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Mestiça cientificidade: três leitores franceses de Gilberto Freyre e a sua máxima consagração no exterior | Giselle Martins Venancio e André Furtado
A Editora da Universidade Federal Fluminense acaba de lançar Mestiça cientificidade: três leitores franceses de Gilberto Freyre e a sua máxima consagração no exterior (2020). O livro de Giselle Martins Venancio e André Furtado é uma importante contribuição para interpretar a recepção da obra de Gilberto Freyre no exterior, em especial na França do pós-guerra. Compreender as condições de leitura de autores canônicos como Fernand Braudel, Roger Bastide e Lucien Febvre – os leitores franceses estudados no livro – não é trivial, pois a consagração de Casa-grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre (1900-1987), não dependeu apenas do próprio texto, nem da argumentação e da pesquisa contidas nele, mas de uma série de questões que povoam o mundo dos leitores.
Mestiça cientificidade aprofunda o entendimento acerca da recepção francesa de Casa-grande nas décadas de 1940 e 1950. Funciona também como iniciação à obra de Gilberto Freyre para estudantes, jovens pesquisadores e interessados em um dos autores brasileiros mais importantes do século XX, o de maior repercussão internacional, objeto ainda hoje de acalorado debate público. Sem perder a potência da pesquisa e dos debates acadêmicos contemporâneos, o livro em questão não deixa de praticar história pública. Leia Mais
Um estilo de história: a viagem, a memória, o ensaio: sobre Casa-grande & senzala e a representação do passado – NICOLAZZI (RBH)
NICOLAZZI, Fernando. Um estilo de história: a viagem, a memória, o ensaio: sobre Casa-grande & senzala e a representação do passado. São Paulo: Ed. Unesp, 2011. 484p.Resenha de: PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.36, no.72, MAI./AGO. 2016.
Tanto já se escreveu sobre Gilberto Freyre, e particularmente sobre Casa-grande & senzala, que está cada vez mais difícil se dizer alguma coisa nova e significativa sobre o autor ou sobre o livro de 1933. O risco de “chover no molhado”, como o próprio Nicolazzi diz, é bastante grande. Entre os estudiosos anteriores de Casa-grande, Nicolazzi está mais próximo de Ricardo Benzaquen, cujo trabalho reconhece como inspirador, mas oferece uma visão propriamente sua da obra de Freyre.
Um estilo de História é uma versão ligeiramente modificada de uma tese de doutorado defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2008, que recebeu o prêmio Manoel Luiz Salgado Guimarães da Anpuh em 2010. Apesar de Nicolazzi não ter aproveitado esse lapso de 7 anos entre a defesa e a publicação de 2015 para fazer referência aos estudos publicados nesse intervalo, dá uma contribuição original para a montanha do que se pode chamar de “Estudos Freyreanos”, examinando Casa-grande de vários ângulos. Como o próprio autor confessa logo no início, seu livro é “um conjunto de ensaios travestido em tese universitária”, o que é muito apropriado no caso do estudo de um autor que adorava o gênero ensaístico e descrevia até mesmo sua volumosa obra de novecentas e tantas páginas, Ordem e Progresso, como um “ensaio”. O que mantém Um estilo de História mais ou menos coeso é o argumento do autor de que Freyre escolheu um estilo de representação do passado, um modo de proximidade, que diferia muito das representações anteriores empregadas por antigas histórias do Brasil; e que esse estilo pode ter mesmo sido adotado por Freyre em resposta direta a Os sertões.
Para justificar sua tese sobre representações, Nicolazzi adota o método de leitura atenta (close reading) dos textos para chegar a conclusões sobre o estilo, as estratégias literárias e os modos de persuasão tanto de Euclides da Cunha quanto de Gilberto Freyre. Seus sete ensaios-capítulos são organizados em três seções. A primeira se inicia com um relato da recepção de Casa-grande no Brasil (em outras palavras, representações de uma representação), e daí se volta para os dez prefácios do autor, nos quais ele se defendia contra más representações de sua obra, ou deturpações, e conversava, por assim dizer, com seus resenhistas. A segunda seção, que compreende mais dois ensaios, deixa Freyre de lado para se concentrar em Euclides da Cunha. A terceira seção retorna a Freyre, com três capítulos dedicados respectivamente a viajantes, memórias e ao próprio gênero do ensaio. Nicolazzi considera Freyre um viajante que privilegiava o testemunho de outros viajantes e oferecia aos seus leitores a sensação de estarem viajando ou no espaço ou no tempo. Também enfatiza a importância das memórias em Casa-grande: as do próprio autor, as de sua família e as dos indivíduos que entrevistou, o mais famoso dos quais foi o ex-escravo Luiz Mulatinho. O livro termina com um ensaio sobre o ensaio, refletindo sobre ensaios históricos e sobre a tradição brasileira do ensaísmo, a fim de buscar a singularidade da contribuição de Freyre para essa tradição.
Um estilo de História é fruto de uma leitura vasta e variada, que inclui não somente a historiografia, de Heródoto a Hayden White, mas também filosofia, literatura, psicologia, sociologia e antropologia, os campos nos quais o próprio Freyre estava muito à vontade. Nas páginas de Nicolazzi, Paul Ricoeur está ao lado de Wolf Lepenies, Roland Barthes ao lado de Clifford Geertz, Oliver Sacks de Quentin Skinner, François Hartog de Walter Benjamin, Jean Starobinski de Frank Ankersmit, Michael Baxandall de Gérard Genette, além de outros. Enfim, tantos nomes, tantas luzes a iluminar um texto.
Assim como a justaposição do livro de Euclides com o de Sarmiento, Civilização e barbárie, se tornou um tópos, o mesmo aconteceu com a comparação e o contraste entre Os sertões e Casa-grande, que novamente coloca a representação do “outro” versus a representação de “nós” em pauta. No entanto, Nicolazzi desenvolve esse contraste de modo interessante e valioso, focalizando pontos de vista. Segundo ele, o contraste essencial entre Freyre e Euclides – cujo trabalho Freyre estudou cuidadosamente e sobre o qual escreveu mais de uma vez – é que Euclides exemplifica o que Claude Lévi-Strauss chamou de “olhar distante”, observando e representando outra cultura como se estivesse pairando alto no ar; uma cultura que ele via como oposta à sua própria, ou seja, uma representando a civilização, e a outra, a barbárie. Sua estratégia literária era a do naturalista, registrando detalhes com o espírito de um cientista, uma espécie de Émile Zola do sertão. Em contraste, Freyre, como um antropólogo no campo, tentava chegar perto dos escravos e ainda mais perto dos senhores (e das senhoras) de engenho sobre os quais escreveu. Como Michelet – e diferentemente de Euclides – Freyre tentava evocar o passado, suprimir a distância e identificar-se com os mortos e com tudo o que já se foi. Ele pode até ser criticado – e o foi por Ricardo Benzaquen – por estar “correndo o risco de uma proximidade excessiva”.
Há muito a ser dito em favor desse contraste. Afinal de contas, Freyre disse em certa ocasião que “o passado nunca foi, o passado continua”. Sua “história íntima” e sua “história sensorial” tentavam exatamente tornar os leitores capazes de ver, ouvir, cheirar, sentir o gosto e até mesmo tocar o passado. O elemento autobiográfico em Casa-grande, enfatizado ainda mais em 1937 em seu Nordeste, é efetivamente central, e a confusão entre a vida do autor, de sua família e de sua região natal (ilustrada pelo uso frequente que Freyre faz da primeira pessoa do plural) é, na verdade, reminiscente de Michelet.
No entanto, a oposição entre distância e proximidade precisa ser qualificada, se não mesmo questionada – do mesmo modo como o próprio Freyre gostava de primeiro estabelecer, para depois solapar as categorias opostas de sobrados e mocambos, ordem e progresso, e assim por diante. Pois Freyre não era adepto de polaridades rígidas – que não davam conta dos paradoxos, contradições e complexidades da realidade humana – e se apelava para oposições binárias, sua estratégia era sempre enfraquecê-las por meio de mediações entre opostos, para o que o uso de termos recorrentes como quase-, para-, semi- se adaptava muito bem.
Assim, no que diz respeito à proximidade que Freyre pretenderia ter de seu objeto de estudo, deve-se acrescentar que ele também era capaz de ver seu próprio país com olhos estrangeiros. Seu emprego recorrente de textos escritos por viajantes como evidência não somente dá aos leitores a sensação de “estarem lá”, como Nicolazzi sugere, mas também os provê com distanciamento, já que os viajantes são frequentemente estrangeiros que podem ver mais facilmente o que nativos não veem. De qualquer modo, em algumas de suas passagens menos memoráveis, Freyre escorrega de seu estilo usualmente vívido e subjetivo e cai, por assim dizer, numa linguagem acadêmica, objetiva, escrevendo no capítulo 1, por exemplo, que “por mais que Gregory insista em negar ao clima tropical a tendência para produzir per se sobre o europeu do Norte efeitos de degeneração … grande é a massa de evidências que parecem favorecer o ponto de vista contrário”. Aqui, como em outros pontos da obra, a proximidade e a subjetividade do estudo da sociedade patriarcal dão lugar ao distanciamento e à objetividade. Pode-se, pois, descrever Casa-grande muito apropriadamente como um livro híbrido, não somente no sentido de combinar técnicas científicas e de ficção, como Nicolazzi aponta, mas também por se mover entre o fora e o dentro, entre distância e proximidade.
Como uma boa tese de doutorado, Um estilo de História é extremamente minuciosa e, em certos aspectos, ainda “cheira” a uma tese no sentido de que o autor não parece saber bem quando parar, repetindo argumentos e mesmo citações (uma delas três vezes) a fim de fortalecer seu argumento. Os leitores, ou ao menos alguns deles, podem ter às vezes a sensação de que Nicolazzi está usando uma marreta para abrir uma noz. Como muitas teses brasileiras, Um estilo de História está também sobrecarregada de reflexões sobre método e teoria, assim como apoiada em grande bagagem intelectual, desconsiderando, às vezes, o princípio conhecido como “o rifle de Chekhov”. Chekhov certa vez aconselhou os escritores a “removerem tudo que não tem relevância para a estória. Se você diz no capítulo primeiro que tem um rifle pendurado na parede, no segundo ou no terceiro esse rifle tem necessariamente de ser usado para atirar em alguma coisa. Se não for para ser disparado, então o rifle não deveria estar pendurado lá”. Do mesmo modo, se a Metahistory de Hayden White é discutida na introdução, como foi o caso, os leitores seguramente têm o direito de esperar que o livro de White seja usado mais tarde, discutindo, por exemplo, se Casa-grande & senzala foi “encenada” como uma comédia ou romance. Essas expectativas, no entanto, são frustradas.
Outra questão que importa levantar diz respeito ao uso acrítico que Nicolazzi fez, algumas vezes, dos escritos autobiográficos de Freyre, especialmente de seu “diário da juventude”. Esse texto ocupa lugar importante no livro para reforçar seu argumento sobre a legitimidade que as experiências vividas por Freyre dão ao estilo de história que escolheu escrever. Há evidências de que esse diário “da juventude”, publicado em 1975, não foi efetivamente redigido entre 1915 e 1930, tal como o Freyre maduro – tão envolvido em self-fashioning – quis fazer crer. Ele era, na verdade, exímio na arte da autoapresentação, produzindo com esmero a imagem que os leitores deveriam ter dele. Nicolazzi reconhece isso logo na primeira parte de seu livro. No entanto, várias vezes utilizará esse “diário”, ou ensaio-memória, como se ele representasse fielmente o que o autor fizera ou pensara quando ainda estava para escrever Casa-grande. É de se crer que esses deslizes se devam ao fato de o livro incluir textos escritos em momentos diversos, e que falhas ou descuidos como esses compreensivelmente escaparam na revisão.
Não obstante esses pequenos senões, Um estilo de História é livro inovador e perspicaz que elucida, inspira e instiga a curiosidade do leitor. É também valioso por tratar de ideias de proximidade e distância nos moldes de alguns estudos recentes e refinados sobre “distância histórica”, em especial os desenvolvidos por Mark Phillips e alguns de seus colegas. Particularmente interessante é a diferenciação que Phillips faz entre distância e distanciamento, o primeiro uma postura espontânea entre os historiadores, o segundo uma estratégia proposital usada por alguns deles para trazer o passado para perto do leitor, como num close-up, quando assim acham importante, ou distanciar o passado para obter outros efeitos. Enfim, a retórica da proximidade e da distância como uma ferramenta que alguns historiadores usam conscientemente, como um romancista, para causar determinados efeitos em seus leitores, é uma linha de estudos fecunda à qual o livro de Nicolazzi pode ser associado. E, nesse sentido, Um estilo de História tem o grande mérito de potencialmente acenar para um novo e promissor fio a ser seguido pelos estudiosos de historiografia e de Gilberto Freyre.
Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke – Research Associate, Centre of Latin American Studies, University of Cambridge. Cambridge, UK. E-mail: mlp20@cam.ac.uk.
Identidade nacional e modernidade brasileira – SOUZA (HH)
Gilberto Freyre / saopauloreview.com.br
SOUZA, Ricardo Luiz de. Identidade nacional e modernidade brasileira: o diálogo entre Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, 232 pp. Resenha de: LOWANDE, Walter Francisco Figueiredo.[1] História da Historiografia. Ouro Preto, n.2 mar. 2009.
Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Câmara Cascudo, Gilberto Freyre, Identidade nacional, Modernidade brasileira, Interpretações do Brasil
Fruto da Tese de Doutorado defendida por Ricardo Luiz de Souza, em 2006, no Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais e sob orientação de José Carlos Reis, percebe-se que o livro Identidade nacional e modernidade brasileira parte da mesma premissa que guiou a feitura de Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC (Reis, 2007). Trata-se de compreender um conjunto de obras preocupadas em fornecer grandes interpretações do Brasil, esforço que possibilitaria o desvendamento da lógica que as perpassa. Se, no caso de José Carlos Reis, podemos depreender que tal lógica refere-se, grosso modo, a um posicionamento a favor ou contra a colonização portuguesa, o livro ora resenhado é o diálogo “indireto” entre Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Câmara Cascudo e Gilberto Freyre, em torno de conceitos como identidade nacional, modernidade e tradição, que enlaça as clássicas obras desses autores.
Ao se atribuir um sentido a um conjunto de obras que as perpassa e que vai além do significado individual, “imanente” a cada uma delas, dotando-lhes, assim, de uma linha comum que as atravessa e que nos permite supor uma evolução discursiva da qual participam os autores selecionados, corre-se o risco de simplificar uma realidade de produção textual mais complexa. Com tal afirmação, não pretendo negar a importância deste tipo de análise, sem a qual não se pode conhecer o conjunto dos efeitos que podem ser produzidos pela linguagem escrita numa configuração sócio-histórico-cultural específica. No entanto, num esforço de análise assim conduzido, deve haver um especial cuidado a fim de não se subjugar o que uma obra tem de peculiar. Um exemplo disso é o já citado trabalho de José Carlos Reis, no qual este autor se preocupa mais com o enquadramento de Gilberto Freyre numa tradição de “elogio da colonização portuguesa” do que com a realização de uma análise mais aprofundada do conjunto de sua obra. Isso o leva, a meu ver, a enfatizar a idéia de que o ensaísta pernambucano teria construído uma imagem idílica da colonização portuguesa, interpretação que não pode ser estendida a toda sua obra. Como já foi notado por alguns autores (Viana, 2001; Rocha, 2001; Paoli, 2003; Araújo, 1994; Souza, 2000), Casa-Grande & Senzala dispõe de vários elementos que mostram justamente o contrário, ou seja, mostra uma dominação por vezes cruel do senhor sobre seus escravos, uma proximidade que não se dá, no geral, de forma afável.
A opção de Ricardo Luiz de Souza, no entanto, encontra-se fortemente embasada por uma perspectiva que analisa cada autor e cada obra em seus mais amplos aspectos: são tratados os traços psicológicos e biográficos, os contextos histórico, social, econômico e cultural e as relações intelectuais e institucionais, sendo as obras tomadas de maneira bastante ampla, o que permite que Souza relativize as eventuais simplificações. As influências são devidamente pesadas e o diálogo entre os autores não se dá de forma mecânica: talvez o maior laço entre eles, além da temática abordada, seja a veia ensaística. Enfim, em Identidade nacional e modernidade brasileira, os debates acerca da construção da identidade nacional e da modernidade a partir dos autores escolhidos são tratados com grande responsabilidade.
No capítulo introdutório, Souza demonstra um esmerado cuidado na definição dos conceitos que nortearão seu trabalho e na escolha do método, que possibilitará a compreensão dos autores através do diálogo que eles travam entre si. Cada obra merecerá um capítulo específico adiante, no qual os conceitos bem definidos da introdução servirão como ponto de partida para suas análises.
Para Souza, as identidades nacionais são construídas. Um “povo”, conceito que “sinaliza a existência de um substrato comum, entre os membros de determinadas populações, que tende a ganhar força simbólica e discursiva com base na representação de identidades nacionais prenhes de significados comuns” (pp. 23-24), buscaria uma estabilização através da construção de uma identidade nacional. Esta, que fique bem entendido, não é a mesma coisa que o citado “substrato comum”, algo que parece existir, a partir do que se depreende do argumento do autor, de forma dispersa, levemente sentida, ou seja, um fenômeno do qual ainda não se tomou coletivamente consciência, mas que proporciona uma certa ligação entre os indivíduos. Desta forma, a identidade, uma espécie de construto a posteriori, não reflete “de forma mecânica e integral”, segundo o autor, os indivíduos que discursivamente representa; nasce de interesses advindos dos setores dominantes; é moldada em interação à alteridade, não existindo um “outro” absoluto e homogêneo; obscurece heterogeneidades e conflitos; não é estática; e, por fim, é uma construção discursiva, que nasce “de uma imagem construída, não-verificável e não empiricamente demonstrável” (p. 25).
Esta “identidade nacional”, inspirada em Norbert Elias e no conceito de “memória coletiva” de Maurice Halbwachs, seria estruturada pela tradição. De acordo com Souza, a tradição é corporificada em símbolos, que são coisas retiradas da “esfera mundana” e, assim, re-significadas. A tradição surge então não como algo apenas situado estaticamente no passado, mas como conjunto de símbolos disputados por diversos grupos na construção de uma noção de identidade hegemônica. A tradição também estaria intrinsecamente ligada ao conceito de modernidade. Esta última é entendida como anseio de um grupo por um futuro cuja busca se dá a partir da tradição. O presente se torna assim transitório, o futuro cada vez mais distante e o passado desejado como recuperação da estabilidade perdida em tal busca. Desta forma, segundo o autor, embora tendam a ser classificadas dicotomicamente em escalas valorativas ligadas às idéias de “bem” e “mal”, modernidade e tradição interagem constantemente, a modernidade atuando com base nas tradições que a determinam, e, por outro lado, a tradição sendo continuamente alterada sob os impactos da modernidade, constantemente modificada em função dos diferentes grupos que a disputam.
A perspectiva adotada por Ricardo Luiz de Souza nos permite então perceber em que medida espaço de experiências e horizonte de expectativas, categorias que tomo de empréstimo de Reinhart Koselleck (2006), se articulam nas interpretações do Brasil. Nas tentativas de definição de uma identidade nacional, a relação entre tradição e modernidade adquire formatos diversos, em consonância com cada ideal de futuro discursivamente construído.
O primeiro autor a ser assim compreendido é Sílvio Romero. Ele constata o atraso brasileiro em relação às nações européias e busca suas causas numa identidade nacional, naturalmente, socialmente e racialmente determinada.
Romero inaugura uma análise identitária que passa pela miscigenação e inclui o negro como fator explicativo central. As condições socioeconômicas mostrarse- iam insuficientes para explicar o que ele considera uma aversão do brasileiro ao capitalismo. O problema, para Romero, é como modernizar um país possuidor de uma população mestiça e, portanto, segundo ele, racialmente inferior. A conclusão a que chega é que as elites deveriam conduzir esta população mestiça num processo de “branqueamento”. Por outro lado, é na cultura popular, produzida por esta população mestiça, que residem as verdadeiras características de uma identidade nacional, tradição com base na qual as elites construiriam uma nação moderna. Um crescente pessimismo e “provincianismo” de sua parte (termo este não tomado num sentido pejorativo, mas relativo ao seu orgulho regional) permeariam estas idéias e, além disso, para Souza, elas corresponderiam a um reordenamento social, em que suas teorias raciais justificariam uma “nova desigualdade a ser implementada” (p. 69).
A identidade nacional é, por sua vez, encontrada por Euclides da Cunha numa dicotomia que seu olhar, tanto de engenheiro como de literato, descobre no Brasil a partir da observação de Canudos: a dicotomia que existe entre litoral e sertão, entre civilização e barbárie (ou, mais tarde, entre civilização e atraso). Se, a princípio, em Os sertões, o sertanejo é um bárbaro, posteriormente Cunha constatará que seu isolamento em relação à civilização proporcionou, na verdade, a conservação da identidade nacional em seu estado embrionário.
Este sertanejo se torna, também, um exemplo de como a raça superior portuguesa conseguiria suplantar o meio adverso e prevalecer numa combinação gênica na qual preponderaria. O desafio seria conciliar a premente modernidade à Nação. A modernização do país seria produzida, portanto, tomando como base a identidade nacional descoberta nos caracteres do sertanejo. Contudo, o alheamento das elites estaria produzindo o massacre destes indivíduos portadores da “fórmula da nacionalidade”.
Também na obra de Câmara Cascudo se faz presente a dicotomia entre sertão e cidade, ou entre província e centro urbano: os primeiros termos da dualidade são os lugares da tradição e, os últimos, os da modernidade. Contudo, Cascudo não pretende conciliá-los, mas preservar a cultura popular, a partir da qual se poderia entrever a identidade nacional. O estudo do folclore serviria, então, como ferramenta para tal empreitada. Pretende ele “resgatar elementos milenares no que é contemporâneo, demonstrando a universalidade de crenças e costumes que se escondem sob o manto do regional” (p. 147). A miscigenação seria também fator preponderante para a compreensão dessa cultura popular, na qual o elemento português ocuparia, mais uma vez, posição privilegiada.
Na análise que faz da obra de Gilberto Freyre, Ricardo Luiz de Souza toma a acertada decisão de incluir sua produção pós-1960, pois é nela que a identidade nacional, densamente pesquisada em Casa-Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos entre outras obras escritas, sobretudo, na década de 1930, encontrará o caminho para o mundo “além do apenas moderno”. Tal caminho será iluminado pelo conceito de lusotropicalidade. Souza destaca que o otimismo freyreano em relação ao futuro assenta-se na apologia que faz da mestiçagem, pois ela, que define a identidade nacional brasileira, possibilitaria uma vantagem num mundo pós-moderno. Da automação decorreria um tempo livre para o qual a vivência hispânica do tempo estaria mais preparada. Ao contrário dos outros autores, em Freyre a modernidade é superada, pois se trata de um momento histórico no qual uma série de valores urbanos entraria em conflito com um sistema rural no qual os contrários se equilibrariam.
Ao retratar as significações e re-significações que os conceitos de “identidade nacional”, “modernidade” e “tradição” sofreram nas obras selecionadas, cuja relevância da análise é por sinal muito bem fundamentada, Souza encara, deste modo, a produção discursiva de maneira muito acertada. Não há, conforme se depreende desta leitura, um discurso unitário, absolutamente hegemônico, sobre o que viria a ser a identidade do brasileiro. O que se verifica, em contraposição, é uma constante disputa por definições, cada uma delas compondo de maneira específica e em variados graus de sucesso um “estoque” disponível para as mais variadas interiorizações individuais. Desta forma, embora constantemente se afirme que o poder público impôs uma unificação cultural por intermédio de uma definição específica do que fosse a identidade nacional, podemos perceber que esta realidade discursiva é muito mais complexa e não deve ser encarada como um único discurso vencedor.
Por fim, o que aqui expus sucintamente pretende-se uma apresentação de um trabalho sem dúvida mais rico do que esta resenha pode abarcar. Não obstante, em alguns momentos, pode ser sentido um sub-aproveitamento dos fatores propriamente lingüísticos frente aos extra-lingüísticos (não é discutido, por exemplo, de que modo as “ideias” dos autores atuam no mundo social enquanto textos, ou melhor, enquanto “atos de fala”),[2] Ricardo Luiz de Souza tem o mérito de tratar de uma considerável amplitude de fatores relacionados aos conceitos que coloca em relevo. Seu estilo, marcado por uma análise que privilegia um grande número de aspectos, colocados em relativamente curtos e abundantes parágrafos, possibilita tal feito, além de tornar o texto mais interessante pela ampla erudição que demonstra, e não por uma prolixidade que rejeita.
Referências Bibliográficas
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CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. 2ª ed. – São Paulo: Contexto, 2006.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Puc-Rio, 2006.
PAOLI, Maria Célia. “Movimentos sociais, movimentos republicanos?” In SILVA, Fernando Teixeira da et al. (Org.). República, liberalismo, Cidadania. Piracicaba: Editora UNIMEP, 2003.
POCOCK, J. G. A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003.
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 9ª ed.
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ROCHA, João César de Castro. “Notas para uma futura pesquisa: Gilberto Freyre e a escola paulista”. In FALCÃO, J. e ARAÚJO, R. M. B. de. [orgs.]. O Imperador das idéias: Gilberto Freyre em questão. Rio de Janeiro: Colégio do Brasil/ UniverCidade/ Fundação Roberto Marinho/ Topbooks, 2001.
SOUZA, Jessé. A Modernização seletiva: uma interpretação do dilema brasileiro. Brasília: Unb, 2000.
VIANNA, Hermano. “A meta mitológica da democracia racial”. In FALCÃO, J. e ARAÚJO, R. M. B. de. (Orgs.). O Imperador das idéias: Gilberto Freyre em questão. Rio de Janeiro: Colégio do Brasil/ UniverCidade/ Fundação Roberto Marinho/ Topbooks, 2001.
[1] Mestrando em História Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) wartelowande@yahoo.com.br Rua Salomão de Vasconcelos, 96 – Chácara Mariana – MG 35420-000 Palavras-chave Modernidade; Tradição; Identidade nacional.
[2] 1 Cf. o verbete “Ato de fala” escrito por Catherine Kebrat-Orecchioni, traduzido por Maria do Rosário Gregolin (Charaudeau; Manguenau, 2006). Conferir também o debate travado por John Pocock (2003) com a “Escola de Cambridge”.
Guerra e Paz: casa-grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30 | Ricardo Benzaquem Araújo || O Brasil visto de fora | Thomas Skidmore
Há quase um século as imagens sobre a suposta singularidade das relações raciais no Brasil têm como um de seus principais marcos constitutivos a experiência norte-americana. Processos distintos de implantação do sistema escravocrata e de sua posterior extinção, maior ou menor grau de miscigenação e seus efeitos sociais, sociedade multirracial versus sociedade birracial, mecanismos legais ou informais de discriminação racial foram alguns dos parâmetros utilizados para definir as diferenças entre as duas sociedades.
Apesar do denominado mito da democracia racial ter sido elaborado no século XIX, seu refinamento, sem dúvida, contou com a colaboração imprescindível de cientistas sociais tanto brasileiros quanto norte-americanos, especialmente nas décadas de 1930 e 1940. Gilberto Freyre e Donald Pierson são exemplos representativos desse momento. Leia Mais