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Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam | Juliano Spyer
Juliano Spyer | Foto: Zanone Fraissat/Folhapress
“Nos anos 1970, evangélicos representavam apenas 5% dos brasileiros, hoje são um terço da população adulta do país, e na próxima década, segundo estatísticas, o número de protestantes superará o de católicos”.II Considerando o crescimento recente que os evangélicos têm tido na sociedade brasileira, Juliano Spyer julga que conhecer quem são esses sujeitos é importante para compreender o Brasil contemporâneo.
Spyer, formado em História pela Universidade de São Paulo e mestre e doutor em Antropologia pela University College London, foi autor do livro Mídias Sociais no Brasil Emergente, publicado em 2018 e que analisava o uso da internet nas camadas populares brasileiras. Estudar o fenômeno evangélico não era seu objetivo no início de sua trajetória, que passou pela morada na casa de uma família batista nos Estados Unidos em um intercâmbio estudantil e pelo trabalho na campanha presidencial da exministra evangélica do Meio Ambiente Marina Silva em 2010. No entanto, em uma pesquisa de campo em um bairro periférico de Salvador, na Bahia, o antropólogo conviveu com várias famílias evangélicas, algo que lhe permitiu ampliar seu conhecimento sobre o assunto. Leia Mais
Zé Dirceu Memórias. Vol.1 | José Dirceu
José Dirceu de Oliveira e Silva, nascido em 16 de março de 1946, na cidade mineira de Passa Quatro, graduado em Direito pela PUC-SP, ex-ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República, é o autor da obra aqui resenhada, intitulada: Zé Dirceu memórias Volume I, que fora escrita ao longo de 2018, enquanto estivera preso no Complexo Médico-Penal, de Pinhais, em Região Metropolitana de Curitiba. Com efeito, por si só, seu nome atrai olhares curiosos e atenções midiáticas, sejam de simpatizantes à sua trajetória de vida, sejam de críticos.
José Dirceu, como um político e personagem social recente da vida política brasileira, atinge sua significância ao relatar em sua obra momentos marcantes de atuação, de particular relevância para compreensão de seu trajeto em momentos chave da história do Brasil, como por exemplo, sua luta no movimento estudantil no enfrentamento à ditadura civil-militar (1964 – 1985), seu exílio em Cuba (1969-1974) com direito a relatos dos encontros com Fidel Castro, a criação do Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980, a elaboração da Constituição entre os anos 1987 e 1988, o movimento “Fora Collor” em 1991, e a queda por impeachment do ex-presidente em 1992, a chegada do PT ao poder com Luiz Inácio Lula da Silva (Lula) na presidência (2002-2010), o escândalo do mensalão em 2005 e a recepção do mesmo pela mídia. Leia Mais
O leão e a joia | Wole Soynka
Manhã, Meio-Dia e Noite: no tríplice emaranhar desses tempos cênicos, fia precisa e preciosa suas teias o triângulo amoroso da peça teatral O Leão e a Joia. É de obra do nigeriano Wole Soyinka que se está a falar, autor Prêmio Nobel de Literatura em 1986 – o primeiro africano negro a receber a premiação -, cuja peça, escrita lá em fins dos anos 50, somente cerca de outro meio século depois, em 2012, ouviu ecoar sua sonoridade iorubá em terras brasileiras. Assim, traduzida e publicada no Brasil, eis que ao leitor do país, enfim, confere-se a chance de ser “plateia” nas páginas teatrais do texto – já tendo, este, posto um primeiro pé em palco baiano, com a leitura dramática pela Companhia de Teatro Abdias do Nascimento, no final do mesmo ano desta sua primeira edição em língua portuguesa. Soyinka também esteve pessoalmente em Salvador, em novembro de 2012, às vésperas do Dia Nacional da Consciência Negra, por ocasião da divulgação do livro e a convite da Academia de Letras da Bahia, para palestra dentro do calendário comemorativo da data. Leia Mais
A Privataria Tucana | Amary Ribeiro Junior
A Privataria Tucana e a Prova do Crime
O livro do jornalista Amaury Ribeiro Jr., publicado pela Geração Editorial (São Paulo: 2011) condensa nas suas 343 páginas substanciosa documentação, comentada, relacionando o processo de privatização de parcela considerável do patrimônio publico brasileiro, durante o período fernandista (1990/2002). Nele, o autor dá particular ênfase para os oito anos que correspondem aos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso (1994- 2002), quando o assalto aos cofres públicos pelas autoridades e seus acólitos ‘laranjas‘ no jargão político-administrativo brasileiro – teria adquirido a magnitude de uma quase-acumulação originária, pela grandeza dos valores envolvidos. Faz sentido essa percepção ao se ter presente que iniciadas em 1991, as privatizações no Brasil ganharam grande impulso principalmente durante o segundo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Do total de empresas privatizadas no Brasil, cerca de 80% concentram-se entre 1997 e 1999, com destaque para os setores de telecomunicações e elétrico.
O termo acumulação originária, aplicado ao presente contexto é simbólico e tem função meramente ilustrativa, porquanto a expropriação demo-tucana da propriedade foi feita ao Estado brasileiro e, não, como explicada na Gênese do Capital, por Karl Marx, diretamente ao camponês, enquanto o que estamos cognominando aqui de acumulação deu-se na forma perdulária, através, sobretudo, do entesouramento do fruto da pilhagem em paraísos fiscais. Portanto, não se deu sob a forma de investimentos produtivos visando a expansão dos setores industriais e de serviço da economia brasileira. Nesse sentido, estimativas extremamente conservadoras de agências internacionais indicam a existência de depósitos superiores a US$ 100 bilhões de brasileiros nas assim denominadas ‘ilhas do inconfessável‘.
Chama atenção a copiosa documentação de que se utiliza o autor para dar suporte à sua argumentação, representada por 133 páginas de fac-símiles, o que significa dizer que cerca de 40% do livro comporta parte do valioso acervo documental, constituído basicamente por comprovantes de operações bancárias, procurações, escrituras, requerimentos, estatutos, fichas cadastrais, pareceres da Justiça e da Fazenda, e documentos afins, escriturados em cartório, por ele utilizados como prova do crime.
Nesse sentido é de causar pasmo e repulsa a reação de José Serra, ministro do Planejamento à época das privatizações, o desdenhar do trabalho de investigação jornalística de Amaury Ribeiro Jr., em declaração ao diário O Estado de São Paulo, nos seguintes termos: É lixo, lixo. (sic).
A questão de fundo que suscita esta resenha é verificar até que ponto um trabalho de jornalismo investigativo constitui fonte segura e consistente para o trabalho acadêmico, posto não se tratar de uma fonte primária, para dela fazer exaustivo uso no encadeamento do seu objeto de reconstituição da verdade informativa.
Vale lembrar que o final do ciclo militar ensejou um marco profícuo do ainda incipiente jornalismo investigativo no Brasil. Tenho aqui em mente, para citar um único exemplo, o nome do jornalista José Carlos de Assis e trabalhos seus como A Chave do Tesouro: anatomia dos escândalos financeiros no Brasil 1974/1983 e, Os Mandarins da República: anatomia dos escândalos da administração pública; ambos publicados pela editora Paz e Terra em 1983 e 1984, respectivamente.
Mesmo que não signifique uma retomada desse tipo de jornalismo sadio porque comprometido com a busca da verdade, de que tanto o Brasil carece, o trabalho de Amaury Jr. é um acontecimento ao qual não se pode ficar indiferente. Aliás, o mutismo da chamada grande imprensa perante o seu lançamento, a maneira hostil com que os donos do poder no período por ele retratado rechaçaram o livro – mesmo admitindo que não o leram – e, mais que isso, as resenhas de encomenda banalizando a obra, são motivos mais que suficientes para suscitar o interesse em conhecer o todo do seu conteúdo, estudá-lo e analisá-lo.
E, para o cientista da área de humanas, em especial aqueles dedicados ao estudo do fato econômico e das relações que ele encerra ter acesso aos acontecimentos das nossas realidades sócio-políticas e econômicas entre outras, através do gradiente do jornalismo investigativo certamente que só enriquece as suas possibilidades de compreensão do seu objeto de estudo, sem que isso signifique uma recusa à manipulação dos frios números das estatísticas censitárias, dos balanços e informes, todos igualmente imprescindíveis à compreensão dos fenômenos econômicos e sociais, e necessários à inferência de políticas públicas progressistas num país de concentração de renda abismal como o Brasil.
Por outro lado, as revelações como contidas no livro A Privataria Tucana têm o mérito adicional de por a desnudo a demagogia solerte, e, sobretudo, a insensibilidade social medonha do governo fernandista, que durante seus oito anos de mandato, praticou uma gestão orçamentária restritiva, em plena consonância com as exigências ortodoxas do Fundo Monetário Internacional (FMI), gestão essa, baseada em drásticos cortes no Orçamento da União e no contingenciamento das verbas públicas, inclusive com efeitos perversos nos Estados e Municípios, no que concerne a repasses, penalizando, particularmente, os segmentos sociais mais vulneráveis, privando-os de atendimento em saúde, educação e saneamento básico. Assim, enquanto os pobres eram privados do minimumexistencia, da responsabilidade do Estado – e aqui reside a hipocrisia maior do ‘príncipe da sociologia brasileira‘ revelada em A Privataria Tucana –via privatização, precarização e aumento de preços dos serviços públicos, recursos comparativamente superiores, expressos em bilhões de dólares norte-americanos jorravam pelo ladrão da corrupção oficial e endêmica.
Apenas para recordar um exemplo mencionado por Amaury Jr., somente através do Banestado foram expatriados rumo a paraísos fiscais cerca de US$ 30 bilhões, em valores da época. Essa quantia, é o que se depreende da leitura do livro, representa uma mixórdia em relação ao montante global descaminhado pelos privatistas da era FHC, considerando-se que cerca de 80% do patrimônio público estatal foram levados à haste pública, sob as variadas formas de desnacionalização. Período este em que coincidentemente (?) a participação de firmas estrangeiras no faturamento da indústria do Brasil saltou de 27% para 42%.
Amaury Jr. vasculha, por assim dizer, os porões soturnos de uma corrupção de dimensões imperscrutáveis onde ele com suas motivações e incentivos consegue, e nisso parece que foi bem-sucedido, mostrar ao leitor uma das pontas desse meio ‗iceberg‘ meio ‗bicho de sete cabeças‘. Nesse sentido, a própria estrutura do livro – me refiro a partir do capítulo 3, que leva por título Com o Martelo na Mão e uma Idéia na Cabeça, até o capítulo 13 – O Indiciamento de Verônica Serra, é reveladora. O Capítulo 4 – A Grande Lavanderia – cumpre, até por seu didatismo, o papel de lição la minute, para os não iniciados no assunto, sobre a prática do branqueamento de dinheiro sujo. Introdução necessária para que o leitor acompanhe a digressão do jornalista na descrição dos tortuosos trajetos que vão dos leilões aos paraísos fiscais.
Os capítulos seguintes que vão do 5 – Aparece o Dinheiro da Propina, ao 8 – O Primo mais Esperto de José Serra, penetram fundo na engrenagem da corrupção e colocam em relevo seus atores principais e coadjuvantes, que, a bem da verdade, não são muitos, algo compreensível, porque no mundo do crime, a seleção de comparsas faz parte do segredo do negócio. Pelas razões evidenciadas pelo autor, trata-se de figuras destacadas dessa quase-acumulação: o próprio presidente da República, à época, Fernando Henrique Cardoso, porta-bandeira da consigna “Vender Tudo que der para Vender”; o seu ministro do Planejamento, José Serra, para quem não havia problemas em “pagar para vender”; Ricardo Sérgio de Oliveira, amigo e ‘caixa‘ das campanhas de Serra e FHC, para o Senado e Presidência da República, descrito no livro como ‘o pai do esquema‘. Sem a pretensão de citar nominalmente todos os coadjuvantes, há, contudo, um nome a reter: o do empresário espanhol naturalizado brasileiro Gregório Marin Preciato, alcunhado por Amaury Jr. de ―mais esperto‘ entre outros motivos porque, com duas empresas falidas, endividado com o Banco do Brasil até o pescoço (devia ao banco estatal R$ 20 milhões), mesmo assim, logrou doar mais de R$ 87 milhões para ajudar a financiar a campanha senatorial do primo José Serra.
Portanto, não restam dúvidas de que dentro dos objetivos a que se propôs, e tendo em linha de conta que os fatos aludidos são rigorosamente comprovados, agravado pelo feito de que nenhum desmentido sério foi apresentado questionando as afirmações ou mesmo ao arsenal de provas esgrimidas pelo autor, o livro A Privataria Tucana, independentemente das razões por ele declaradas ou subjacentes que o tenham motivado à empreitada, constitui um legado documental precioso a se ter em conta nas pesquisas envolvendo o processo de privatizações e a corrupção paraestatal no Brasil.
Resenhista
Wilson Gomes de Almeida – Engenheiro Agrônomo pela Academia de Ciências Agrícolas de Sófia/Bulgária e doutor em História Econômica pela USP.
Referências desta Resenha
RIBEIRO JUNIOR, Amaury. A Privataria Tucana. São Paulo: Geração Editorial, 2011. Resenha de: ALMEIDA, Wilson Gomes de. Revista de Economia política e História Econômica. São Paulo, ano 08, n. 28, p. 229-234, agosto, 2012. Acessar publicação original [DR]
O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra | Antônio Pedro Tota || Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial | Roney Cytrynowicz
Os trabalhos de Roney Cytrynowicz e Antônio Pedro Tota têm em comum o fato de analisarem a história brasileira durante a Segunda Guerra Mundial. Entretanto, suas abordagens e enfoques são bastante diversos, refletindo também preocupações temáticas e conceituais e, naturalmente, escolha de fontes e bibliografia.
O livro de Antônio Tota aborda um tema fascinante e, ao mesmo tempo, pouco estudado pelos historiadores nacionais: a ofensiva cultural realizada pelo governo americano no Brasil, dentro do espírito da ‘política da boa vizinhança’. São poucos os trabalhos sobre o tema — a começar pelo já clássico livro de Gerson Moura Tio Sam chega ao Brasil (1984). Este fato torna-se ainda mais evidente quando comparamos a produção nacional com o grande número de trabalhos americanos sobre o tema: basta conferirmos a própria bibliografia utilizada por Tota. O autor, além de trabalhar com uma vasta bibliografia norte-americana sobre seu tema, utilizou fontes textuais, sonoras e iconográficas, tiradas de arquivos norte-americanos e brasileiros. Suas fontes são, principalmente, governamentais, o que naturalmente reflete o recorte de seu objeto: a ação do Office of Coordinatior of Inter-American Affairs (OCIIA) no Brasil, com o objetivo de “seduzir” os brasileiros para uma aliança com os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar da inexistência de referências explícitas, a linguagem e a estrutura do livro nos fazem acreditar que se trata originalmente de uma tese de doutoramento. Leia Mais
Clube da Esquina: a geração dos sonhos. Os Sonhos não Envelhecem – BORGUES (VH)
BORGES, Márcio. Clube da Esquina: a geração dos sonhos. Os Sonhos não Envelhecem. Histórias do Clube da Esquina. Geração Editorial. Resenha de: NEVES, Lucilia de Almeida. Varia História, Belo Horizonte, v.13, n.18, p. 491-494, nov., 1997.
“Escrevo para cumprir um impulso, esvaziar meus escaninhos e contar para mim mesmo com os olhos do tempo e da distância uma história que de qualquer forma já está contada nas músicas que compus”. Estas são as palavras com que Márcio Borges, primeiro parceiro de Milton Nascimento, crava nas páginas iniciais de seu recente livro o mais profundo e humano sentido de permanência das lembranças e dos sonhos.
Escrevendo um texto que pode ser classificado tanto como romance de uma geração, ou como livro de memórias o autor, através de um estilo saboroso, arrebatador, simples mas verticalizado, produz literatura histórica de primeira qualidade. Os casos contados por Borges apresentam-se como visita às reminiscências de um tempo histórico privilegiado no qual os jovens cronstruíam utopias. Trata-se de um mergulho no tempo que se foi. Mergulho pautado pelas emoções e vivências do presente. De um presente que se consubistancia como ponto de partida para a viagem do recordar.
A memória é caracterizada por potencialidades múltiplas, dentre as quais se destacam as seguintes: possiblidade de reascender utopias de um tempo anterior, reconstrução da atmosfera de outra época, revivicação de emoções políticas, individuais e sociais. Borges, ao rejuvenescer os sonhos passados, realiza na escrita de suas memórias as potencilidades inerentes ao ato de rememorar. O faz com sabor especial, com uma força particular, que transforma a memória em História.
As memórias individuais de Márcio Borges, traduzidas em palavras que conformam um texto de saborosa viagem ao recente passado mineiro e brasileiro, transmudam-se em elementos que contribuem para uma melhor compreensão da história contemporânea de Belo Horizonte e do Brasil. Isso porque, suas lembranças particulares, são, simultaneamente, revelações de memórias coletivas. Dessa forma, o relato individual do autor tem como ponto de partida diferentes quadros sociais, ou seja, a vida cotidiana da comunidade belohorizontina nos anos sessenta e a inserção nesse cotidiano de jovens de classe média, tomados por um forte impulso gregário e por um marcante desejo de “mudar o mundo”. Portanto, como afirma Fernando Brant em sua apresentação do livro, o autor:
“Com olhos de cinema, literatura e música viu e vê a vida. Máquina humana de decifrar o mundo com palavras, sons e imagens, ela aparece agora contando cacos de um tempo querido, os anos sessenta e setenta”.
O livro, cujo pano de fundo temporal é a efervescente década de sessenta e os silenciosos primeiros anos da década de setenta retrata, com emoção de artista, o cenário de um tempo histórico privilegiado no qual o mundo foi revirado pelo avesso. Nas páginas do livro, como em um documentário cinematográfico podem ser visualizados, através do texto e de fotografias, a derrubada de João Goulart, o movimento da juventude em 1968, o surgimento e consolidação do grupo de jovens músicos mineiros, que formaram o Clube da Esquina, o recrudescimento do autoritarismo no início dos anos setenta e o nascimento da década de oitenta, arejada pelas primeiras e sequentes brisas da abertura política.
O principal sujeito da história contada por Borges é um grupo de jovens mineiros que, naqueles anos, movido por uma forte esperança trasnsformadora, contribuiu para o plantio de sementes de mudanças no Brasil e em todo ocidente. Jovens integrantes de uma geração marcada pela vontade de visualizar alternativas para o futuro do país e do planeta terra, e de buscar a construção dessas alternativas no presente. Dessa forma, o texto apresenta-se como especial observatório de uma geração que não teve medo de viver e de romper barreiras. De uma juventude, que fez da arte porta voz de sonhos e que revelou através da música o retrato de um Brasil, àquela época amordaçado, mas não rendido às mãos fortes do autoritarismo político.
Os personagens que viveram a aventura daquele tempo de acreditar em sonhos eram rapazes da então pacata Belo Horizonte. Uma cidade de avenidas largas e arborizadas que conformaram o cenário no qual a vida se descortinava plena para um grupo de adolescentes que residia em sua parte central, no edifício Levy. Um prédio plantado em plena Avenida Amazonas, nas proximidades da Praça Sete, coração da capital mineira. Adolescentes que cresceram presenciando as transformações que levaram o Brasil democrático do início dos anos sessenta, na época do populismo e do governo Jango, a se transformar em um país dominado pelo arbítrio do regime militar.
Estudantes que desabrocharam para a vida num tempo de coerção e censura. Jovens em cujas veias corria uma musicalidade de forte inspiração poética, que deu origem, em Minas Gerais, a um espontâneo e original movimento cultural que ficou conhecido como O Clube da Esquina.
Ao relembrar as origens desse movimento, Márcio Borges traz à cena uma juventude caracterizada por um forte espírito solidário e por um criativo desejo de conhecimento revelados em conversas infindáveis sobre arte, música, cinema e política nos colégios, universidades, bares, bairros e esquinas da cidade de Belo Horizonte.
Uma Belo Horizonte que ainda não tinha ares de metrópole, mas que era iluminda por uma efervescente vida cultural, que desabrochava nos teatros e cineclubes e se ramificava pelos bairros da cidade. Foi exatamente em um bairro da capital mineira, Santa Tereza, para o qual se mudara a família Borges, que surgiu, na década de setenta, o Clube da Esquina. Borges assim descreve o então corriiqueiro encontro de jovens que vieram a animar um dos mais ricos movimentos musicais do Brasil contemporâneo:
“… o nome Clube não designava senão uma pobre esquina, um pedaço de calçada e um simples meio fio, onde os adolescentes da rua (e só raramente os rapazes de minha idade) costumavam vadiar, tocar violão, ficar de bobeira, no cruzamento das ruas Divinópolis e Paraisópolis. O Club da esquina.”
O texto além de narrar aspectos do cotidiano, como o acima descrito, é marcado por uma nostalgia que, paradoxalmente, ao relembrar o passado, descortina o futuro. Futuro este que se revelou diferente para cada um dos rapazes que integraram aquele movimento musical. Mas um futuro no qual, pelos nós de um passado comum, todos se mantiveram definitivamente atados uns aos outros.
As lembranças do que passou, marcadas por indiscritível saudade e por um sentimento unívoco de que cada tempo é único e significativo em sua peculiariedade, são assim definidas pelo próprio autor:
“ Ressurjo agora para contar aquelas cenas longíquas que hoje brilham em meus olhos através das lentes que naturalmente adquirimos com a idade madura e a vista cansada: as da compaixão e da saudade. Portanto, e finalmente, este relato é de minha parte só uma invocação, uma celebração, uma ode ao tempo que passou voando e apenas ocorreu uma vez na vida de cada um de nós”.
Na ode ao tempo tecida por Borges estão presentes os Beatles com suas músicas que revolucionaram os hábitos da juventude e a musicalidade do mundo contemporâneo. Nela está descrito, com especial sensibilidade, o costume então corriqueiro de ir ao cinema e discutir filmes à exaustão. Além disso, são revelados, pelas palavras que compõem a trama do texto, a força das experiências coletivas, as resistências pacifistas da juventude, os movimentos de cultura alternativa e a inacreditável magia dos tempos em que no Brasil ainda havia ensino público secundário de qualidade, representado, no caso, pelo Colégio Estadual Central de Belo Horizonte.
Nas páginas do livro, por outro lado, estão registrados os anos de autoritarismo político e acontecimentos peculiares àquela época, como o da morte de jovens que cultivavam o sonho da igualdade. Estão traduzidos também: o dilema da juventude que buscava resistir à ausência de liberdade, a ânsia de transformação que contaminava estudantes, artistas e outros expressivos segmentos da sociedade brasileira de então e, principalmente, o passar do tempo que transformou todas essas experiências e projetos coletivos em História.
Márcio Borges, amigo e cúmplice de Milton Nascimento, ao relembrar a trajetória do compositor e do grupo de artistas que em torno dele se agregava, contempla o leitor com descrições minuciosas sobre a inspiração criativa e vital que gerou em Belo Horizonte e em Minas Gerais uma musicalidade nova, diferente de tudo o que se fazia na música popular brasileira da época. Música e versos inesquecíveis, marcados por uma profundidade impar, por uma densidade que entranha.
Também registra, sem qualquer tom de mágoa, a já tradicional diáspora de artistas e intelectuais mineiros que, como se cumprindo o ritual de uma sina secular, precisam desapegar-se de sua terra e correr outros “Brasis” para alcançarem projeção. Contudo, ao falar do “desterro” dos mineiros, registra a persistência de alguns — como ele próprio — que resistiram ao impulso de partir e mantiveram-se presos ao chão de ferro das Minas Gerais, tendo mesmo assim alçado vôos sobre outras plagas.
De Três Pontas para Belo Horizonte; de Minas para as gravadoras do Rio de Janeiro e São Paulo; do Brasil para o mundo, as histórias do Clube da Esquina contam sobre um país pluralista, múltiplo, sofrido, marcado pelas desigualdades e pela vontade de sua juventude de construir um novo futuro. Contam também sobre músicas de forte religiosidade, de montanhas, de trens, de aldeias, de fogo, de amigos, de sete chaves, de saudade, de artistas, de paisagens, do velho Curral D’el Rei, da América do Sul. Contam, principalmente, sobre a travessia de Milton Nascimento, dos irmãos Borges, de Tavinho Moura, de Toninho Horta, de Ronaldo Bastos, de Fernando Brant e de toda uma geração, que era jovem nos anos sessenta, para uma fase da vida na qual os sonhos não envelheceram… transformaram-se.
Lucilia de Almeida Neves – Professora do Curso de História da PUC Minas e do Mestrado em História da UFMG.
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