, à natureza em seu aspecto naturante, a qual, como já mencionado, ele prefere aproximar à categoria whiteheadiana de processo, em vez daquela, considerada ainda excessivamente metafísica, de devir. Deslocando o eixo do finito ao infinito, Deleuze teria não só declarado o seu profundo espinosismo, teria mostrado que também para a filosofia poderia valer o que viria a ser reconhecido como real pela ciência (tal como afirmariam mais tarde Prigogine e Stengers )7: o ser humano não goza mais de privilégios ontológicos, não é mais o fundamento do pensar. Se é verdade, enfim, que a obra de Deleuze não foi uma filosofia do limite e sim do evento, anti-historicista, pioneira de um pensamento inumano, não é menos verdade que a contingência e a crítica assumem aí um papel central, conquanto sejam concebidas em um modo próprio, a contrapelo de como certa tradição as pensou. Caso contrário não se consegue apreender a força de uma afirmação como esta, escrita junto com Guattari: “[…] há, de fato, uma razão da filosofia, mas é uma razão sintética, e contingente – um encontro, uma conjunção. Ela não é insuficiente por si mesma, mas contingente em si mesma” (DELEUZE; GUATTARI, 1996: 86)8 . Aqui fica bem caracterizado o ponto que nos separa da leitura de Ronchi, embora o assunto exija ulteriores desenvolvimentos. O empirismo transcendental é o nome que Deleuze escolhe para liberar-se da dimensão ordinária da doxa; é a potência dos corpos e de suas composições, o desfazer-se do organismos (o corpo sem órgãos). Outro ponto crítico do livro parece ser, em consonância com as leituras italianas, a escassa consideração do papel desempenhado pela figura de Félix Guattari. Pois, em geral, os estudiosos tendem a distinguir em facetas reconhecíveis o filósofo (Deleuze) e o teórico inclassificável (Guattari, misto de psicanalista, ativista político, teórico, etc), quase como quem quer evitar o confronto direto com esse estranho par, e com as complexas perspectivas filosóficas aí inauguradas (neste ponto a influência de Žižek parece totalmente negativa). Enfim, a ideia de um Deleuze filósofo da natureza é acompanhada pela ideia de um Deleuze “reformista”9 , ambas convergindo de maneira bastante conciliadora com um recorte do último Lacan — mais um problema levantado por Ronchi e digno de atenção particular, tendo em vista as relações entre filosofia e psicanálise. Não à toa, mesmo aqui se reencontra a problemática dimensão política, posto que o livro passa ao largo do confronto com Marx, através Althusser, presente tanto em várias das sessões de O anti-Édipo, quanto em muitos outros textos. Nesse sentido a filosofia da natureza circunscrita por Ronchi parece sustentar-se toda sobre uma ideia de materialismo especulativo que ratifica o fim da crítica e que parece distanciar Deleuze e Guattari e alguns de seus melhores e mais revolucionários matizes filosóficos. Ainda assim, a perspectiva delineada por Ronchi oferece diversos elementos para uma discussão ampliada, com o intento preciso de extirpar de uma certa ingenuidade compartilhada por diversos leitores “desejantes” e pouco pacientes, que são atraídos mais pelos jargões que pelos conceitos.
Notas
1 giorgiomajer.gatti@gmail.com
2 a estrutura das primeiras monografias de deleuze deve muito à arquitetura dos sistemas filosóficos que a obra de gueroult nos legou.
3 em português, cf: diferença e repetição. 2a. ed. são paulo: graal, 2006, p. 162.
4 cf., pelo menos, r. ronchi, n=1. l’empirismo integrale di gentile e bergson, https:// www.academia.edu/12315367/n_1._lempirismo_integrale_di_gentile_e_bergson.
5 “o pensamento de deleuze é profundamente pluralista. ele fez seus estudos ao mesmo tempo que eu, e 5 ele preparava uma tese sobre hume. eu fazia sobre hegel. eu estava do outro lado pois, nessa época, eu era comunista, enquanto ele já era pluralista. e acho que isso sempre o ajudou. seu tema fundamental: como se pode fazer uma filosofia que seja uma filosofia não-humanista, não militar, uma filosofia do plural, uma filosofia da diferença, uma filosofia do empírico, no sentido mais ou menos metafísico da palavra.” in m. foucault, dits et écrits, n. 139, maggio 1973, ora in g. deleuze, che cos’è lo strutturalismo?, se, milano 2004: 71-72. em português, cf: m. foucault, a verdade e as formas jurídicas. rio de janeiro: nau, 2002: 132.
6 a centralidade de whitehead é um outro aspecto pouco enfrentado pelos estudiosos de deleuze, tema 6 pelo qual ronchi tem uma sensibilidade particular, ao menos em parte decorrente da influência de carlo sini. a presença de whitehead na filosofia de deleuze tende a ser bastante difusa, mas poderíamos destacar aqui, em particular, o capítulo vi de a dobra, leibniz e o barroco.
7 cf. prigogine y., stengers i., la nouvelle alliance. métamorphose de la science, gallimard, paris 1981; tr. it. di p. d. napolitani, la nuova alleanza. metamorfosi della scienza, einaudi, torino 1999.
8 em português cf: o que é a filosofia? são paulo: editora 34, p. 122.
9 se é verdade que o imediatismo político capta os humores adolescentes (embora se deva lembrar que 9 isso jamais foi concretamente proposto pelos dois autores), o “reformismo”, com a sua específica história e conotação política, não nos parece ser conciliável com a perspectiva filosófica daqueles que elaboraram o conceito de “máquina de guerra”, para dar apenas um esemplo. o aspecto político de ruptura e subversão inscrito na filosofia de deleuze e guattari aparece-nos enfraquecido nessa leitura de ronchi.
Referências
DELEUZE, G. BENE,C. Superpositions, Les Éditions de Minuit, Paris 1979; tr. it. Sovrapposizioni, Quodlibet, Macerata 2002.
DELEUZE, G. Différence et répétition, PUF, Paris 1968; tr. it. di G. Guglielmi riv. da G. Antonello e A. M. Morazzoni, Differenza e ripetizione, Cortina, Milano 1997. Diferença e repetição. 2a. ed. São Paulo: Graal, 2006.
DELEUZE G., GUATTARI F., Qu’est que la philosophie?, Les Éditions de Minuit, Paris 1991; tr. it. di A. De Lorenzis, Che cos’è la filosofia?, Einaudi, Torino 1996, p. 86. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34
Giorgio Majer Gatti – Dottore magistrale in Filosofia Università di Milano 1
La aventura de la filosofa francesa a partir de 1960 – BADIOU (RFMC)
BADIOU, A. La aventura de la filosofa francesa a partir de 1960. Trad. Irene Agof. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2013.1. Resenha de: ALBA, Fernando Roberto. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.2, p.107-101, n.2, 2014.
El momento analizado en la obra es comparado con el de la Grecia clásica o el del idealismo alemán respecto a su amplitud, singularidad y novedad. La plétora de autores y la diversidad de movimientos (existencialismo, estructuralismo, deconstrucción, posmodernismo, realismo especulativo…) es tal que ridiculiza la actual escena filosófica francesa, la cual para el filósofo está “generosamente poblada de impostores”. Entre la publicación de El ser y la nada (1943) de Jean Paul Sartre y el último libro de Gilles Deleuze ¿Qué es la filosofía? (1991), instante breve, intenso y creador, acontece lo que Alain Badiou no vacila en llamar “filosofía francesa contemporánea”.
El tema se constituye en un presupuesto fundamental y transversal a la obra que el también dramaturgo y novelista francés reconstruye como cartografía de momentos y localizaciones particulares de una filosofía singular. En este sentido, la empresa de Badiou es indagar por la existencia o no de una “unidad histórica e intelectual” que bien podría cobijar la contingencia de un work in progress en el pensamiento francés desde la segundad mitad del siglo XX.
Ahora bien, Badiou advierte claramente cómo el sintagma “filosofía francesa” se desentiende de cualquier sentido etnocéntrico, incluso en lo referido al antiamericano french touch. Bien es cierto, existen unos momentos filosóficos excepcionales y singulares como el señalado en la obra, dicha singularidad es capaz de generar repercusiones universales y es precisamente en esa universalidad que Badiou inscribe el prolífico panorama de la filosofía francesa contemporánea.
En efecto, el horizonte descrito por el filósofo es presentado en términos de una “aventura del pensamiento”, toma cuerpo como compilación y se constituye por autores tan diversos como Gilles Deleuze, Alexandre Kojève, Georges Canguilhem, Paul Ricoeur, Jean Paul Sartre, Louis Althusser, Jean François Lyotard, Françoise Proust, Jean Luc Nancy, Barbara Cassin, Christian Jambet, Guy Lardreau y Jacques Rancière. No obstante, a esta misma se suma la ya descrita y caracterizada en Petit panthéon portatif (2008): Jacques Lacan, Jean Cavaillès, Jean Hyppolite, Michel Foucault, Jacques Derrida, Jean Borreil, Philippe Lacoue-Labarthe y Gilles Châtelet.
En dicho texto Badiou daba inicio a un tríptico que establecía claramente la empresa retomada por la presente obra y que el autor, en el prefacio, promete completar con una tercera entrega que bien haría justicia a aquellos autores pasados por alto, ya sea porque su obra se estabilizó o por su prematura muerte (Monique DavidMénard, Stéphane Douailler, Jean Claude Milner, François Regnault, François Wahl), ya sea por su temprana juventud filosófica, pues para Badiou “en filosofía, la madurez es tardía” (BADIOU, 2012: 8).
En esta perspectiva, la búsqueda de una unidad histórica e intelectual que cobije a estos autores hace que Badiou enuncie una caracterización arriesgada y ciertamente discutible en las páginas que componen el prefacio, cuyos temas se encuentran en buena parte desarrollados en el texto “Panorama de la filosofía francesa contemporánea” (2005). De manera que Badiou emprende inicialmente una “genealogía del momento filosófico”, el cual emerge a principios del siglo XX con el establecimiento de dos corrientes bien diferentes: una filosofía de la interioridad vital -son un referente las conferencias impartidas por Henri Bergson en Oxford en 1911, publicadas como La pensée et le mouvant (1969)- y una filosofía del concepto apoyada en las matemáticas -la publicación de Les Étapes de la philosophie mathématique de Brunschvicg en 1912 es vista como la obra icónica de esta tradición-. Total que estas dos corrientes de pensamiento terminan por postular un problema transversal a la filosofía gala, a saber, el sujeto.
La cuestión del sujeto organiza el periodo en mención al ser la parte común de las dos orientaciones de la filosofía. El sujeto, en últimas, está llamado a interrogarse sobre su vida subjetiva y orgánica, así como sobre su pensamiento y su capacidad creadora en una batalla conceptual que a menudo tomó la forma de una controversia respecto a la herencia cartesiana en la filosofía de la posguerra. El filósofo francés señala una estrecha relación entre el problema en cuestión y algunas “operaciones intelectuales” o “metódicas” que buscan identificar el momento filosófico. Tal es el caso de la llamada “operación alemana” en torno al problema de la herencia del pensamiento germano, cuyos ecos Badiou ubica en el seminario que impartió Kojève sobre Hegel y que influyó de forma determinante tanto Lacan como a Lévi-Strauss; a su vez en el descubrimiento de la fenomenología por filósofos del treinta y del cuarenta (Sartre, Merleau Ponty); en la interpretación “absolutamente original” que hizo Derrida del pensamiento alemán, así como en la influencia de Nietzsche en Foucault y en Deleuze, y, finalmente, en los ensayos de Lyotard, Lardreau, Deleuze y Lacan sobre Kant.
De suerte que a dicha operación subyace el objetivo de encontrar en la filosofía alemana nuevos medios para tratar la “relación entre concepto y existencia”. Para la cual, sin importar su denominación: “deconstrucción”, “existencialismo”, “hermenéutica”, se busca modificar y desplazar la mentada relación en una suerte de “transformación existencial del pensamiento”. En ultimas, la filosofía alemana, en su traducción gala, devino en algo totalmente novedoso para el “campo de batalla” de la filosofía francesa.
La “visión creadora de la ciencia” (Bachelard, Cavaillès), el “radicalismo político” en tanto compromiso de la filosofía con la actividad política (Sartre, Merleau-Ponty, Foucault, Althusser, Deleuze, Jambet, Lardreau, Rancière, Proust, Badiou) y una “búsqueda constante de nuevas formas del arte y de la vida” (Deleuze) son otras operaciones descritas por el autor y que tuvieron como objeto proponer una nueva disposición del concepto, una creación de nuevos conceptos en sus estrechas relaciones con la cuestión de la forma, con la creación y disposición de las formas: bien como relación singular de la filosofía con la literatura (Lacan y Lévi-Strauss y el movimiento surrealista), bien como cambio espectacular de la escritura filosófica (Deleuze, Foucault, Lacan, Derrida, Sartre, Althusser) que busca dar una vida literaria al concepto mediante la creación, en la lengua, de una nueva forma de sujeto.
Ciertamente, la creación de una nueva forma de sujeto lleva a la filosofía francesa de mediados del siglo XX a entablar una relación estrecha, de complicidad y de rivalidad, de amor y odio con el psicoanálisis pues éste ocupa un lugar esencial entre las dos grandes corrientes que están implicadas en el tema del sujeto: el vitalismo existencial y el formalismo conceptual. Toda vez que la idea de inconsciente promulgada por el psicoanálisis se inscribe en la relación como algo vital y simultáneamente simbólico que cobra forma en el concepto. A este respecto, el autor llama la atención sobre las tensiones entre filósofos de la escena intelectual como Bachelard, Sartre, Deleuze, Foucault, Derrida y el psicoanálisis freudiano. Algunas obras de los tres primeros se inscriben como fundamentales para comprender dicha tensión: La Psychanalise du feu (1938) donde Bachelard formula un nuevo psicoanálisis sustentado en la poesía y en la ensoñación que denomina “psicoanálisis de los elementos”; el final de El Ser y la nada (1943), obra en la que Sartre opone al psicoanálisis de Freud un psicoanálisis en el que es necesario remplazar la estructura del inconsciente por un “proyecto de existencia”; el cuarto capítulo del Anti-Œdipe (1972) de Deleuze y Guattari formula la necesidad de oponer al psicoanálisis otro método de análisis que Deleuze llama “esquizoanálisis”.
En este panorama esbozado, tras el establecimiento de una genealogía del momento filosófico y la caracterización de varias operaciones metódicas que subyacen al mismo, cada texto emerge como una huella inasible que potencia lo señalado por Badiou y lo evidencia en la lucidez de sus análisis. De manera que Badiou no duda en radicalizar sus apuestas al señalar la existencia de un “elemento común” que se refracta entre los autores en cuestión a pesar de sus diferencias y contradicciones y que no refiere a las obras, a los sistemas o a los conceptos, sino al programa pues: “cuando la cuestión programática es fuerte y compartida hay un momento filosófico con una gran diversidad de medios, de obras, de conceptos y de filósofos” (BADIOU, 2012: 22).
En esta medida, los últimos cincuenta años del siglo XX son caracterizados en el estudio con un programa definido en seis puntos: disolución de la oposición sujeto y existencia: “el concepto está vivo, es una creación, un proceso y un acontecimiento, él no está separado de la existencia” (BADIOU, 2012: 22).); sacar la filosofía de la academia y hacerla circular en la vida; abandono de la oposición entre filosofía del conocimiento y filosofía de la acción; inscripción frontal de la filosofía en la escena política; retoma de la cuestión del sujeto; creación de un nuevo estilo de exposición filosófica, reinvención del “escritor-filósofo”.
Todos estos aspectos del programa se ven acompañados por el deseo de hacer del filósofo algo más que un sabio, de acabar con la figura mediadora, profesoral y reflexiva del filósofo, pues éste es más bien visto como un “escritor combatiente, un artista del sujeto, un amante de la creación” (BADIOU, 2012: 24). En suma, para Badiou la filosofía francesa contemporánea, más que el conocimiento de un objetivo, buscó trazar un camino muy singular por sus apuestas metodológicas, conceptuales y existenciales. Camino que está siempre más cerca de la acción y de la intervención filosófica que de la mediación y la sabiduría, pues la filosofía francesa “ha sido una filosofía sin sabiduría” (BADIOU, 2012: 24).
Testigo directo de la escena filosófica descrita, es preciso decir que Badiou conoció a todos los autores de quienes escribe: maestros (Althusser, Canguilhem), mayores (Foucault, Deleuze), contemporáneos (Rancière, Lyotard, Nancy) y otros tantos compañeros de lucha e interlocutores en el debate de las ideas. Este aspecto, ciertamente subjetivo, es potenciado por el mismo origen de los textos: desde breves notas y alocuciones publicadas en Critique (Althusser), Elucidation (Ricoeur), Po&sie (Cassin) y Les temps modernes (Sartre, Françoise Proust), hasta capítulos de libro completos (Deleuze, Canguilhem, Nancy, Rancière).
La noción de rizoma desarrollada por Gilles Deleuze y Félix Guattari en Mil mesetas (1988) deviene ciertamente una potente imagen conceptual para hacer una economía del desarrollo teórico del texto de Badiou, pero a su vez, se constituye en un dispositivo de crítica del mismo. El libro es en sí un rizoma que comporta tanto lineas de articulación y de segmentaridad como movimientos de des-territorialización y de des-estratificación que no dejan de metamorfosear constantemente su naturaleza y que terminar por cuestionar radicalmente el estatuto del autor.
Así, cuando Badiou arriesga semejante esquematización del panorama de la filosofía francesa contemporánea, en sus análisis convergen lineas de fuga y movimientos de des-territorialización que dan vida a nuevas articulaciones rizomáticas, à devenires otros del pensamiento en acto. De esta manera es posible hablar de toda una cartografía en la que se encuentran autores y posturas completamente heterogéneas como lo pueden ser las de Sartre, Foucault y Rancière a propósito del radicalismo político, o a su vez en cuanto al diálogo ininterrumpido de diversos autores como Bachelard, Derrida y Deleuze con el psicoanálisis. En este sentido el titulo hace total justicia pues de lo que se trata es de toda una “aventura del pensamiento”.
Ahora bien, estas mismas lineas de fuga son susceptibles de reterritorializarse y de generar nuevamente estructuras arborescentes que tienden a homogeneizar y, en últimas, a anular la multiplicidad, es decir, los devenires impersonales de cada filosofía. De tal suerte, el panorama trazado corre el riego de sedimentarse en una suerte de lectura políticamente correcta, ciertamente normalizada y reconocida por el establishement intelectual francés. Badiou y el cargo que desempeña en la Ecole Normale Supérieure son un buen ejemplo para ilustrar este caso.
Es cierto, el filósofo no se desentiende en lo absoluto de su contexto histórico y político, más aún cuando su reflexión siempre fue cercana al militantismo político. Sin embargo, la cartografía establecida por Badiou y en la que él, además, se ubica modestamente, parece perder totalmente de vista el enorme trabajo que Levinas realizó para la misma época, para no hablar del trabajo arduo y silencioso de toda una pluralidad de autores no-cartografiables. Tal vez sea un caso irrelevante e incluso hasta accidental sin embargo no deja de ser un signo que aterriza la “lectura” de Badiou y que evidencia su carácter subjetivo a propósito de un monstruo que él mismo osa llama “filosofía francesa contemporánea”.
Notas
1 Existe otra edición: BADIOU, A. La aventura de la filosofa francesa a partir de 1960. Santiago de Chile: LOM, 2014. Sin embargo, todas las citaciones del presente texto son tomadas de la edición francesa L’aventure de la philosophie française depuis des années 1960. París: Éditions La fabrique, 2012.
Referências
BADIOU, A. La aventura de la filosofa francesa a partir de 1960. Trad. Irene Agof. Buenos Aires, Eterna Cadencia, 2013. L’aventure de la philosophie française depuis des années 1960. París: Éditions La fabrique, 2012.
___________. Petit panthéon portatif. París: La fabrique, 2008. Pequeño panteón portátil. México: Fondo de Cultura Económica, 2009.
___________. “Panorama de la filosofía francesa contemporánea”. En: ABENSOUR. M. Voces de la filosofía francesa contemporánea. Buenos Aires: COLIHUE, 2005, pp. 73-83.
BACHELARD, G. La Psychanalyse du feu. París : Gallimard, 1938. Psicoanálisis del fuego. Madrid: Alianza, 1966.
BERGSON, H. La pensé et le mouvant. París : Presses Universitaires de France, 1969. El pensamiento y lo moviente. Buenos Aires: Cactus, 2013.
BRUNSCHVIG, L. Les Étapes de la philosophie mathématique. París: Alcan, 1912. Las etapas de la filosofía matemática. Buenos Aires : Lautaro, 1945.
CUSSET ,F. French theory : Foucault, Derrida, Deleuze & Cia y las mutaciones de la vida intelectual en Estados Unidos. Mónica Silvia Nasi. Barcelona: Melusina, 2005.
DELEUZE, G. & GUATTARI, F. L’Anti Œdipe : Capitalisme et Schizophrénie. Paris, Editions de Minuit, 1972. El Anti Edipo: Capitalismo y esquizofrenia. Barcelona: Paidos, 1995.
___________________________. Mil mesetas: capitalismo y esquizofrenia. Valencia: Pretextos, 1988.
___________________________.Qu’estce que la philosophie ? París: Editions de Minuit, 1991. ¿Qué es la filosofía? Barcelona: Anagrama, 1994.
SARTRE, J.P. L’être et le néant. París: Gallimard, 1943. El ser y la nada. Buenos Aires: Lozada, 1979.
Fernando Roberto Alba – Estudiante de Master en Filosofía Contemporánea. Universidad de Paris VIII. Vincennes Saint-Denis.
Deleuze, a arte e a filosofia – MACHADO
MACHADO, R. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2009. Resenha de: AMARANTE, Ana Helena. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.11, n.3, p.351-352, set./dez., 2010.
O livro de Roberto Machado aborda, a partir de distintas dimensões da obra deleuziana, aquilo que, conforme o autor, é a grande singularidade deste pensamento – a diferença em detrimento da identidade.
Ele mostra como este é o fio que conduz esta filosofia, perseguindo em seu estudo a heterogeneidade própria deste pensamento em seus encontros com a arte, com a ciência, com a própria filosofia. Em seu livro, Machado persegue essa heterogeneidade, pois acredita que explicitá-la é evocar a própria questão que Deleuze não cessa de fazer acerca do “que é pensar”, retirando a filosofia do seu habitual papel de reflexão sobre outros domínios, sejam eles a história da filosofia, a literatura, o cinema, a ciência; para pensar com eles e não mais sobre eles.
Deleuze crê na filosofia como aliança e não como um pensamento reflexivo, o que Machado explora no desenvolvimento de seu trabalho, mostrando a maneira como estas alianças vão sendo constituídas, os encontros de Deleuze com outras filosofias e o modo como elas vão sendo utilizadas, seus conceitos modificados ao receberem outros elementos, outros contextos. Em relação à arte não é diferente, e a prioridade está nas ressonâncias entre cada domínio e não em uma suposta prioridade de um sobre o outro.
Mas Machado observa que, embora Deleuze conceda à exterioridade da filosofia uma importância evidente, o seu exercício é filosófico, já que o pensamento, quando exposto às forças que o fazem pensar, cria conceitos, e esta é, conforme o próprio Deleuze, a especificidade filosófica. A arte e a ciência não precisam da filosofia para o exercício do pensamento; fazem-no a partir de suas especificidades, criando sensações e funções, respectivamente. Mas a criação de conceitos é a prioridade filosófica, o que Machado destaca na obra deleuziana, afirmando que as questões dessa filosofia vêm prioritariamente da tradição filosófica e se colocaram a partir da filosofia e chegando mesmo a afirmar que Deleuze “é um historiador da filosofia que ousou pensar filosoficamente” (Machado, 2009, p.19).
Mas, simultaneamente, Machado quer mostrar o quanto o título de “historiador da filosofia” não cabe a Deleuze, já que sua obra jamais consiste em buscar uma identidade na leitura que faz dos filósofos, mas afirmar sua diferença. Esta operação Machado examina detalhadamente nas leituras deleuzianas de Foucault e Nietzsche, ressaltando as torções, os deslocamentos ou interferências que essa leitura instaura, destacando o processo de colagem de Deleuze.
Esse processo, já trabalhado em Deleuze e a filosofia, obra de Machado de 1990, agora é ampliado, já que inclui a filosofia de Deleuze ao encontro da arte e literatura (Machado, 2009, cf. capítulos 6, 7 e 8). É o próprio Deleuze que nomeia dessa maneira o procedimento de, sobre a história da filosofia, produzir as torções necessárias para que os conceitos respondam a outros problemas; para tanto é necessário que recebam outros elementos, sendo remanejados para outros contextos.
O autor estabelece uma analogia com as técnicas da colagem na pintura, onde a obra é o encontro com materiais distintos numa mesma tela, e refere-se também ao movimento dadaísta.
Machado quer tornar evidente essa operação de colagem na obra de Deleuze, objetivo que parece mesmo conduzi-lo na leitura dessa filosofia, pois privilegia as íntimas relações entre a colagem deleuziana e a instauração da diferença em detrimento da identidade. Isto porque esse encontro de “materiais diversos numa mesma tela” não faz referência a nenhuma identidade ou totalidade, mas busca justamente as diferenças entre os elementos, as diferenças de diferenças, sem nenhuma sujeição a uma suposta identidade.
Daí a geografia do pensamento e não uma história, característica que Machado desenvolve desde a introdução do seu livro. Deleuze quer a constituição de espaços onde seja possível colocar distintos pensadores em ressonância, sem nenhuma obediência a uma história progressiva e linear do pensamento. Nesse espaço o privilégio é dado ao pensamento sem imagem, isto é, o pensamento que não sabe de antemão o que pensa, sem pressupostos, o “espaço da diferença”.
Machado, ao tornar evidente a singularidade da filosofia de Deleuze, persegue o que em cada encontro, com pensadores da filosofia ou não, faz vibrar essa singularidade. Isto é, ele quer apanhar o próprio exercício deleuziano ao encontro de seus intercessores, observando também como esses encontros constituem a construção da filosofia de Deleuze.
Nesses encontros, Machado ressalta a importância de Nietzsche como inspiração fundamental na construção de uma filosofia da diferença, e parece-nos igualmente ser o momento em que Machado apresenta as suas leituras de um modo mais ousado, arriscando-se a uma colagem própria com os conceitos de vontade de potência e eterno retorno, diferença e repetição.
Poderíamos dizer que, ao mesmo tempo em que Machado percebe a inspiração nietzscheana de Deleuze, é também contagiado por ela, já que procura, em certa medida, a vontade que anima a filosofia deleuziana. E esta certamente é a singularidade de seu estudo.
Referências
MACHADO, R. 1990. Deleuze e a Filosofia. Rio de Janeiro, Graal, 242 p.
Ana Helena Amarante – Centro Universitário Metodista IPA. Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: ahelena21@yahoo.com.br
[DR]
Deleuze, a arte e a filosofia – MACHADO (AF)
MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. Resenha de: PACHECO, Fernando Tôrres. Artefilosofia, Ouro Preto, n.8, abr., 2010.
Lançado no segundo semestre de 2009, Deleuze, a arte e a filosofia consiste em uma revisão ampliada do livro Deleuze e a filosofia (Graal, 1990). No mais recente, Roberto Machado procura explicitar os ca- minhos percorridos pelo filósofo Gilles Deleuze no seu esforço para afirmar o pensamento da diferença contra o pensamento representativo. Para tanto, fez-se necessário demonstrar como essa afirmação perpassa por agenciamentos com interlocutores tanto da própria filosofia quanto de outras maneiras de pensar, como as artes. Deleuze, ao travar acordos e distanciamentos com esses interlocutores, revolve seus conceitos e/ou sensações buscando elevar as suas relações em prol do exercício construtivista característico de seu pensamento. A via proposta pelo autor centra-se principalmente sobre as leituras das obras da década de 60 – em especial Diferença e Repetição – partindo para Foucault e terminando sua análise nos livros e escritos sobre literatura, pintura e cinema. Roberto Machado investiga como o tema da diferença é suscitado tomando como ponto de partida o texto “Platão e o simulacro”, em que Deleuze discorre sobre o método de divisão platônico. Tal texto pretende demonstrar como Platão privilegia a representação em detrimento da diferença ao adotar um método de divisão na sua teoria das idéias, em que há uma eliminação sistemática das cópias que não possuem os seus respectivos correspondentes no mundo ide- al. Dessa maneira, Platão elimina da perspectiva filosófica o simulacro, prevalecendo somente as cópias que mantêm correlação intrínseca com a idéia originária. Contra essa perspectiva excludente das diferenças e contra o ponto de vista ascensional platônico, Deleuze alia- se à perspectiva nietzscheana, esta que se posiciona de maneira cética ao pensamento identitário e universalista. Deleuze revisita o filósofo alemão e adota as noções de eterno retorno e vontade de potência como orientações do pensamento que, em relação, são capazes de afirmar a diferença sem subordiná-la à identidade. O ponto determinante do livro está na leitura deleuziana de Kant, em que podemos perceber que a relação do filósofo francês com o criador da filosofia crítica não se configura por tanta animosidade como é comum ser dito. Dentre as inovações conceituais kantianas, Deleuze aponta como fator positivo a inserção da forma do tempo no cogito, gerando uma cisão no sujeito, o je transcendental e o moi empírico. Deleuze é instigado pela caracterização temporal atribuída por Kant em sua filosofia, a qual possibilita a forma diferencial cingida do sujeito, ainda que este mesmo sujeito seja reconciliado posteriormente pela identidade sintética e pela moralidade da razão prática. Em contrapartida, o filósofo francês vai questionar o acordo das faculdades kantianas inserindo a idéia de “gênese” no senso comum. Para Deleuze, Kant não abre mão da noção do comum acordo entre as faculdades, que configuraria um dos postulados da filosofia da representação. Ao contrário, Kant multiplicaria tal noção. Dessa maneira, o filósofo francês demonstrará que existe um “acordo discordante” entre as faculdades encontradas na Crítica do Juízo, em que “no caso do sublime, o desacordo entre imaginação e a razão é o princípio genético do acordo das faculdades”. Ao contrário da idéia da filosofia da representação em que as faculdades convergem para a recognição do objeto, Deleuze propõe três faculdades (sensibilidade, memória e pensamento) autônomas: a cada uma delas um objeto próprio é apresentado, “só apreende o que a concerne exclusivamente, diferencialmente”.
A intensidade é aquilo que força a ser sentido, é a razão suficiente do fenômeno, dá o limite daquilo que é sentido. O objeto da memória (memória transcendental) é a forma pura do tempo, a coisa esquecida, o ser em si do passado que força a lembrança. Já o pensamento opera sobre um impensável que força o pensamento a pensar. Assim, Deleuze aponta que a relação entre as faculdades é do tipo de uma violência discordante que força o pensamento e que as idéias são uma multiplicidade. O capítulo sobre Foucault é apresentado pelo autor como referência a uma continuidade temática de Deleuze em relação aos escritos da década de 60, o que o faz afirmar não haver uma ruptura a partir do “Anti-Édipo”. Nesse capítulo, ao demonstrar o procedi- mento deleuziano de repetir o pensamento de outrem com o intuito de criar torções, o autor adota também a perspectiva de colagem, contrapondo a própria leitura à de Deleuze e demonstrando o funcionamento de conceitos como poder e saber segundo a perspectiva de cada um. Na parte do livro reservada ao pensamento deleuziano em conexão com interlocutores não-filosóficos, Roberto Machado demonstrará como o filósofo francês capta potências de conceitos oriundos de sensações literárias, pictóricas e cinematográficas. Com Proust, Deleuze irá demonstrar o papel da boa interpretação como forma de alcançar a essência: perfeita unidade entre signo e sentido. Continuando entre os literatos, o filósofo demonstrará a importância da linguagem e do estilo e apontará para o papel da sintaxe como constructo da diferença. Para Deleuze, a sintaxe estabelece o que ele chamará de uma “língua estrangeira” dentro da própria língua, o desvario da língua materna. Alguns autores como Melville conseguem, através do uso sintático da linguagem, proporcionar uma desterritorialização da língua, produzindo um devir-outro da língua que fuja dos padrões gramaticais, do establishment canonizado. Esse procedimento de criação de uma nova linguagem procura estabelecer uma conexão com o de-fora “(…) que consiste em visões e audições capazes de revelar o que há de vida nas coisas ao capturar as forças e a intensidade”. Com Francis Bacon, Deleuze demonstrará como o pintor, ao adotar procedimentos de desfiguração e isolamento da Figura, se caracteriza como sendo o artista a expressar as forças, a prevalência das forças sobre as formas.
Para introduzir “Imagem-movimento” (cinema clássico), Machado demonstra a distinção feita por Deleuze entre movimento reproduzido e movimento apresentado para localizar a leitura de Bergson sobre o cinema e, ao invés de situá-lo como algoz da sétima arte, insere sua filosofia mais ainda no audiovisual. “Imagem-tempo” (cinema moderno) caracteriza-se para Roberto Machado como o livro de cinema em que Deleuze pôde estabelecer a sua filosofia da diferença. Com o advento do neo-realismo, o filósofo francês enxerga a tomada do pensamento pelo cinema: ele sai do cinema de ação e passa a ser um cinema visionário, “um exercício transcendental da faculdade de sentir que suspende o reconhecimento sensório-motor da coisa, ou a percepção de clichês, como é a percepção comum, proporcionando um conhecimento e uma ação revolucionários” (p.273).
Deleuze, a arte e a filosofia reforça a hipótese do autor de que a filosofia de Deleuze é uma filosofia sistemática, mas uma sistematização que se dá por articulações e agenciamentos de multiplicidades conceituais. Como bem lembrou Machado ao comparar a filosofia deleuziana ao “Samba de uma nota só” de Tom Jobim: “outras notas vão entrar, mas a base é uma só.”
Fernando Tôrres Pacheco-Mestrando em Estética e Filosofia da Arte/ IFAC/ UFOP.